07/12/2021
Com o horizonte estratégico mais curto, o processo cíclico de planejamento é coisa do passado. Agora é preciso usar menos previsões e mais cenários
David Cohen
Definitivamente, não há falta de insumos no mercado das incertezas. Ao contrário. O mundo parece uma montanha-russa — e o Brasil, nessa imagem, seria como um boneco de mola acoplado ao primeiro vagão: cada balanço dos carros produz nele movimentos ainda mais extravagantes.
E, no entanto, planejar é preciso. A esta altura do ano, aliás, boa parte das empresas está na fase de conclusão de seus processos de planejamento; justamente a fase mais difícil, aquela que aponta para algumas decisões de investimentos e para a formulação de metas.
Planejar, quando você tem uma ideia razoavelmente clara do que vai acontecer no futuro, é simples: basta identificar o ponto A, de partida, almejar um ponto B a ser atingido e escolher um caminho até ele, estimando o tempo de chegada.
É claro que o futuro nunca foi assim tão previsível quanto os planejamentos orçamentários faziam crer. Mas era tão mais fácil planejar assumindo um mundo estável que, durante décadas, quase todas as empresas assim o fizeram. Era a versão corporativa daquela piada em que o sujeito está há horas procurando as chaves do carro em volta de um poste de luz, até que um amigo lhe pergunta se ele tem certeza que elas caíram ali. Ele responde que não, foi mais para trás, no beco. “Então por que você está procurando aqui?”, questiona o amigo. E ele diz: “Ora, porque lá está escuro demais”.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, algumas companhias começaram a se convencer de que as incertezas eram grandes demais para ser ignoradas. Com a crescente globalização e uma aceleração no surgimento de novas tecnologias, as transformações passaram a ser a regra.
No entanto, a tentação de procurar soluções embaixo do poste, onde há luz, ainda é grande. Uma recente pesquisa do Insper, entre 80 chefes de estratégia de grandes empresas, indicou que 68% usam a ferramenta SWOT — acrônimo em inglês para a identificação de forças, fraquezas, oportunidades e ameaças —, típica da análise racionalista, cartesiana, pouco resistente a surpresas no meio do caminho. Dois terços se guiam pelo mantra de missão, visão e valores (as respostas não são excludentes), outra forma de enfatizar um caminho em linha reta rumo aos objetivos. E não chegam à metade (49%) aqueles que dizem utilizar métodos mais condizentes com uma realidade instável, tais como cenários ou a análise Pestel (que identifica vetores políticos, econômicos, sociais, tecnológicos, ambientais e legais capazes de influenciar o negócio).
Não é de espantar. As empresas precisam passar ao mercado financeiro, aos fornecedores, aos clientes e aos próprios funcionários a mensagem de que sabem para onde estão indo. E o planejamento é a melhor comunicação de que se dispõe. Sua natureza, porém, já não é a mesma.
“Minha tônica sempre foi o planejamento estratégico”, diz Paulo Apsan, que entrou na área há 45 anos, na GE americana, foi consultor da Booz Allen, presidiu as consultorias Arthur D. Little e Gemini no Brasil e hoje mantém sua Apsan Consulting e é associado à francesa Advancy. “Dizer que esse ramo mudou completamente é jogar fora a minha história. Mas eu sou obrigado a fazer isso.”
Segundo ele, o processo cíclico de planejamento é coisa do passado. “Nos últimos dez anos, 90% dos meus trabalhos foram de preparação da empresa para funcionar após uma fusão, para migrar para uma nova tecnologia ou, o que é mais comum, para apresentar um book que atraia investimentos para a companhia”, avalia.
“Antes se dizia que a organização segue o planejamento”, afirma Apsan. “Hoje, esse processo é contínuo. Às vezes, os altos executivos tiram um fim de semana de reflexão estratégica. No máximo.”
Que o horizonte estratégico encurtou, não há dúvida. Mas ainda é preciso dar direção à empresa. Como fazê-lo?
O mundo é tão incerto que o termo vuca, uma sigla para volátil, incerto, complexo e ambíguo, já está sendo considerado leve demais. Tem se espalhado agora o conceito de bani, das iniciais em inglês para frágil (não apenas volátil mas passível de quebra), ansioso (um grau acima do incerto), não linear (de uma lógica ainda mais difícil que a da complexidade) e incompreensível (um passo além da ambiguidade). Ainda assim, é necessário encontrar algum modo de prever o futuro. Uma espécie de oráculo, como faziam as civilizações antigas. Pois foi inspirada no oráculo de Delfos, da Grécia antiga, que a Rand Corporation, uma organização dedicada a pesquisas e análises para as Forças Armadas americanas, criou a Delphi technique, na década de 1950.
Tratava-se de entrevistar especialistas nos mais diversos campos de conhecimento para estimar as probabilidades de que alguns eventos ocorressem no futuro. O método evoluiu para o que o físico Hermann Kahn, um notório estrategista da Rand preocupado com as possibilidades de uma guerra nuclear, chamava de “futuro agora”: uma detalhada análise combinada com alguma imaginação para produzir um relatório tal qual poderia ser escrito por alguém vivendo no futuro.
O jornalista e escritor Leo Rosten deu a essas histórias o nome de cenários, a palavra que se usava em Hollywood, na época, para se referir aos roteiros de filmes (como se faz ainda na Europa). Como o nome indica, passava-se da tentativa de prever o futuro para a prática de criar histórias e imaginar futuros possíveis.
Na década de 1960, Kahn criou o Instituto Hudson, especializado em pensar em futuro, e conseguiu patrocínio de empresas como Shell, IBM e General Motors. Não era o único. Na mesma época, o instituto de pesquisa da Universidade Stanford, por exemplo, passou a se concentrar em futurismo. Era uma demanda em tempos de mudanças sociais intensas, com a Guerra do Vietnã e o movimento hippie.
Foi a Shell, porém, que tornou o uso de cenários famoso no mundo inteiro. Após os primeiros contatos com Kahn, a empresa passou a construir cenários no final da década de 1960. Alguns deles levavam em consideração que o petróleo não seria barato para sempre. Quando os países árabes, em represália ao apoio dos Estados Unidos a Israel na Guerra do Yom Kippur, em 1973, quadruplicaram o preço do barril, a Shell já tinha planos de contingência à mão: investiu na produção de carvão, apostou em energia nuclear, explorou metais, aumentou sua exploração de óleo nos Estados Unidos e no Mar do Norte. De uma das menos valorizadas entre as sete multinacionais do petróleo da década de 1970, tornou-se a líder mundial.
O caso de sucesso, por mais extraordinário que pareça, permanece até hoje isto mesmo: extraordinário. “Companhias que construam cenários com a profundidade que a Shell faz? São pouquíssimas”, afirma o professor Luiz Vieira, senior fellow do Insper especializado em estratégia e membro de diversos conselhos de administração de empresas. “Agora, montar alternativas para um cenário conservador, outro agressivo e um terceiro moderado, isso todas fazem. Quer dizer, algo no caminho da adoção de cenários as empresas têm.”
Esse algo ainda é provavelmente pouco em relação ao necessário. Num artigo na Harvard Business Review em 1997, os consultores Jane Kirkland e Patrick Viguerie e o professor de estratégia Hugh Courtney definiram quatro níveis de incerteza.
Para os níveis 1 e, vá lá, 2 o planejamento tradicional faz sentido. Acrescentem-se a ele algumas observações sobre riscos potenciais e modos de mitigá-los — aqueles que constam em qualquer relatório financeiro de grandes empresas — e pronto, o trabalho está feito, nos vemos de novo no ano que vem.
Mas este não é o caso do Brasil. Aqui, pelo menos na maioria dos setores, a incerteza mora em algum lugar entre os níveis 3 e 4.
Há diversas formas de lidar com um ambiente Vuca. Eis algumas:
# Backcasting, basicamente “olhar para trás”. A ideia é definir um futuro que você queira que se torne realidade e em seguida planejar, de trás para a frente, que ações você precisa adotar para que ele aconteça. Lembra um pouco aquelas recomendações de programação neurolinguística, de se olhar no espelho e se convencer de que você é um sucesso, mas o segredo está na implementação do processo.
Ari Weinzweig, cofundador da Zingerman’s, uma associação de restaurantes gourmet no Michigan, chama isso de visioning: a visão do que seria um sucesso ajuda a engajar o pessoal e dá clareza ao que é necessário fazer para chegar lá.
Um processo semelhante é uma prática usada em larga escala por ninguém menos que a Amazon. Qualquer proposta de ação, pelo método instaurado por Jeff Bezos, tem de ser apresentada como um comunicado à imprensa. Em duas páginas, a pessoa apresenta sua ideia como se ela já estivesse em funcionamento, fazendo seu lançamento, expondo por que ela é ótima e explicando como se chegou até aquele sucesso.
# Análise de possibilidades é a forma inicial para lidar com incertezas. É aquilo que deu origem à construção de cenários, mas é errado atribuir sua formulação a Herman Kahn ou a qualquer outro estrategista moderno, quando o filósofo romano Sêneca já era tão claro sobre o assunto. No século I da era cristã, ele prescreveu o conceito de premeditatio malorum, prever os males: “O que não é esperado tem efeitos mais devastadores, a surpresa é acrescentada ao desastre. Esta é a razão para nos assegurarmos de que nada jamais nos tome de surpresa. Devemos projetar nossos pensamentos à frente em cada curva, ter em mente toda possível eventualidade em vez de apenas o curso usual das coisas”.
# Análise de tendências vai um pouco além. É a tentativa de identificar movimentos que já estão em curso e que de alguma forma podem atingir a empresa. Em 1970, o Futures Group desenvolveu a técnica de análise de impacto das tendências (Tia, na sigla em inglês), cujo nome é auto-explicativo. O processo é realizado com a coleta de informações de especialistas os mais variados. “Na virada do século, fizemos um trabalho de mapeamento de futuros para o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) na América do Sul”, lembra Luiz Vieira. “Uma das entrevistas mais enriquecedoras foi com um regente da orquestra de Caracas.”
# Análise de padrões é algo um pouco diferente. Trata-se de buscar padrões de comportamento de variáveis ao longo do tempo. Por exemplo, analisar as curvas de inflação (ou a taxa de câmbio, ou alguma outra variável) nos últimos 50, 60 anos para despertar insights sobre o que pode acontecer no médio prazo.
# Agile. Inicialmente um manifesto para o processo de produção de softwares, tornou-se outra metodologia para lidar com incertezas. A ideia é criar projetos de curta duração, com clara comunicação e revisão de resultados em prazos curtos, por vezes semanalmente. É o que antigamente se chamava de método interativo, por tentativa e erro, e que hoje ganhou um lema mais chamativo: fracasse rápido. O método Agile tem a ver com a cultura beta — os produtos nunca estão prontos, estão sempre em evolução, e a qualquer momento a empresa pode pivotar, ou seja, mudar de direção.
É, em suma, uma clara aposta na flexibilidade. E isso tem lá seus óbices, porque a flexibilidade tem correlação negativa com a eficiência. Ou seja, a contenção de riscos, pelo lado da proteção contra grandes mudanças, cria riscos pelo lado da redução do foco na atividade em curso – algo que, num mundo ultracompetitivo, pode causar problemas sérios.
Não quer dizer que não dê resultados. Basta ver a Netflix. Do ponto de vista organizacional, a empresa tem uma política de tanta descentralização quanto possível, justamente para responder com mais rapidez a mudanças percebidas na linha de frente. Mas a filosofia Agile é ainda mais impregnada que isso, está no âmago da estratégia. A Netflix começou com a ideia de alugar fitas de vídeo, só conseguiu fazer o negócio andar quando inventaram o CD (por ser mais leve, a conta do correio passou a fechar), migrou para a internet com streaming e licenciamento do conteúdo, então percebeu que precisava se tornar uma produtora de conteúdo. Mudou para se adequar a um mundo em transformação.
O Agile tem, no entanto, suas limitações. “Eu jamais usaria um modelo Agile para construir minha casa”, diz Luiz Vieira. “É um método interessante quando você ainda precisa descobrir o que o cliente quer.”
Em algum momento, porém, todas as precauções contra a instabilidade recaem em algum tipo de análise de cenários. E há basicamente dois tipos, de acordo com Charles Thomas, um dos fundadores da consultoria Futures Strategy Group. O primeiro é o cenário a partir de eventos. Por exemplo: o que acontece com a nossa empresa quando o 5G for implantado?
O segundo tipo, aquele que a Shell tornou famoso, é o cenário de gestão estratégica, ou de futuros alternativos. “É preciso ficar claro que fazer cenários não é simplesmente promover uma análise de sensibilidades. É criar mundos diferentes, e fazer o planejamento para esses mundos”, diz Luiz Vieira.
Segundo David Kallás, sócio da consultoria KC&D e professor do Insper, normalmente se trabalha com quatro cenários principais. Para cada um deles, constrói-se uma descrição breve do futuro, identificam-se os sinais de alerta precoce (eventos indicativos de que aquele cenário tem mais chances de se realizar) e criam-se potenciais estratégias tanto para ataque (aproveitar oportunidades) como para defesa (reduzir efeitos adversos). “A partir da construção de cenários, a organização pode medir a resiliência de suas estratégias”, afirma Kallás. “Identificar e medir a aderência que elas tenham com cada cenário.” As decisões fáceis são aquelas em que a estratégia se mostra boa em todos os cenários. Decisões complicadas são aquelas em que uma estratégia ótima no cenário A é péssima no cenário B.
Como disse no ano passado Carlos Brito, então CEO da ABInbev, em entrevista ao HBR Idea Cast, um podcast da Harvard Business Review: “Nós tentamos focar nas coisas que podemos controlar e, para aquelas que não podemos controlar, como a maioria das empresas, temos cenários e gatilhos para a ação”.
Uma das forças da metodologia de cenários é que ela ajuda a prevenir contra o pensamento de grupo. “É frequente que nas companhias as pessoas concordem com a pessoa mais poderosa do grupo; a construção de cenários permite que se rompa essa armadilha ao criar um ambiente seguro para ideias diferentes”, escreveu em 2009 Charles Roxburgh, então diretor da consultoria McKinsey no Reino Unido e hoje segundo secretário do Tesouro do país.
Cenários, segundo ele, é uma arte, não uma ciência, mas ele aponta algumas regras práticas:
“Os cenários só serão bem feitos se você tiver duas qualidades: pensamento crítico e pensamento sistêmico”, afirma Luiz Vieira. No primeiro caso, porque para construir hipóteses você precisa questionar os seus modelos mentais. “Se as vendas caíram, a tendência do vendedor é recomendar que se baixe o preço; mas você pode ter tido uma campanha contra a empresa numa mídia social, ou o produto pode ter perdido qualidade”, diz ele. No segundo caso, trata-se de entender que o mundo é repleto de variáveis interdependentes.
É claro que nada disso soluciona o dilema fundamental de operar num mundo incerto, instável, volátil, não linear, incompreensível. São linhas de ação para se proteger, até o limite do aceitável — porque a proteção tem custos. Manter estoques altos, por exemplo, é um modo de evitar o risco de interrupção da produção e atenuar oscilações nos preços. Porém, isso implica o custo de manter estoques e o risco de a mercadoria encalhar.
Daí a importância dos gatilhos, as variáveis a monitorar obsessivamente. Quanto mais rápido você entender que a situação mudou, mais ágil é a sua adaptação. Uma grande organização ganha muita eficiência ao reduzir sua gama de fornecedores, mas aumenta sua dependência. Uma alternativa é desenvolver fornecedores alternativos, em menor escala — que pode ser ampliada caso surja a necessidade.
Também é claro que as estratégias citadas acima não são excludentes. Como disse Sêneca, você não pode evitar acontecimentos indesejados. Mas pode se preparar para eles.