28/11/2014
Com espaço para todos Os centros urbanos estão cada vez maiores e mais complexos. Uma conclusão do EXAME Fórum de Sustentabilidade: pôr ordem no caos é uma tarefa coletiva – do governo e da sociedade. Poucos países passaram por um processo de urbanização tão acelerado quanto o Brasil.
O país, predominantemente rural até a década de 60, tem hoje 85% da população vivendo nas cidades. Criaram-se polos de serviços, de comércio e de produção industrial. As 55 maiores cidades respondem por praticamente a metade do produto interno bruto – dessas, sete capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Curitiba, Belo Horizonte, Manaus e Porto alegre) concentram a geração de um quarto de riqueza do país.
Com a expansão, porém, vieram os problemas. O inchaço urbano é a raiz de pressões ambientais, como o aumento da emissão de gases causadores de efeito estudo e o crescente consumo de água.
A concentração de pessoas também acentua conflitos, como mostraram os protestos ocorridos em junho do ano passado no Brasil. “Vivemos um momento no qual o direito à cidade é reclamado por diversos grupos”, afirma Philip Yang, fundador do Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole, organização que atua na recuperação urbanística e responsável pelo projeto de um parque a ser construído às margens do rio Tietê, em São Paulo.
“É importante criar um modelo para integrar a sociedade civil, o poder público e a iniciativa privada para transformar os espaços urbanos.” Discutir o desenvolvimento sustentável das cidades foi o objetivo do EXAME Fórum de Sustentabilidade, realizado no dia 5 novembro em São Paulo. Uma das principais conclusões do fórum é que o desafio de organizar as cidades e de melhorar a qualidade de vida de seus habitantes precisa ser compartilhado entre a sociedade e os governos.
Parte importante da responsabilidade de pôr em ordem no caos é do poder público. No caso brasileiro, cabe às prefeituras a tarefa de estabelecer os marcos legais para a convivência urbana. Só isso, porém, não basta. Para as cidades cumprirem seu papel de motor de desenvolvimento, é preciso que tenham instituições fortes.
Elas servem para garantir a aplicação da lei, a participação popular na definição de prioridades e a contribuição do setor privado na manutenção de um ambiente favorável à expansão dos negócios. “São as atitudes dos cidadãos que podem levar a transformações nas cidades”, diz Roberto Bezerra, prefeito de Fortaleza. “O papel das prefeituras é estimular a participação.” São Paulo, a maior cidade do país, está passando por uma experiência interessante.
Desde o dia 1º de agosto, está em vigor um novo plano diretor, um conjunto de regras para ordenar o crescimento da cidade. A lei foi discutida em audiências que reuniam desde representantes de organizações populares, como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, até empresários. “Não podemos entender as cidades como territórios fragmentados”, diz Fernando de Mello Franco, secretário de Desenvolvimento Urbano de São Paulo. “Os espaços públicos precisam ser ambientes onde exista integração entre cidadãos de todas as classes.”
O novo plano diretor tem entre seus objetivos encontrar uma solução para o que hoje é um dos principais gargalos paulistanos – as deficiências na mobilidade. Prevê, por exemplo, estímulo à construção de moradias nas proximidades das ruas e avenidas que compõe os principais corredores de transportes de massa, como as linhas de ônibus e de metrô. A ideia é reduzir o deslocamento da residência ao trabalho. Para os carros, há restrições. Com a nova lei, nas áreas próximas aos corredores de ônibus e de estações de metrô e trem, o número de vagas em garagens será limitado.
Se um edifício tiver mais de uma vaga por morador, será preciso pagar mais por isso. O caso paulistano pode indicar uma tendência. “No futuro, o uso do carro vai ser como o cigarro hoje em dia: desencorajado pela sociedade”, diz o arquiteto Jaime Lerner, ex-prefeito responsável pela implantação de corredores de ônibus em Curitiba ainda na década de 70.
Lerner é um dos maiores defensores da restrição aos automóveis. Só a capital paulista tem 5,4 milhões de carros em circulação, o que resulta numa média de um veículo para cada duas pessoas. A má notícia: sozinho, nem o melhor planejamento garante a uma cidade as condições necessárias para vencer seus desafios. Muitos aspectos abordados num plano diretor dependem de regulamentação – e é aí que, na maioria das vezes, as coisas complicam.
Os planos diretores precisam se articular a outras leis que direcionam a configuração urbana – o que raramente acontece do jeito certo. “Os legisladores muitas vezes produzem normas que têm pouco a ver com as reais necessidades da população”, diz Jonas Donizette, prefeito de Campinas, a segunda cidade mais populosa do interior de São Paulo.
A complexidade é, muitas vezes, a causa do fracasso na aplicação das leis. “Criamos regras muito detalhadas, num nível de complexidade que trava o desenvolvimento“, afirma o economista Marcos Lisboa, vice-presidente do Insper. “Ao tentar prever o desdobramento de tudo, nossa legislação impede que as cidades experimentem novas formas resolver os problemas. “
Isso é um risco do que pode acontecer no caso paulistano, cujo próximo passo é a reformulação da Lei de Uso e Ocupação do Solo, que estabelece as regras para a instalação de indústrias e a construção de edifícios residenciais, entre outras.
Até janeiro de 2015, a prefeitura deve enviar um projeto de lei à Câmara de Vereadores.
Preocupação global
Encontrar saídas para o desenvolvimento urbano é um problema mundial. Segundo a Organização das Nações Unidas, mais da metade da população do planeta vive hoje em cidades – até 2050, essa parcela deverá aumentar para quase 70%. Internacionalmente, porém, não faltam exemplos de cidades bem-sucedidas ao enfrentar seus problemas.
Tome-se o caso de Nova York. Na década de 90, um dos principais desafios da cidade americana era reduzir as altas taxas de criminalidade. De 1991 a 2011, Nova York cortou os índices de homicídios, roubos e furtos em 80% – uma diminuição duas vezes mais expressiva do que a registrada nos Estados Unidos como um todo no mesmo período.
Em parte, os resultados foram alcançados com uma atuação mais ostensiva da polícia nos bairros mais violentos – mas não foi apenas isso. A diminuição da criminalidade também decorreu de um programa para revitalizar áreas degradadas, até então marcadas por uma paisagem na qual proliferavam edifícios com janelas quebradas e muros pichados.
Outro bom exemplo é o de Barcelona, onde a Olimpíada de 1992 desencadeou uma série de transformações. É o caso da zona portuária, na época subutilizada devido ao processo de desindustrialização pelo qual a cidade havia passado na década de 80. Uma reforma permitiu ao porto receber navios turísticos, além dos cargueiros, que ate então eram praticamente as únicas embarcações a atracar no local.
Além disso, uma linha de trem que antes passava pela orla foi transposta para um túnel subterrâneo, liberando a vista do mar Mediterrâneo e transformando a área num ponto de encontro para moradores e turistas.
Há pelo menos uma boa notícia no Brasil: o crescente envolvimento das empresas, da população e do poder público no processo de planejamento urbano. Um dos principais exemplos é o da Rede Nossa São Paulo, que reúne mais de 700 organizações com o objetivo de colaborar nas políticas do governo municipal.
A entidade atua na criação de indicadores usados pelos gestores públicos para definir as metas a ser atingidas em cada subprefeitura de São Paulo. “No Brasil, poucas cidades têm indicadores confiáveis, algo essencial para o estabelecimento de metas”, diz Oded Grajew, coordenador-geral da Rede.
O modelo foi replicado em Ilhéus, na Bahia, onde a participação popular foi impulsionada pelo desejo de transparência. “Percebemos que seria preciso fiscalizar o poder público e passamos a acompanhar em tempo real a atuação dos vereadores na Câmara Municipal”, diz Maria do Socorro Mendonça, diretora-presidente do Instituto Nossa Ilhéus.
No Rio de Janeiro, a internet facilitou o surgimento de experiências semelhantes: a rede Meu Rio conseguiu dar corpo a uma série de reivindicações por meio de uma plataforma digital que, entre outras ações, possibilita o envio de e-maus diretamente a gestores públicos em prol de determinada causa.
Neste ano, uma das demandas foi atendida: o governo do estado criou uma delegacia especializada na investigação de desaparecimentos – problema crônico do Rio de Janeiro, cidade onde 6000 pessoas foram dadas corno desaparecidas só nos últimos dois anos.
“O cidadão quer participar ativamente da gestão local, mas faltam canais de participação efetiva”, afirma Miguel Lago, fundador da Meu Rio. “A internet facilitou o engajamento.” As redes sociais tornaram-se uma potente arma de mobilização popular – mas essa não é a única contribuição que a tecnologia pode oferecer para o melhoramento da vida urbana.
Ela pode tornar as cidades mais inteligentes, seguras e sustentáveis. “As tecnologias estão disponíveis, o que falta é vontade política e planejamento para colocá-las em prática”, diz Emilio Diaz, presidente da empresa espanhola de tecnologia ladra para as Américas.
Felizmente, há bons exemplos por aqui. Em Campinas estão em andamento dois projetos-piloto para tratar o esgoto de modo que possa ser reutilizado como água potável. “Cidades inteligentes usam menos recursos naturais e reaproveitam mais o que já têm”, afirma Gilberto Peralta, presidente da GE Brasil. Um dos princípios da cidade do futuro e que os problemas urbanos não podem ser vistos isoladamente. “Não dá para encontrar uma solução para o trânsito, por exemplo, sem analisar primeiro outros aspectos, como a forma como as pessoas distribuem suas atividades ao longo do dia”. diz Rodrigo Dienstmann, presidente da Cisco.
Mais uma vez, tudo depende da participação dos cidadãos. “Os sensores mais nobres que uma cidade pode ter não são os eletrônicos, mas a própria população. a quem cabe cobrar melhores serviços da administração pública”, diz Antonio Carlos Dias, diretor da divisão de Smarter Cities da IBM Brasil. Como se vê, a cidade do futuro precisa começar a ser construída agora.
Fonte: Revista Exame – 21/11/2014.