29/10/2013
Campeãs do atraso
Muitas obras no Brasil são iniciadas sem ter uma verba assegurada para sua conclusão e sofrem com mudanças de governo e má gestão. Resultado: é grande o risco de ficarem pelo caminho
Quem percorre diariamente a rodovia RS-403, que liga Cachoeira do Sul a Rio Pardo, na região central do Rio Grande do Sul, não se surpreende mais com a cena: a certa altura, uma placa à beira da estrada, corroída pela ferrugem, adverte que logo adiante termina o asfalto. Os dois municípios dependem da rodovia para escoar a produção agrícola – a região é grande produtora de soja, arroz e fumo. Apenas 62 quilômetros separam as duas cidades, mas a falta de pavimentação em metade do trecho faz a distância parecer maior. “Por causa das más condições da estrada, os caminhoneiros só aceitam fazer o transporte nessa rodovia cobrando frete 20% mais caro”, diz Talis Treichel, diretor da Granol, que tem urna fábrica de processamento de soja em Cachoeira do Sul. A empresa recebe anualmente por essa estrada 45 000 toneladas de soja, quase 7% do grão esmagado no estado. A falta de asfalto na RS-403 é um problema antigo. A rodovia começou a ser pavimentada em 1994 e nunca foi concluída. Atualmente, a obra está parada por falta de verbas. Parte do trecho asfaltado está se deteriorando por não haver manutenção, pondo a perder o dinheiro já aplicado na obra. Desde que a estrada ganhou a primeira cobertura de asfalto, já se passaram 23 anos. Em condições normais, a pavimentação desse trecho não deveria levar mais do que dois ou três anos.
Esse não é um caso isolado. Por todo o Brasil é possível encontrar obras inacabadas e sem data para terminar. De acordo com levantamento realizado por EXAME, 37% das principais obras de infraestrutura do país já tiveram a data de conclusão prorrogada, o que denota a negligência com os prazos. A situação reflete também o descaso com o dinheiro dos contribuintes e decorre, em boa medida, de uma prática comum na gestão pública: iniciar obras sem ter os recursos assegurados para sua Placa na rodovia gaúcha RS-403, que começou a ser pavimentada há 23 anos: o dinheiro só deu para fazer metade da obra conclusão. Some-se a isso o fato de que os planos e os orçamentos aprovados pelos governos – nos níveis municipal, estadual ou federal – não são impositivos, ou seja, os projetos neles incluídos servem apenas como referência para os gestores, que podem ou não dar continuidade às ações. E o que ocorre com frequência é que os governantes tendem a preferir cuidar dos próprios projetos a dar continuidade às obras iniciadas por seus antecessores. Não é por acaso que as obras de implantação do metrô estão atrasadas em cidades como Belo Horizonte, Recife, Fortaleza e Salvador. Em geral, o maior empecilho para o bom andamento dessas obras não é financeiro, mas político. “O problema da implantação do metrô é que, por seu tamanho e sua complexidade, as obras não começam e terminam no mesmo mandato político”, diz o consultor Eduardo Padilha, especialista em infraestrutura da escola de negócios Insper. “Com a mudança de gestão, o risco de interrupção é grande.”
O preço da grandeza
Algumas obras no Brasil nunca terminam porque pagam o preço de sua grandiosidade. É o caso do Projeto Jaíba, lançado pelo governo federal e pelo estado de Minas Gerais nos anos 70. Trata-se de um programa de irrigação que tinha a ambição de transformar o município de Jaíba, no semiárido mineiro, na “Califórnia brasileira”. Assim como o estado americano. Jaíba tem terras férteis e clima favorável ao agronegócio Faltava água para possibilitar a produção agrícola em larga escala Em 1977, foram iniciadas as obras do programa de irrigação. A ideia era construir 240 quilômetros de canais e implantar o maior projeto de irrigação da América Latina. Apesar dos avanços – a região produz hoje 1,3 milhão de toneladas de alimento por ano -, o projeto sofre com a falta de verbas, embora já tenha recebido recursos do Banco Mundial e do governo japonês. O investimento total estimado é de 1,7 bilhão de reais. Recentemente surgiu um novo obstáculo: um decreto baixado pelo Ministério do Meio Ambiente em 2008 impede o desmatamento de áreas para ampliar a produção. Com isso, duas das quatro etapas previstas no projeto ainda não saíram do papel, somando 20 000 hectares. A conclusão do programa está prevista para 2017 – se isso realmente ocorrer, nove presidentes da República e 11 governadores de Minas Gerais terão se sucedido no poder desde o início do empreendimento.
Evidentemente, não há mal algum em ter projetos ambiciosos – desde que se tenha um bom plano de voo para realizar as metas. Obras que se arrastam indefinidamente resultam, muitas vezes, da pressa dos governantes em colocá-las em ação. O risco nesse caso é iniciar um empreendimento sem ter um projeto detalhado. Segundo Paulo Resende, coordenador do núcleo de infraestrutura e logística da Fundação Dom Cabral, vale a pena investir no planejamento da obra para não perder tempo depois. No Japão, o tempo gasto entre o pré-projeto, o documento executivo e o início dos trabalhos corresponde a 40% do ciclo de construção de uma obra. Na Alemanha, esse percentual é ainda maior: 50%. “No Brasil, esse prazo tem sido de 20%. O restante é gasto em obras”, diz Resende.
Iniciadas às pressas, as obras correm um risco maior de sofrer paralisação mais adiante, por não cumprir todas as exigências legais. Nesse aspecto, o Ibama, órgão ambiental federal, é apontado frequentemente como um dos vilões dos atrasos nas grandes obras, pela demora na concessão das licenças ambientais. O órgão conta atualmente com pouco mais de 400 técnicos para realizar as análises ambientais, menos da metade do ideal. Mesmo assim, o número de licenças neste ano deve superar o do ano passada Até 12 de outubro, foram concedidas 625 licenças, ante 700 durante o ano de 2012 inteiro. Segundo Gisela Forattini, diretora de licenciamento ambiental do Ibama, os empreendedores também têm uma parcela de culpa pela demora dos processos. Vários projetos são apresentados de forma inconsistente e sem as informações básicas. Como exemplo, ela cita um escudo de impacto ambiental para a construção de um porto apresentado por um empreendedor, que se baseou na legislação ambiental de Portugal, e não na brasileira. Resultado: o escudo precisou ser refeita “Em média, demoramos um ano para analisar um estudo de impacto ambiental”, diz Gisela. “Se o projeto vier redondo, nosso trabalho fica mais fácil.” No fim das contas, os principais fatores que levam ao atraso das obras podem ser resumidos em má gestão e falta de vontade política. Para contornar esses problemas, o professor José Vicente Caixeta, coordenador do grupo de pesquisas em logística da Esalq, a faculdade de agronomia da Universidade de São Paula, diz que é preciso que as obras de infraestrutura fundamentais entrem na agenda de prioridade do país, como o governo fez no ano passado ao conceder os aeroportos de Brasília, Guarulhos e Viracopos à iniciativa privada – era a única forma de recuperar o atraso nas obras de ampliação para a Copa do Mundo. Apesar dos custos elevados e da demora em iniciar as obras, todos os estádios escolhidos para sediar jogos da Copa deverão ser concluídos a tempo. “Se é possível erguer estádios em um prazo apertado, também possível terminar obras importantes em outros setores”, diz Caixeta. Antes de tudo, é preciso vontade para transformar um projeto em realidade.
Fonte: Revista Exame
Data: 01/10/2013