18/08/2016
O reflexo do agravamento da crise econômica sobre o mercado de trabalho é claro. Para todas as faixas etárias e regiões do Brasil, tem havido aumentos continuados nos desligamentos involuntários e diminuição no ritmo das contratações. A longa duração e a profundidade da retração econômica têm sido capazes de afetar até mesmo o emprego dos chefes de família de alta escolaridade, cujos vínculos empregatícios são relativamente longevos. A piora do emprego dos chefes afeta todos os membros de sua família. Não é por acaso que se assiste a um aumento no fluxo de pessoas para dentro da força de trabalho, sobretudo de cônjuges e filhos que tentam contribuir para a renda do domicilio. A maior oferta de trabalho de jovens e o crescente nível de desocupação de todas as faixas etárias têm contribuído para uma aceleração mensal, sem precedentes, da taxa global de desemprego.
Dados recentes do IBGE, revelam que entre janeiro de 2014 e fevereiro de 2016, a proporção de trabalhadores com vínculos superiores a dois anos no último emprego entre os desempregados que entraram no desemprego nos últimos seis meses aumentara de 27% para 38%. Para o mesmo período, a proporção de trabalhadores com vínculos de até seis meses no último emprego para a mesma subpopulação de desempregados que haviam entrado no desemprego nos últimos seis meses caíra de 39% para 32%. Esses números revelam que o desemprego atualmente chegou naqueles com mais tempo de serviço. E esses têm uma maior chance de serem chefes de família. Para o mesmo período de janeiro de 2014 a fevereiro de 2016, entre desempregados recentes com vínculos superiores a dois anos no último emprego, a proporção de chefes de família era de 44%. Esse número contrasta com o encontrado entre os trabalhadores com menos de seis meses no último emprego e recentemente desempregados. Desses, 30% eram chefes de família.
Os mesmos dados do IBGE mostram ainda que entre os que acabaram de entrar no desemprego, 28% vieram de fora de força de trabalho, enquanto apenas 12% vieram da situação de emprego. E daqueles que vieram de fora da força de trabalho, apenas um terço era de chefes de família.
Esses números requerem atenção, por dois motivos. O primeiro, direto, diz respeito ao rompimento do vínculo de trabalho de empregados com longa duração no emprego e os efeitos que esse rompimento traz sobre a produtividade da economia. O segundo é indireto e diz respeito ao efeito que o desemprego de trabalhadores que são tipicamente chefes de família tem sobre a oferta precária e prematura de trabalho por parte de outros membros da família do chefe desempregado.
O efeito da crise sobre o aumento dos desligamentos involuntários de trabalhadores com vínculos longos com uma mesma firma é bastante preocupante. Ao longo do período de emprego de um trabalhador, as empresas fazem investimentos em seu treinamento e os trabalhadores acabam por se especializar no ramo ou sub-ramo de atividade em que a empresa está inserida. Os investimentos no trabalhador e sua crescente especialização geram ganhos de produtividade do trabalho que só, ou preponderantemente apenas, ocorrem nesse vínculo especifico entre empresa e trabalhador. O rompimento do vínculo gera imediata perda para firma, que terá que treinar outra pessoa; e para o trabalhador, que vê pouca utilidade das habilidades adquiridas na firma fora dela.
A nossa legislação trabalhista e a sua interpretação pela Justiça do Trabalho não têm contribuído muito para que os efeitos da crise sejam menos sentidos no mercado de trabalho. Nosso marco legal tem, na verdade, amplificado os efeitos da crise sobre o mercado. Um exemplo disso é a falta de flexibilidade das jornadas diárias, semanais e até mesmo mensais de trabalho. Ressalte-se que os trabalhadores não têm autonomia individual para negociar acordos de “banco de horas” com suas empresas. O banco de horas funciona como uma forma de se ajustar a carga de horas de trabalho ao ciclo econômico. Em vez de simplesmente demitir um empregado em momentos de baixa atividade da empresa, o que geraria perdas para ambas as partes, reduz-se a sua jornada de trabalho. Em momentos de intensa atividade econômica, evita-se o pagamento de horas extras e o trabalhador aumentaria sua jornada de forma a compensar as horas não trabalhadas anteriormente.
Embora o banco de horas seja um instrumento previsto em lei desde 1998, o TST estipulou que o banco de horas entre o empregado e o empregador somente pode ser estabelecido por meio de acordo ou convenção coletiva. O principal fundamento da decisão se baseia na premissa de que o banco de horas atende principalmente aos interesses do empregador, o que, obviamente, é um argumento discutível, eis que também atende ao interesse do empregado de não ser demitido.
Há outros instrumentos previstos em lei que, embora não tão interessantes para o trabalhador quanto o banco de horas, permitem que o contrato de trabalho não se extinga, preservando, portanto, o investimento feito ao longo dos anos entre firmas e trabalhadores. O “lay-off” é outro instrumento que surgiu no fim dos anos 1990 e que só pode ser utilizado em casos de “grave crise econômica”. Ele consiste na suspensão temporária do contrato de trabalho, pelo período de dois a cinco meses, o qual pode ser prorrogado, para que o empregado participe de curso ou programa de qualificação profissional. Novamente, há necessidade de acordo coletivo para sua instalação, o que tem feito com que a adesão a esse instrumento seja bastante reduzida. Em fins de 2015, o Brasil tinha mais de 9 milhões de desempregados, mas apenas 33 mil pessoas entraram em regime de “lay-off” no mesmo ano.
Recentemente, um novo instrumento entrou em vigor, o Programa de Proteção ao Emprego (PPE). Embora seja uma mistura interessante do banco de horas, “lay-off” e seguro-desemprego, sua adoção, no entanto e assim como com o “lay-off” se deu por um número pequeno de firmas e em setores específicos, sobretudo o automotivo. Como nos outros instrumentos, o PPE só pode ser implementado por meio de acordos coletivos.
A falta de “popularidade” desses instrumentos está diretamente ligada às dificuldades impostas pela legislação para sua plena adoção. A principal parece ser necessidade de acordo coletivo em todos eles.
A princípio, não deveria haver problemas em se delegar aos sindicatos autonomia para negociar o PPE, “lay-offs” e bancos de horas com as firmas interessadas em fazê-los, uma vez que os sindicatos formalmente representam os interesses dos trabalhadores. Contudo, uma pequena minoria dos trabalhadores se sente representada por seus sindicatos, os quais são financiados pelos impostos sindicais sem nenhuma contrapartida. Os sindicatos no Brasil detêm monopólios regionais de suas categorias e não precisam se esforçar para se financiar. Não há competição entre eles e a verba para sua manutenção é garantida. A demora da reação dos sindicatos ou a decisão de não apoiar medidas de flexibilização da jornada ou do contrato de trabalho talvez expliquem a baixa adesão aos instrumentos permitidos em lei para manter o emprego mesmo em momentos de retração econômica.
Há, portanto, que se pensar em uma readequação de nosso conjunto de leis e instituições trabalhistas à nova realidade imposta pela grave crise econômica em que se vive. A possibilidade de se individualizar instrumentos legais que no momento só valem coletivamente permitiria tratar de maneira diferente trabalhadores com diferentes histórias dentro de uma mesma empresa. Há aqueles que devotaram vidas inteiras e que se especializaram em ocupações que, muitas vezes, são quase que especificas à empresa onde eles atuam. Colocar essas relações de trabalho dentro de um mesmo acordo coletivo, que engloba trabalhadores de todas as idades e períodos de permanência na firma, impede que se busquem soluções que evitem perdas na produtividade do trabalho, mesmo em situações economicamente adversas. Chefes de família que estão prestes a se juntar à massa de 12 milhões de desempregados possivelmente se beneficiariam de uma maior flexibilização de seus contratos e jornadas de trabalho. E com a manutenção dos postos de trabalho dos arrimos de família, seus dependentes se veriam menos compelidos a participar do mercado de trabalho, o que reduziria, no curto prazo, os efeitos da crise sobre o desemprego.
Por Sergio Firpo, Professor Titular do Insper
Fonte: Exame.com – 03/08/2016