03/02/2022
Como entender a volta do CEO indo-americano Vishal Garg ao comando da empresa Better.com após escândalo causado pela demissão de 900 funcionários por videoconferência
David Cohen
Demissões acontecem. Encerrar um relacionamento pode ser até doloroso, mas é um direito de qualquer pessoa, seja física ou jurídica. O modo como essa demissão ocorre, porém, faz toda a diferença. Não é porque você não quer mais trabalhar com alguém que pode abdicar de uma dose mínima de civilidade.
Esse foi o grande pecado do CEO indiano-americano Vishal Garg, que ganhou fama no início de dezembro de 2021 por sua decisão de demitir 900 pessoas (cerca de 9% do total de empregados de sua companhia, a Better.com) numa reunião via Zoom, com laivos de crueldade. “Se você está nesta videoconferência, você faz parte do grupo azarado que está sendo demitido”, disse Garg durante a reunião, que logo viralizou nas redes sociais.
Seu afastamento da empresa que fundou parecia indicar que a má gestão de pessoas está se tornando inaceitável, mesmo em companhias promissoras (a Better.com, uma empresa que facilita o processo de hipotecas de casas nos Estados Unidos, foi considerada “top startup” pela rede social de trabalho LinkedIn por dois anos seguidos; esteve na lista de 2020 das 50 melhores fintechs da revista Forbes; e estimava-se que sua abertura de capital, cujo processo está em andamento, a levasse a um valor de 7,7 bilhões de dólares).
Porém, a volta de Garg ao comando, anunciada em 19 de janeiro (embora sem data para ser efetivada), reverteu essa impressão. A primeira hipótese para o retorno foi que, como fundador da companhia, ele detivesse ações com poder excepcional de votação — uma prática que se tornou razoavelmente comum para impedir motins como o que expulsou Steve Jobs da Apple, em 1985; Mark Zuckerberg, por exemplo, tem ações de classe B, cujos votos em assembleias do Facebook são multiplicados por dez. Mas este não é o caso de Garg, de acordo com o escrutínio feito por Alex Wilhelm, do site de notícias tecnológicas TechCrunch, nos papéis que a companhia divulgou para iniciar o processo de abertura de capital.
Resta apenas a explicação de que, apesar das evidências de despreparo para liderar pessoas, Garg ainda tem o apoio de seus investidores, entre os quais estão influentes instituições financeiras como Softbank, American Express, Goldman Sachs e Citi. Embora ninguém tenha saído a público em sua defesa, só se pode concluir que ele é considerado um ativo importante para o sucesso da Better.com. Houve, no entanto, pressão para que se corrija o ambiente de assédio que aparentemente predomina na empresa.
O caso de Garg suscita dois tipos de questionamento, que valem para uma ampla gama de startups. O primeiro: qual a chance de um fundador mudar a cultura que ele próprio implantou?
O segundo questionamento é: por que tantos líderes de startups, às vezes tidos como geniais, apresentam comportamentos tão desrespeitosos e, em grande medida, deletérios à própria companhia que pretendem levantar? A gestão de pessoas pode não ser uma ciência exata, mas ao longo das últimas décadas foram reunidas evidências suficientes para sedimentar alguns princípios, hoje em dia tão óbvios que é surpreendente serem ignorados por tantos líderes.
Em relação à primeira questão, um caso razoavelmente recente foi do Uber, cujo principal fundador, Travis Kalanick, colecionou uma série de acusações de assédio, prometeu passar por uma purgação… mas acabou sendo afastado do comando no final de 2017. É o modo mais fácil de implementar uma mudança: trazer alguém que não esteja comprometido com os erros cometidos no passado.
Se o comando não muda, como é o caso na Better.com, a primeira tarefa é convencer as pessoas de que o desejo de mudança é real.
Garg terá dificuldade nesse quesito. Seu pedido de desculpas, cinco dias após a demissão coletiva, foi visto como insincero. “Estou comprometido a tirar um aprendizado desta situação e fazer mais para me tornar o líder que vocês esperam que eu seja”, escreveu aos funcionários. No entanto, o comunicado só veio após pressão do conselho de administração — e este só agiu ante as repercussões tremendamente negativas e o pedido de demissão de três diretores (de marketing, comunicações e, claro, recursos humanos). A primeira reação de Garg às críticas havia sido a oposta: dizer que a culpa das demissões era dos próprios funcionários, uma vez que “pelo menos 250 deles trabalhavam em média duas horas por dia, mas contabilizava oito horas no sistema de pagamentos”.
Na sequência do escândalo, voltaram à tona acusações de abuso no tratamento de funcionários. Um ano antes das demissões, a Forbes havia publicado em seu site uma reportagem que evidenciava o temperamento explosivo de Garg. Uma mensagem típica comparava os funcionários a “golfinhos burros”, que ficam “presos nas redes e são comidos por tubarões”. E continuava: “Parem com isso. Parem com isso. Parem agora. Vocês estão me envergonhando”.
Outra foi a reunião promovida logo após a demissão em massa, para “animar” a turma que ficou. “Vocês são encorajados a falhar uma vez”, disse (falhar rápido é um clichê do mundo das startups, supostamente para aprender rapidamente). “Mas não duas”, continuou. “Não cumprir prazos não será tolerado.”
Este tom precisa mudar, se Garg quiser liderar pelo senso de propósito, não pelo medo. Quando foi afastado de suas funções, a diretoria da Better.com anunciou a contratação de uma consultoria de liderança e cultura, para traçar as diretrizes de um ambiente positivo e sustentável.
Ao confirmar sua volta, a empresa declarou que esta análise foi concluída por uma equipe liderada pelo ex-promotor federal Anthony Barkow, sócio da empresa de advocacia Jenner & Block. Suas recomendações incluem recrutar um novo presidente do conselho de administração e um novo diretor de recursos humanos, além de criar um programa de treinamento para implementar um “ambiente respeitoso” e estabelecer um comitê de ética, com reporte direto ao conselho de administração.
Será suficiente?
Provavelmente, não. Se o líder de uma empresa sempre tem impacto sobre sua cultura, numa startup a relação é muito mais forte — até porque a empresa literalmente nasceu de seus projetos e visão de mundo. O ambiente, portanto, não deverá mudar a não ser que o próprio fundador mude. De acordo com o comunicado do conselho de administração, Garg tem sido atendido por um coach executivo para “se reconectar com os valores que tornam a Better ótima”, mas o período de “reflexão” parece pequeno para uma mudança tão grande, dadas as evidências de um temperamento explosivo e afeito a controvérsias.
Há até processos em que ele é acusado de atividades fraudulentas, supostamente embolsando dezenas de milhões de dólares para fundar a Better.com. Um dos reclamantes, o banco de investimentos Goldman Sachs, abandonou as queixas depois de ter aplicado dinheiro na Better.com, nas primeiras rodadas de investimento. Outros mantêm as queixas.
Numa outra batalha nas cortes, Garg se defende de acusações de seu ex-colega de faculdade e ex-sócio Raza Khan. Os dois tinham a companhia MyRichUncle (meu tio rico), especializada em financiamentos estudantis, que faliu em 2009. Os dois partiram para uma segunda companhia, de análise de hipotecas e empréstimos. Em algum ponto, Raza Khan desconfiou que Garg havia desviado 3 milhões de dólares para sua conta pessoal. Com o fim da empresa, Garg montou a Better.com. Khan, o mais entendido em software da dupla, acusa o ex-sócio de ter roubado a tecnologia que ele criou.
Numa das audiências em corte, em dezembro de 2019, Garg se virou para Khan e disse que iria “grampeá-lo a uma p… de uma parede e queimá-lo vivo”. Na mesma sessão, ele se desculpou por “deixar suas emoções saírem de controle”.
Esses problemas, ao menos como se apresentam no momento, não impedem que a empresa de Garg sobreviva e até prospere. Seu principal serviço é acelerar o processo de aprovação de hipotecas nos Estados Unidos (a ambição é eventualmente expandir para outros países). Segundo o próprio Garg, a ideia surgiu quando ele e a mulher, então grávida de seu segundo filho (ele tem três), decidiram comprar uma casa. “O processo foi tão longo e ineficiente que acabamos perdendo o lugar para um comprador que tinha dinheiro na mão”, disse ele à Forbes, em 2019.
Segundo a própria empresa, ela foi responsável por empréstimos no valor total de 24 bilhões de dólares em 2020, quase seis vezes mais do que no ano anterior. Os processos de seguro e as compras e vendas de imóveis também tiveram aumentos expressivos (o quádruplo e quase o quíntuplo de 2019, respectivamente).
Isso acontece porque tem uma tecnologia de análise de papéis que lhe permite ser mais rápida nas aprovações; mas principalmente porque cortou as taxas e comissões a praticamente zero e investiu em boa dose de propaganda. O modelo é complementado pelo emprego de uma força de trabalho que custa, segundo a própria Better.com, cerca de metade da dos concorrentes.
Por último, mas nem de longe menos importante, as taxas de juros para hipotecas nos Estados Unidos caíram a níveis historicamente muito baixos e a busca por casas, incrementada pelo trabalho remoto incentivado durante a pandemia, aumentou consideravelmente. Além dos milhões de americanos querendo comprar casas, outros milhões aproveitaram a queda nos juros para refinanciar as hipotecas que já têm.
Esta combinação de fatores impulsionou a companhia, que está prestes a abrir seu capital por meio de uma venda a uma Spac (companhia de aquisição de propósito especial, na sigla em inglês). Uma Spac é uma empresa que já passou pelo processo burocrático de abertura de capital, prometendo a seus investidores comprar ou se fundir a uma empresa privada em algum setor específico. Em relação ao IPO (oferta inicial de ações), é um modo mais rápido e barato de uma startup abrir seu capital.
Se o cenário é tão cor de rosa, o que explica as demissões feitas em dezembro — um dia depois de ter recebido um aporte de 750 milhões de dólares da Aurora Acquisition Corp., a Spac com a qual tem acordo de venda? É que o painel apresenta algumas rachaduras.
Para começar, os juros das hipotecas voltaram a apresentar viés de alta. A taxa de juros de 30 anos estava em 2,74% no início de 2021, chegou a 3,56% em janeiro deste ano. E o preço das casas está subindo. Com isso, o refinanciamento de hipotecas caiu — o que impacta os resultados da Better (ela lucra não com taxas dos que tomam empréstimos, mas ao vender as carteiras de dívidas para terceiros).
O processo era esperado, mas parece que o ritmo foi mais veloz do que o previsto. Em novembro passado, a Aurora divulgou um relatório prevendo prejuízo na Better.com de 85 milhões a 100 milhões de dólares no terceiro trimestre e algo ainda maior no quarto. Aparentemente, houve um otimismo exagerado ao longo de 2020, e o excesso de contratações levou à necessidade de uma contração. Mas, em vez de admitir o erro, Garg preferiu culpar os funcionários.
Daí chegamos ao segundo questionamento que o caso suscita: por que tantos líderes são cegos às boas práticas de gestão de pessoas?
A resposta mais sucinta é: porque podem. Especialmente nos estágios iniciais de uma companhia, os investidores premiam outras coisas que não o ambiente de trabalho: visão de negócios, possibilidade de ruptura em algum setor produtivo, potencial de crescimento. As questões de pessoal são cruciais para criar um negócio sustentável no longo prazo. Mas quem está olhando para isso no momento inicial?
A própria busca de ruptura em alguma indústria — descobrir jeitos melhores, mais eficientes de proporcionar algum serviço, de forma a tornar obsoletos os concorrentes atuais — pressupõe que o empreendedor tenha algo de iconoclasta. Um quê de desrespeito às normas ajuda a quebrá-las.
É também um pessoal com pressa e com a sensação de que vai “mudar o mundo”. Questões de protocolo são vistas, em boa parte das vezes, como entraves ao cumprimento de sua missão. Daí a menosprezar normas usuais no tratamento de pessoas é um pulo. Isso ajuda a explicar a alta taxa de líderes temperamentais nas startups.
Não é que haja carência de chefes abusivos nas empresas tradicionais. Mas para chegar a esse posto eles precisam passar por um caminho de aprendizado; nesse trajeto, costumam ser minimamente disciplinados a cumprir rituais. Precisam se adaptar a uma cultura que foi estabelecida antes de eles chegarem.
Com as startups isso não ocorre. “Não é só quem começa uma empresa do zero, isso também ocorre com frequência entre herdeiros”, diz a psicóloga Maria Elisa Moreira, professora de liderança e times de alta performance no Insper. O problema, de acordo com ela, é quando o líder não foi preparado para assumir uma posição estratégica, tanto do ponto de vista de negócios como de gestão de pessoas. “Isso é mais comum no universo das startups. Infelizmente.”
Quando o líder não tem vivência de empresa, é comum que também não tenha modelos de liderança no trabalho. “A startup talvez seja hoje um divisor de águas na questão de gestão de pessoas”, diz Maria Elisa. “Em muitos casos, são jovens que decidem abrir um negócio por inconformismo com o modelo tradicional. Alguns nunca trabalharam na vida. Pensam em ser velozes, flexíveis e dar resultado — uma combinação que é nitroglicerina pura.”
Além da inexperiência em relação a métodos de liderança, há nas startups em geral uma mentalidade de forjar um grupo revolucionário. Isso é essencial no início, até para estabelecer os modos como a empresa pretende inovar, como lembra o empreendedor serial Peter Thiel (PayPal, Palantir), em seu livro De Zero a Um. Conforme a companhia vai crescendo, no entanto, a coesão do grupo inicial já não basta.
As dificuldades de líderes de startups em criar ambientes de trabalho saudáveis, ou de forma mais geral lidar com trâmites burocráticos e convenções, fez nascer, no final do milênio passado, a tendência de buscar “supervisão adulta” — alguém experiente para comandar ou ser braço direito da companhia.
A solução nem sempre dá certo, é claro. Porque os “adultos” muitas vezes, em vez de criar estruturas de contenção, escorregam para aproveitar os cargos de exacerbado poder aos quais foram guindados. Essa é uma das acusações, por exemplo, a Sheryl Sandberg, no Facebook. Ou a Eric Schmidt, do Google. Dificilmente, porém, profissionais experimentados cometerão erros como os de alguns fundadores.
Quando se é premiado por comportamentos como ser ousado, destruir modelos estabelecidos, ter capacidade de mudar de rumo rapidamente, privilegiar resultados, é razoavelmente fácil que isso transborde para as relações com as pessoas.
Que haja líderes assim talvez seja o preço que a sociedade aceita pagar pelos produtos e serviços que eles proporcionam. Há, porém, uma linha tênue que separa os líderes abusivos daqueles que são duros — às vezes duríssimos — mas sabem criar um ambiente produtivo.
Ninguém nunca acusou Jeff Bezos de ser um líder amigável na Amazon. Ninguém nunca se referiu a Steve Jobs como um chefe boa-praça. Nem Elon Musk é considerado alguém que saiba agradar a seus funcionários. Mas Jobs era também inspirador; Bezos, ao mesmo tempo que cobra, sabe dar oportunidades e reconhecer colaboradores; Musk exige dedicação extraordinária, mas está o tempo todo ao lado da equipe e é o primeiro a abdicar de folgas e férias.
Garg, ao que tudo indica, não está nesse time. Sua Better precisa melhorar muito.
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