02/02/2022
Análise no livro “O Brasil no Agro Global” aponta vantagens de o país se manter distante de crises geopolíticas envolvendo a Rússia e seus parceiros ocidentais
O presidente Jair Bolsonaro declarou que pretende manter sua viagem a Moscou, onde deverá se encontrar com o presidente da Rússia, Vladimir Putin. A visita, de 14 a 17 de fevereiro, tinha sido agendada antes do agravamento da tensão entre a Rússia e a Ucrânia. Bolsonaro disse que o encontro com Putin servirá para melhorar os “entendimentos” e as “relações comerciais” do Brasil com a Rússia.
A visita, se confirmada, ocorrerá em meio à escalada de tensão no mercado global devido ao risco de um conflito militar envolvendo a Rússia e a Ucrânia. Os russos negam que tenham a intenção de invadir o país vizinho, mas os Estados Unidos e a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) afirmam que o Kremlin já deslocou mais de 100 mil soldados até a fronteira com a Ucrânia. Os russos não querem que a Ucrânia se junte à Otan, a aliança militar ocidental, o que aumentaria a influência americana e europeia na antiga república soviética.
Um conflito militar entre a Rússia e a Ucrânia teria importantes repercussões na economia mundial. Segundo o Fundo Monetário Internacional, um confronto entre os dois países prolongaria a alta da inflação global. Uma crise no suprimento de petróleo pressionaria ainda mais os custos de combustíveis, que no Brasil já vêm subindo sem parar — nos últimos dias, o preço da gasolina passou de 8 reais o litro. Caso os russos invadam a Ucrânia, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que imporá sanções contra a Rússia, abrindo uma nova frente de guerra comercial.
Diante deste cenário, uma dúvida é como um conflito entre a Rússia e a Ucrânia poderia afetar o agronegócio brasileiro, o setor mais pujante e internacionalizado da economia do país. Algumas pistas podem ser encontradas no livro O Brasil no Agro Global, lançado em novembro de 2021 pelo Insper Agro Global em parceria com a Funag (Fundação Alexandre de Gusmão), vinculada ao Ministério das Relações Exteriores. A obra, organizada por Marcos Jank, professor sênior de agronegócio no Insper e coordenador do Centro Insper Agro Global, e Leandro Gilio, pesquisador doutor sênior do centro, analisa nove macrorregiões importadoras de produtos do agronegócio brasileiro, entre elas a Rússia.
No capítulo sobre a Rússia, escrito pelo economista Rafael G. Requião (adido agrícola na embaixada do Brasil em Moscou) e pelo diplomata Fernando S. Z. Gonçalves (assessor especial no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), os autores citam um episódio em 2014 que também provocou grande tensão global — a anexação pela Rússia do território da península da Crimeia, que era controlado pela Ucrânia desde 1954. Em resposta, os Estados Unidos e a União Europeia adotaram sanções contra indivíduos e empresas russas. No mesmo ano, a Rússia reagiu com contrassanções envolvendo produtos como carnes, lácteos, frutas e legumes.
Dependente da importação de itens de primeira necessidade dos Estados Unidos e da União Europeia, a Rússia a princípio redirecionou suas compras para outros parceiros, incluindo o Brasil — que adotou uma posição de neutralidade em relação à ação militar russa na Crimeia. “As contrassanções, que excluíram do mercado russo os principais concorrentes do Brasil à época, foram inicialmente percebidas como favoráveis aos produtores brasileiros. Entretanto, com a crise pela qual passou o país eurasiático, os números foram deixando cada vez mais claro que o Brasil também sairia perdendo”, analisam Requião e Gonçalves.
Nessa época, a Rússia acelerou o plano de Putin de promover a substituição de importações de produtos agrícolas, aumentando a produção doméstica para buscar a soberania alimentar. O governo forneceu pesados subsídios em todas as etapas das principais cadeias produtivas do país, incluindo a compra de animais, máquinas agrícolas, sementes, fertilizantes e pesticidas, além de serviços financeiros e do transporte e armazenamento de grãos. O resultado veio rápido. Entre 2013 e 2019, a colheita de cereais na Rússia cresceu mais de 30%. A produção de beterraba aumentou 38%, o que permitiu ao país se tornar um exportador líquido de açúcar. A cultura de soja, ainda incipiente, cresceu 190%. O cultivo de hortaliças em estufas de inverno teve um aumento de 112%, enquanto a produção de frutas cresceu 74%. No mesmo período, também houve avanços significativos na área animal. A produção de carne suína aumentou 40%, enquanto a de carne de aves cresceu 29%.
Para o Brasil, o resultado do aumento da produção agropecuária na Rússia foi uma queda no volume de exportações para aquele país. Até 2015, o Brasil tinha superávit na balança comercial com a Rússia. Naquele ano, o país exportou quase 2,5 bilhões de dólares para os russos e importou 2,2 bilhões de dólares. Desde então, a situação se inverteu. Em 2021, de acordo com dados do Ministério da Economia, o Brasil exportou 1,6 bilhão de dólares para a Rússia e importou 5,7 bilhões de dólares. O Brasil vende aos russos principalmente produtos do agronegócio (como soja, carne bovina, amendoim e café) e compra principalmente adubos e óleos combustíveis.
Com o sucesso alcançado em seu plano de substituição de importações, a Rússia ambiciona deixar a condição de importador líquido de alimentos e se tornar um grande exportador de produtos agrícolas. “O trigo é o exemplo mais significativo dessa transição. Nos anos 1990, a Rússia era importadora líquida do cereal. Graças a diversas medidas de apoio doméstico, o país se tornou, desde 2016, o maior exportador mundial do produto, passando a dominar, nos últimos anos, cerca de metade do mercado internacional”, destacam Requião e Gonçalves. “Como não é grande produtor do cereal, o Brasil não foi particularmente afetado (inclusive, aumentou suas importações de trigo russo). Porém, no que diz respeito a outros produtos, a transformação russa poderá gerar cenário de concorrência com o Brasil.”
Os autores chamam atenção para o recente aumento das exportações russas de soja para a China, país que tem buscado diversificar seus parceiros para reduzir sua dependência em relação ao produto brasileiro. As vendas russas de soja ao país asiático atingiram 579 milhões de dólares em 2020. “Embora os volumes e valores desses produtos exportados pela Rússia ainda sejam baixos em comparação com o desempenho exportador do Brasil e, portanto, não pareçam configurar ameaça de concorrência direta no curto a médio prazo, as expectativas russas são de crescimento continuado no futuro”, afirmam Requião e Gonçalves.
Se a Rússia pode se tornar concorrente do Brasil em alguns mercados, também apresenta características de complementaridade com o nosso país, sobretudo do ponto de vista climático. “O frio severo em boa parte do ano limita o cultivo de frutas no território russo e faz do país um dos maiores importadores mundiais desses produtos. Nesse sentido, Brasil e Rússia têm uma relação de complementariedade geográfica quase perfeita”, afirmam Requião e Gonçalves. “Ao poder cultivar o ano inteiro produtos que não resistem ao frio do inverno russo, o Brasil pode suprir a Rússia com culturas de verão durante o inverno no hemisfério norte.”
Segundo os autores, a complementaridade geográfica entre os dois países abre o caminho para o comércio de produtos tropicais brasileiros, como frutas frescas, e cria oportunidades para o Brasil diversificar sua pauta de exportações para a Rússia. “A complexidade do relacionamento dificulta uma classificação inequívoca da Rússia como parceiro ou concorrente do Brasil. O intercâmbio agrícola é multifacetado e demonstra características tanto de competição quanto de parceria. Ainda assim, parece haver suficientes elementos de complementaridade para justificar esforços brasileiros de ampliação da pauta.”
Requião e Gonçalves chamam atenção também para outra vantagem do Brasil: “Distante geograficamente do entorno geopolítico russo e sem aspirações de atuação nesse espaço, o Brasil pode continuar a se beneficiar de conflitos geopolíticos entre a Rússia e seus parceiros ocidentais para posicionar seus produtos no mercado local, conquistando espaços que seriam mais avidamente disputados em condições normais de concorrência.”
Para isso, afirmam os autores, é essencial que o Brasil faça sua parte no que diz respeito a controles sanitários e ao cumprimento dos requisitos de importação russos. É necessário também um trabalho de diferenciação e fortalecimento da imagem do Brasil e de seus produtos no mercado russo, assim como investimento em ganhos de competitividade, sobretudo em logística.
Os autores concluem em sua análise sobre a Rússia: “Se o Brasil almeja tornar-se o maior exportador mundial de produtos agrícolas, deve ter a conquista de novos espaços como objetivo constante. Conforme demonstrou a análise realizada neste artigo, isso inclui, naturalmente, o atraente mercado russo. Com população numerosa e relativamente afluente, bem como um perfil de importações agrícolas de alto valor agregado, as oportunidades apresentadas pela Rússia sobrepõem-se claramente aos desafios, cujo enfrentamento poderá trazer benefícios duradouros para o Brasil.”
Para ler o livro O Brasil no Agro Global, clique aqui e baixe gratuitamente a obra na íntegra.
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