17/05/2016
Os 100 milhões de brasileiros que utilizam o WhatsApp se viram sem poder usar o aplicativo de mensagens durante a tarde e noite de ontem: um juiz da comarca de Lagarto, no interior de Sergipe, determinou que as cinco principais operadoras do País bloqueassem o programa por 72 horas, após a empresa descumprir ordem judicial para abrir dados de usuários em um caso sobre tráfico de drogas, que corre em segredo de Justiça. Na opinião de especialistas e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o bloqueio foi desproporcional ao afetar milhões de pessoas por causa de um único caso.
“Quando você bloqueia algo que é usado por milhões de brasileiros, não se atrapalha apenas uma aplicação para fins de entretenimento, mas que também serve como ferramenta para uma série de atividades profissionais”, diz Carlos Affonso de Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio). O presidente da Anatel, João Rezende, afirmou que “o WhatsApp deve cumprir as determinações judiciais dentro das condições técnicas que tem”. “O bloqueio não é a solução”, disse Rezende, em nota.
Em entrevista ao Estado, o diretor de comunicação do WhatsApp, Matt Steinfeld, se disse surpreso com o pedido de bloqueio do aplicativo no País (leia mais abaixo). Por coincidência, ele está no Brasil nesta semana acompanhado de um grupo de funcionários do WhatsApp para se reunir com advogados, promotores de Justiça e autoridades. O objetivo é explicar como o serviço funciona e como a criptografia torna impossível atender às ordens judiciais que determinam o acesso às conversas de suspeitos de crimes.
De novo. A ordem de interrupção foi do juiz Marcelo Maia Montalvão. Em março, Montalvão pediu a prisão do vice- presidente do Facebook para a América Latina, Diego Dzodan, com a intenção de obrigar a liberação das conversas. Como,apesar da prisão, o WhatsApp não liberou os dados, o juiz pediu o bloqueio do serviço às operadoras ontem. As empresas estão sujeitas a multa diária de R$500 mil em caso de descumprimento. O bloqueio foi iniciado às 14h de ontem,mas testes feitos pela reportagem mostravam ser possível usar o aplicativo. Procuradas, as operadoras declararam cumprir “rigorosamente” as determinações.
Não é a primeira vez que a Justiça brasileira pede o bloqueio do WhatsApp: decisões similares já foram tomadas em fevereiro de 2015, no Piauí, e em dezembro de 2015, em São Paulo – no último, o app chegou a ficar bloqueado por 12 horas. “É um caso muito parecido com os anteriores”, diz Marília Maciel, gestora do Centro de Tecnologia e Sociedade, ligado à Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ).
Qualquer que seja o desfecho do caso, Marília diz que nada impede que decisões de bloqueio a aplicativos se repitam, a menos que seja costurado com o Judiciário um “entendimento do que é razoável”. Para Francisco Brito Cruz, diretor do centro de pesquisa em direito e tecnologia Internet Lab, “os juízes precisam entender como a internet funciona”.
Criptografia. De acordo com o WhatsApp, há uma questão tecnológica que impede a liberação das informações pedidas pela Justiça de Sergipe. Desde 2014, o aplicativo passou a adotar, progressivamente, a criptografia de ponta a ponta para todas as conversas realizadas pelos mais de 1 bilhão de usuários do aplicativo no mundo.
Com a tecnologia, as mensagens são codificadas na hora do envio e só podem ser decodificadas ao chegarem no smartphone do destinatário. A empresa, responsável apenas pela transmissão, não tem acesso ao conteúdo da comunicação e, por isso, alega não poder entregá-lo ao Judiciário. Mesmo se interceptá- la, não possui a chave para interpretar o código alfanumérico. “A ordem judicial não pode ser executada”, diz Brito Cruz, do InternetLab. O pesquisador faz a ressalva: “É importante lembrar que a criptografia não é proibida pelo Marco Civil da Internet nem pela legislação brasileira”.
Para o advogado Renato Opice Blum, coordenador do curso de direito digital do Insper, a tecnologia avançou mais rápido que a lei. Segundo ele, é preciso que exista um equilíbrio entre a privacidade dos usuários e a possibilidade de investigação judicial.“Se as informações não forem fornecidas, os criminosos não serão encontrados. O WhatsApp vai virar um paraíso digital para o crime, e isso não pode acontecer.” Metadados. Há quem aponte que a polícia, no entanto, pode fazer uso de outras informações nas investigações. São os chamados meta dados: eles mostram, por exemplo, a hora em que um usuário enviou uma mensagem para outro. “O conteúdo das comunicações não são o único elemento que pode levar à resolução de um caso”, diz Marília Maciel, do CTS. “A criptografia não afeta os metadados, e, segundo o Marco Civil da Internet, os aplicativos têm de guardá-los por seis meses e fornecê-los à Justiça.”O WhatsApp diz que não guarda os metadados, o que caracterizaria infração ao Marco Civil.
ENTREVISTA Matt Steinfeld, diretor global de comunicação do WhatsApp
‘Queremos resolver os problemas de forma colaborativa’ O WhatsApp diz que não tem as informações que a Justiça pede. O sr. pode explicar por quê?
Recentemente, o WhatsApp anunciou a criptografia de ponta a ponta por padrão em todas as mensagens. Isso significa que, quando uma pessoa envia uma mensagem, somente ela e o destinatário podem ler essa mensagem. Quando a mensagem é enviada, ela é embaralhada em um código de letras e números. Assim, mesmo que seja interceptada, ninguém consegue entendê-la. Ninguém pode ter acesso ao conteúdo daquela mensagem e isso inclui o WhatsApp. Nós não temos como decodificar a mensagem.
Vocês armazenam metadados sobre os usuários?
Nós tipicamente não coletamos muitos dados sobre os usuários. Quando você se cadastra no WhatsApp, você informa o número do seu telefone e nós temos essa informação. Quando falamos em metadados, nós não armazenamos essas informações em nossos servidores.
Vocês estão cientes de que o Marco Civil da Internet exige a guarda de metadados?
Nós sempre procuramos manter o serviço o mais simples possível e o fato de não armazenarmos essas informações nos permite oferecer um aplicativo mais rápido e confiável. É a forma como oferecemos o serviço em todo o mundo.
De que maneira o WhatsApp tem colaborado com a Justiça brasileira para evitar bloqueios?
Um grupo de pessoas do WhatsApp está no Brasil nesta semana para se reunir com oficiais, autoridades e promotores de Justiça para adotar uma política mais aberta de comunicação com as autoridades. Queremos ajudar a esclarecer mal entendidos ou dúvidas sobre o serviço. Nossa esperança é que uma comunicação mais clara permita que possamos trabalhar juntos para resolver os problemas de forma colaborativa.
Vocês recorreram da decisão?
Sim. Não estou certo de quando teremos uma resposta da Justiça, mas nós entramos com um recurso ontem, e a ordem de bloqueio é de 72 horas. Nós esperamos reverter essa decisão antes disso.
O WhatsApp já enfrentou situação similar em outros países?
Alguns recursos foram bloqueados por um período de tempo, mas o Brasil é muito importante para nós, com mais de 100 milhões de usuários. Nós realmente queremos que isso não se repita.
Fonte: O Estado de S. Paulo – 03/05/2016