22/10/2021
Trabalhando nos bastidores, esses profissionais têm um papel fundamental no desenvolvimento de ferramentas para enfrentar a pandemia do novo coronavírus
No dia 31 de dezembro de 2019, uma startup canadense, a BlueDot, especializada em monitorar o surto e a propagação de doenças infecciosas, emitiu um alerta para seus clientes: um jornal local acabara de relatar 27 casos de uma doença misteriosa, similar a uma gripe, na cidade chinesa de Wuhan. Os sinais eram alarmantes: sete pessoas haviam sido internadas em estado grave e apresentavam sintomas como febre alta, tosse seca e falta de ar. Somente pouco mais de uma semana depois, em 9 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde confirmaria pela primeira vez que um novo coronavírus havia sido isolado em um paciente hospitalizado em Wuhan — mas descartou a necessidade de qualquer tipo de restrição a viagens procedentes da China.
A BlueDot foi não somente uma das primeiras empresas do mundo a identificar o risco emergente da covid-19, como também previu corretamente que a doença poderia chegar rapidamente a lugares como Hong Kong, Singapura, Seul e Tóquio, que estavam conectados a Wuhan por voos diretos. Para fazer suas previsões, a BlueDot usa uma plataforma construída com tecnologias como inteligência artificial, aprendizado de máquina e big data. A startup, baseada em Toronto, utiliza algoritmos para rastrear e selecionar dados de centenas de milhares de fontes, desde organizações oficiais de saúde e veículos de imprensa até redes sociais e companhias aéreas. É capaz de processar um grande volume de informações em poucos segundos, 24 horas por dia. E só consegue fazer isso porque conta com uma equipe de 40 especialistas de diversas áreas, incluindo cientistas da computação.
A pandemia da covid-19 colocou em evidência esses profissionais, responsáveis por desenvolver softwares e aplicativos para diversos dispositivos, como celulares e computadores. Como os cientistas da computação trabalham nos bastidores, muita gente não se dá conta de seu papel crucial no combate ao novo coronavírus, que já matou mais de 4,8 milhões de pessoas no mundo. “Com frequência, você vê médicos dando entrevistas sobre o coronavírus e raramente observa cientistas da computação falando sobre o tema, mas estes profissionais também atuam na linha de frente contra a covid-19”, diz Luciano Silva, professor de Engenharia de Computação do Insper. “Eles ajudam a criar muitas ferramentas úteis que pessoas leigas nem imaginam que existam, mas são fundamentais na busca de um tratamento para a doença.”
Um exemplo da contribuição desses profissionais é o que se chama de computação distribuída: o uso do poder computacional de diversas máquinas interligadas em uma rede. Para isso, as pessoas instalam voluntariamente no computador de casa ou do escritório um software, que é executado em segundo plano ou aproveita o tempo ocioso da máquina. Dessa maneira, muita gente pode contribuir para uma pesquisa científica que demanda computadores com alta capacidade de processamento.
A principal iniciativa de computação distribuída envolvendo a covid-19 é a Folding@home, um projeto que surgiu na Universidade Stanford em 2000 para estudar como as proteínas se auto-organizam e por que esse processo às vezes dá errado, causando problemas como certos tipos de câncer e doenças como Alzheimer e Parkinson. Com a pandemia do novo coronavírus, os responsáveis pela Folding@home decidiram concentrar a atenção no vírus Sars-CoV-2, causador da covid-19. Em linhas gerais, o objetivo dos cientistas é simular como uma molécula da proteína do vírus se movimenta, uma vez que isso tem impacto na forma e no funcionamento da molécula. Esse tipo de informação pode ajudar os cientistas a entenderem como age o vírus e como tratar uma doença. Simular esses movimentos da molécula, porém, requer um número formidável de cálculos, daí a necessidade de máquinas superpotentes.
No início de 2020, cerca de 30 mil computadores pessoais colaboravam nos estudos da Folding@home sobre diversas doenças. Veio a covid-19 e a adesão de voluntários disparou. Em duas semanas, cerca de 400 mil novos dispositivos se juntaram ao projeto. No auge, mais de 4,8 milhões de CPUs (unidades de processamento central) e 280 mil GPUs (unidades de processamento gráfico) ajudaram nas simulações de proteínas que interagem com o vírus Sars-CoV-2. Juntas, essas máquinas têm setes vezes a capacidade de processamento do supercomputador mais veloz do mundo até então, o Summit, da IBM — alguma coisa da ordem de 1,5 quintilhão de operações por segundo. O projeto já possibilitou a descoberta de novas estruturas de proteínas antes inacessíveis para a comunidade de pesquisadores. O objetivo agora é desenvolver um complemento para as vacinas: um medicamento antiviral oral que seja eficaz contra o Sars-CoV-2 e livre de patentes, para ser fabricado com baixo custo e em larga escala em todo o mundo.
Uma empreitada desse tipo não seria possível sem o trabalho de cientistas de computação. “Na computação distribuída, são esses profissionais que fazem todo o projeto de infraestrutura computacional para possibilitar o uso de máquinas voluntárias. Além disso, eles implementam os sistemas necessários para a coleta dos dados”, diz o professor Silva, um dos voluntários que cederam sua máquina pessoal para o projeto da Folding@home. Os cientistas da computação também desenvolvem os algoritmos, que são como uma receita de bolo na computação — são sequências de tarefas que devem ser executadas pelas máquinas para a resolução de problemas complexos como a identificação de novas variantes do Sars-CoV-2 e a busca de uma cura para a doença. “Alguns problemas são tão complexos que o número de possibilidades é maior do que a quantidade de átomos no universo. Dependendo do jeito que você tenta resolver o problema, nenhum computador já inventado vai dar conta. Daí a importância do cientista da computação. Ele ajuda a definir o que é computável ou não, além de desenvolver toda a programação”, diz o professor Fabio de Miranda, coordenador do novo curso de Ciência da Computação do Insper.
A covid-19 acelerou a transformação digital das empresas e tornou os cientistas da computação ainda mais demandados no mercado, segundo André Filipe de Moraes Batista, professor e coordenador de pós-graduação em Data Science e Decisão no Insper. “Desde o início da pandemia, esse profissional tem se mostrado extremamente versátil, atuando em várias frentes”, diz. Ele enxerga três principais campos de atuação dos cientistas de computação na pandemia: criar softwares para automatizar rotinas e facilitar processos nas empresas; organizar bases de dados para permitir a análise de resultados e tomadas de decisão mais certeiras; e projetar interfaces mais amigáveis para melhorar a comunicação e a interação dos cidadãos com empresas e governos. “O espectro de atuação é bastante amplo”, diz Batista.
Para ele, um dos exemplos de maior impacto do uso da ciência da computação desde o início da pandemia é o dashboard criado pelo Centro para Ciências de Sistemas e Engenharia da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Em janeiro de 2020, quando notícias sobre um novo coronavírus na China começaram a se espalhar pelo mundo, um aluno chinês da universidade americana criou um painel de covid-19 do zero, trabalhando algumas horas à noite. O painel foi aperfeiçoado pela equipe e passou a mostrar a localização e o número de casos confirmados, de pessoas recuperadas e de mortes em todos os países atingidos pela pandemia, com dados atualizados várias vezes ao dia. Em pouco tempo, virou uma referência global para o monitoramento da pandemia. No final de fevereiro de 2020, o dashboard da Johns Hopkins já estava obtendo 1 bilhão de acessos por dia. No pico, atingiu 4,5 bilhões de acessos por dia.
O painel da Johns Hopkins ajudou pessoas leigas a entenderem conceitos de estatística como “achatamento da curva” e “média móvel”, bem como os governos a tomarem decisões em relação a medidas de restrição ou de relaxamento durante a pandemia. Ao mostrar dados comparativos de países com diferentes graus de sucesso no enfrentamento da pandemia, a ferramenta estimulou boas práticas, como a realização de testes em massa, o uso de máscaras e a vacinação. “O dashboard mais acessado da história é supersimples, mas talvez tenha sido a nossa principal carta náutica para atravessarmos a pandemia”, diz Batista.
Não faltam exemplos de bom uso da ciência da computação na luta contra a covid-19 também no Brasil. O próprio Batista participa de um grupo de pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo que ganhou o Prêmio Abril & Dasa de Inovação Médica 2020, na categoria inovação em prevenção. A equipe de cientistas criou uma rede de inteligência artificial para covid-19 no Brasil, batizada de Iacov-BR, com o objetivo de auxiliar os médicos no encaminhamento de pacientes que chegam ao hospital com sintomas da doença. Diante da escassez de recursos na maioria dos hospitais, os médicos muitas vezes são obrigados a tomar decisões difíceis, como definir quais pacientes vão precisar de ventilação mecânica e ser acompanhados mais de perto em ambiente hospitalar e quais pacientes podem se recuperar mantendo o isolamento na própria casa.
“Conseguimos reunir dados de milhares de pacientes do Brasil e criar modelos preditivos com o uso da inteligência artificial para auxiliar os profissionais da saúde a realizarem diagnósticos da covid-19”, diz Batista. Atualmente, a rede reúne dados de quase 17.000 pacientes de 18 hospitais das cinco regiões do país. Analisando dados como idade, sexo e resultados de hemograma, a plataforma criada pelos cientistas é capaz de predizer a evolução do quadro do paciente, incluindo o risco de desfechos mais graves, como internação em UTI, necessidade de ventilação mecânica e óbito. “No Brasil, um paciente precisa percorrer em média 155 quilômetros para chegar a um hospital e receber atendimento médico de alta complexidade. Por isso é fundamental realizar diagnósticos mais rápidos e assertivos”, diz Batista. Em um dos estudos realizado pela equipe da Iacov-BR envolvendo 1.040 pacientes com sintomas de coronavírus atendidos no hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo, a plataforma obteve 92% de acerto no diagnóstico. A equipe agora se prepara para lançar um aplicativo para disponibilizar a plataforma em celulares e tablets, o que facilitará o acesso pelos profissionais da saúde.
Outra iniciativa na área da saúde que se destacou no Brasil pelo uso da inteligência artificial é a RadVid19, uma plataforma desenvolvida Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Com a participação de um núcleo de pesquisadores, radiologistas e profissionais das ciências da computação, o projeto construiu um banco de dados com cerca de 25 mil imagens de raio-X e tomografia de casos suspeitos e confirmados de covid-19, fornecidas por 49 laboratórios e hospitais do país.
A ideia do projeto é classificar as imagens e disponibilizar o repositório para o desenvolvimento de algoritmos de machine learning. O primeiro algoritmo já implantado na plataforma faz a varredura e a análise das imagens de tomografia coletadas e, por comparação, indica se a imagem do pulmão de um determinado paciente apresenta ou não um quadro de infecção. O algoritmo aponta o grau de comprometimento do pulmão, auxiliando os médicos na tomada de decisão sobre a necessidade ou não de internação — o que pode fazer a diferença entre a vida e a morte de muitos pacientes com a covid-19.
Para desenvolver softwares e aplicativos que estão ajudando o mundo a enfrentar a pandemia, o cientista da computação precisa ter uma base sólida de matemática e de raciocínio lógico, mas é fundamental também gostar de aprender coisas novas, diz o professor Miranda. “O profissional que trabalha nessa área precisa ter disciplina para realizar análises até conseguir fazer o programa funcionar. Não pode ser alguém que acha que vai conseguir resolver tudo em 10 minutos.” Além de competências técnicas, Miranda diz que é importante que o profissional desenvolva habilidades interpessoais e socioemocionais e tenha uma atitude de aprendizado constante. Só assim ele conseguirá atuar no mercado em times de desenvolvimento de software tanto escrevendo códigos quanto assumindo o papel de líder, cuidando de assuntos como qualidade, prazos e viabilidade do produto.
O cientista da computação nunca trabalha sozinho. Em geral, ele atua em equipes multidisciplinares e precisa ser capaz de entender outras áreas de conhecimento para saber como a computação pode ajudar a resolver os problemas. Para desenvolver um software que vai ser usado no sequenciamento genético de um vírus, por exemplo, ele terá que entender um pouco de biologia. “Os biólogos, em geral, não gostam de aprender a programar. Então, é o cientista da computação que acaba aprendendo a linguagem básica da biologia, da genética, da bioquímica, para entender os objetos que vai ter de manipular”, diz o professor Silva. Da mesma forma, se o profissional vai trabalhar com computação quântica, precisa aprender um pouco de física. Ou se vai trabalhar com computação musical, entender um pouco de música. “O cientista da computação precisa gostar de desafios. E ter disposição para estudar o resto da vida”, diz Silva.