03/02/2022
As lições (ao contrário) da demissão coletiva na empresa americana Better.com
David Cohen
Não há como garantir que, numa posição de liderança, você jamais tenha que demitir alguém. Também não há como assegurar que, nessa situação, você não vá cometer enganos: é simplesmente impossível montar um manual válido para qualquer contexto. A demissão coletiva anunciada por Vishal Garg em sua empresa Better.com, no início de dezembro de 2021, porém, vale como uma aula… do que não fazer.
O problema começa pelo fato de a demissão ter sido coletiva. “Quando você contrata alguém, o processo é individual”, diz a psicóloga Maria Elisa Moreira, professora de liderança do Insper. “Você avaliou o currículo, chamou para uma entrevista, depois mostrou onde a pessoa ia sentar etc. Por que na hora da saída seria diferente?” Especialmente num momento com tanto potencial de ser dramático, as pessoas merecem ser tratadas como indivíduos.
Em meio à pandemia, no entanto, com um número considerável de pessoas trabalhando remotamente e fazendo reuniões por vídeo, ficou mais complicado encerrar os laços de emprego presencialmente.
Foi o dilema que enfrentou a loja de roupas de aluguel Rent the Runway, em março de 2020. Com lojas fechadas por causa das regras de distanciamento social e o faturamento despencando, a empresa precisou demitir. Não fazia sentido reabrir alguma loja apenas para chamar os empregados para encontros cara a cara.
Mas é preciso fazer isso em reuniões coletivas pelo Zoom? Em caso de um grande número de desligamentos, essa opção é justificável: dar a notícia a todos ao mesmo tempo evita que algumas pessoas saibam da notícia por vias transversas. Há também questões de segurança corporativa. É praxe cortar o acesso da pessoa demitida a programas de segurança, incluindo o email da empresa — daí a necessidade de dar a notícia a todos simultaneamente.
O lado negativo dessa decisão é que você pega todo mundo de surpresa. Como recomendam inúmeros especialistas em gestão de gente, o ideal é que o funcionário tenha consciência, ao longo do tempo, de onde ele está errando — e tenha diversas oportunidades de correção de rumo. Mesmo quando a demissão é motivada por circunstâncias alheias ao desempenho individual (o fechamento de uma fábrica, por exemplo), é questão de civilidade preparar as pessoas para a má notícia.
“Se você precisa promover uma demissão coletiva por Zoom, o mínimo que pode fazer é agendar a reunião, informando qual é a pauta”, diz Maria Elisa. Nesse caso, é preciso se equilibrar entre a consideração com os funcionários e a conveniência de não dar a notícia antes de dar a notícia (marcar uma reunião para o dia seguinte com o tema de “você será demitido” é, na prática, demitir por email, algo ainda mais impessoal do que demitir por vídeo).
A startup de viagens Pana encontrou um meio-termo, quando teve de desligar 15 pessoas, também em março de 2020, graças ao baque que a pandemia provocou no setor. Logo cedo, enviou uma mensagem a todos os funcionários dizendo que haveria duas reuniões, naquela mesma manhã, umas às 9h, para os que seriam mandados embora, outra às 9h45, para os que ficariam.
Um pouco mais brusco foi o processo de demissões na TripActions, uma plataforma de reservas de viagens corporativas, no mesmo mês. Quase 300 funcionários foram desligados, cerca de 25% do total. Assim como no caso da Better.com, a empresa havia acabado de receber aportes de investidores. Havia, também, refinanciado suas dívidas recentemente. Mas era preciso, segundo a empresa afirmou ao site de notícias Protocol, “tomar as medidas necessárias para assegurar às companhias clientes e aos viajantes que nós estaremos funcionando por um longo tempo”.
Não houve, na empresa, sinalização prévia de que haveria demissões. Porém, as reuniões foram em grupos, por equipe ou departamento, e em seguida cada demitido teve uma conversa virtual com seu gerente.
Quando há uma demissão em cadeia desse tipo, é preciso informar os mais graduados primeiro. “Ninguém deveria passar pelo desgaste de demitir alguém e, na sequência, descobrir que seu próprio cargo foi eliminado”, diz a especialista em recursos humanos americana Suzanne Lucas, que se denomina Evil HR Lady (mulher maldosa do RH) em coluna no site da revista Inc.
Algumas outras recomendações de Suzanne incluem:
* as reuniões devem ser curtas, mas deve-se dar às pessoas a chance de dizer o que sentem; e você deve reservar um tempo para responder.
* é razoável cortar o email corporativo dos desligados; assegure-se, então de enviar os papéis da demissão por correio para suas casas, um dia depois da notificação (de forma a não correr o risco de os papéis chegarem antes da reunião).
* redija um documento com as questões mais frequentes das pessoas demitidas e entregue uma cópia aos gerentes que darão a notícia, para que se preparem.
* forneça aos empregados o contato de um ser humano — não um robô — a quem podem telefonar para fazer perguntas.
E, o mais importante: quando a situação voltar ao normal e não houver restrições para encontros, as demissões devem voltar a ser feitas cara a cara — as exceções valendo apenas para empregados remotos, que nunca interagem presencialmente.
Demissões coletivas, aliás, não são sequer permitidas em alguns países. No Reino Unido, por exemplo, os empregados têm direito a uma consulta individual para entender o motivo do desligamento. “Não há problema em fazer uma reunião para anunciar potenciais demissões, mas você não deveria desligar pessoas na mesma videoconferência”, disse a advogada Sarah Evans ao site de notícias BBC.
Uma reunião preparatória, segundo ela, deve esclarecer que a empresa está considerando fazer demissões e explicar o que isso significa para o negócio — e como será o procedimento com as pessoas que perderem o trabalho. “O certo é que haja pelo menos um par de encontros para debater oportunidades de evitar as demissões e considerar alternativas, como licenças”, afirmou.
Parece que Vishal Garg ouviu todos os conselhos de como demitir corretamente… e fez o oposto. A reunião foi marcada sem nenhuma indicação de que havia problemas na empresa. Garg afirmou que aquela era uma situação muito desagradável… para ele, que já tinha passado por uma experiência assim antes e até chorou. Disse que quem estava naquela reunião pertencia ao “grupo azarado” dos que seriam demitidos.
Mais tarde, acusou os próprios funcionários pelo desligamento, dizendo que boa parte deles registrava oito horas de trabalho diários, mas produzia por apenas duas. Aos que ficaram, afirmou que eram “sortudos” e aumentou suas metas, segundo o depoimento de um funcionário ao site Business Insider. Veio à tona, com o escândalo, um histórico de comportamento abusivo em relação aos funcionários.
“O vídeo da demissão na Better.com é surreal”, diz Maria Elisa. “A fala dele demonstra uma liderança aparentemente tóxica, não preparada para lidar com crises.”
Entre os inúmeros erros em poucos minutos, ela aponta a displicência na narrativa. Uma reunião dessas tem que ser preparada, ensaiada. “Se você não está preparado para demitir, chame alguém que esteja para ajudar.” Não à toa, o diretor de recursos humanos da empresa pediu demissão alguns dias depois.
Nem mesmo o código de roupas foi adequado, aponta Maria Elisa. Startups são empresas em geral informais, mas a situação requeria mais sobriedade.
O discurso foi ainda pior. “Uma situação dessas nunca é agradável. Vai haver mortos e feridos”, diz. Mas a narrativa precisa ser mais cuidadosa. Um líder pode (deve) explicar a situação da empresa, o que levou àquela escolha drástica, por que a demissão é necessária (para preservar a própria companhia e, mais para a frente, ter a chance de trazer mais colaboradores de novo).
“Um líder tem que ter a sensibilidade para dizer as palavras corretas”, opina Maria Elisa. “Precisa trazer um pouco de alento e gratidão a quem se dedicou pela empresa, mesmo se elas não tiveram um desempenho considerado satisfatório.”
A principal consequência de um processo assim malfeito é a perda da credibilidade da empresa como um ambiente psicologicamente seguro. Como trabalhar tranquilo se a qualquer momento pode haver uma surpresa negativa dessas? “As chefias intermediárias também vão sofrer a desconfiança de seus comandados, mesmo se não soubessem de nada”, afirma a professora do Insper.
Não é de espantar que um grande número de funcionários estivesse torcendo para que Vishal Garg não voltasse de sua licença para “repensar seus métodos de liderança”. A torcida não funcionou. Ao que tudo indica, ele foi tratado pelo conselho — em última análise, pelos investidores — com muito mais consideração do que demonstrou pelos outros.
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