27/04/2022
Caso envolvendo o biofísico chinês He Jianku, solto após três anos de prisão por alterar o DNA de embriões, serve de alerta para os limites da ciência
David Cohen
O biofísico chinês He Jiankui saiu do confinamento em abril. Não, nada a ver com a covid-19. He estava isolado durante todo o período da pandemia por ter sido condenado à prisão em dezembro de 2019, acusado de manipulação genética em embriões humanos. Antes disso, ele já estava em prisão domiciliar havia um ano — totalizando a pena de três anos de sua sentença.
O escândalo mundial ocorreu no final de 2018, quando He anunciou ter alterado o material genético de embriões para realizar uma fertilização in vitro. Àquela altura, já haviam nascido duas irmãs gêmeas, resultado de suas experiências, que ele chamou de Lulu e Nana. Uma terceira criança, apelidada de Amy, nasceria no ano seguinte, quando He já havia caído em desgraça.
O julgamento foi a portas fechadas, em parte para proteger as pessoas envolvidas (as bebês e seus pais, especialmente), em parte porque a China é a China. O pouco que se soube sobre o processo foi que He e dois de seus colaboradores assumiram a culpa por ter “deliberadamente violado” regulamentos médicos e “aplicado sem os devidos cuidados tecnologia de edição genética à prática de reprodução assistida”.
Segundo a agência de notícias oficial chinesa Xinhua, He cruzou a linha ética tanto médica quanto científica. Além da prisão, ele foi multado em 3 milhões de iuans (cerca de 420.000 dólares). O médico Zhang Renli, que aplicou as microinjeções nos embriões para alterar o código genético, foi condenado a dois anos de prisão e multa de 1 milhão de iuans (140.000 dólares). Outro auxiliar, Qin Jinzhou, recebeu pena de um ano e meio, suspensa, e multa de 500.000 iuans (70.000 dólares).
Já fora da prisão, e sem o emprego que tinha na Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul, em Shenzhen, He não quis se manifestar sobre o assunto. “Não é conveniente falar agora”, disse a repórteres que o procuraram.
Mas o debate é inevitável. Qual a linha ética que He cruzou, o quanto a dura punição que sofreu evitará práticas semelhantes e, o mais importante, como e quais limites deve ter a tecnologia de edição genética que ele usou?
Até poucos dias antes de ser chamado para interrogatório e colocado em prisão domiciliar, He acreditava que ganharia um prêmio Nobel de Medicina. Segundo disse a colegas, estava convencido de ter encontrado um modo de controlar a epidemia de HIV, o vírus que provoca a aids.
O tratamento consistia em desabilitar um gene chamado CCR5. Esse gene codifica uma proteína à qual o HIV se conecta para conseguir penetrar nas células. Pessoas que naturalmente não o possuem são mais resistentes a contrair aids.
He então procurou casais em que o pai tivesse HIV, a mãe não. Na China, pessoas nessas condições são impedidas de fazer fertilização in vitro — e esta é a parte em que a equipe do biofísico foi acusada de burlar normas médicas de forma a conseguir autorização para o procedimento em um hospital.
He disse, na época, que sua intenção era ajudar essas pessoas a ter filhos saudáveis. Sua atuação, porém, carregava problemas mais graves. A começar do fato de que o CCR5, se facilita a entrada do HIV no organismo, por outro lado provavelmente ajuda a combater outras infecções. Conforme um estudo publicado na revista científica Nature Medicine, em 2019, pessoas em que esse gene não atua são mais propensas a morrer de gripe, além de uma série de outras doenças. De modo geral, de acordo com o estudo, elas têm 20% mais de chance de não chegar aos 76 anos de idade.
Ainda mais problemático é o fato de He ter exercido a experiência em embriões — ou seja, a mutação que ele provoca é provavelmente hereditária.
A técnica que He usou para mudar a carga genética dos embriões é relativamente nova. Chama-se Crispr -Cas9 e foi divulgada em 2012. Nova, mas extremamente promissora. Tanto que já rendeu um prêmio Nobel de Química a suas inventoras, a francesa Emmanuelle Charpentier e a americana Jennifer Doudna. O mecanismo que possibilita a edição genética já havia sido descoberto em 1987, mas a dupla demonstrou como ele podia ser adaptado para cortar e editar qualquer sequência de DNA.
Há até uma guerra de patentes, entre a universidade da Califórnia em Berkeley, de onde eram as duas, e o Instituto Broad, de Massachusetts (uma parceria entre o MIT e Harvard), onde o bioquímico sino-americano Feng Zhang fez várias descobertas relacionadas ao mesmo processo (o fato de não ter ganhado o Nobel junto com a dupla foi uma surpresa para muitos especialistas da área).
Crispr é uma sigla para “clustered regularly interspaced short palindromic repeats”. Traduzindo: curtas repetições recorrentes de agrupamentos espaçados regulares. Traduzindo de novo: trata-se de um mecanismo que as bactérias usam para se proteger de vírus. Basicamente, são pedaços de DNA que copiam a estrutura de vírus — usados para reconhecer o agressor. Armado com enzimas, o Crispr encontra o seu par (o vírus, igual a ele) e o destrói. As enzimas que utiliza chamadas de Cas (CRISPR associated). Uma delas, o Cas9, tem a interessante prática de cortar o fio de DNA no ponto em que se acopla, e depois colar a sequência novamente, sem o pedaço eliminado ou com outro, copiado de outro DNA, em seu lugar.
Ou seja, o Crispr é capaz de reconhecer um pedaço específico de DNA e o Cas9 é capaz de cortá-lo e emendá-lo. A técnica que Doudna e Charpentier descreveram é essencialmente uma forma de programar o sistema para ser usado em qualquer tipo de DNA — mais ou menos como uma ferramenta de “buscar e substituir”, comum em programas de edição de textos nos computadores.
O impacto dessa descoberta é tremendo. A técnica aprimorou espetacularmente as experiências que já se faziam em modificações genéticas em plantas e animais. É possível melhorar o rendimento de plantas, esterilizar mosquitos, combater vírus e muito mais. As experiências incluem alterar órgãos de porcos para que possam ser usados em transplantes para seres humanos ou criar cães com mais massa muscular.
Com tantas possibilidades, o mundo das ciências biológicas ficou em polvorosa. E a China saiu na frente. Investiu pesadamente na tecnologia, financiando pesquisas. No final de 2016, um grupo da Universidade Sichuan, liderado pelo oncologista Lu You, foi o primeiro a usar Crispr -Cas9 em seres humanos: em pacientes com câncer no pulmão, os pesquisadores desabilitaram uma proteína que normalmente freia o sistema imune, algo de que as células cancerígenas se aproveitam para se proliferar. (Nenhum dos pacientes melhorou, e apenas um estava vivo quatro anos depois, mas o experimento foi bem-sucedido em demonstrar que não havia efeitos colaterais perversos no procedimento.)
Ao que parece, o governo chinês incentiva — e cobra — seus cientistas por avanços rápidos. Quando He anunciou seu feito, um jornal do país chegou a comemorar a conquista. Mas logo ficou claro o dilema: não só ele havia burlado as regras nacionais, como também o anúncio despertou condenação mundial.
O próprio Feng Zhang, do MIT, um dos heróis de He, se disse profundamente preocupado com a “falta de transparência” no experimento e propôs uma moratória no que logo ficou conhecido como “bebês Crispr”. A Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul, onde He trabalhava, se eximiu da polêmica, dizendo que não tinha conhecimento da pesquisa. Com a reação, o artigo no jornal chinês foi rapidamente apagado. Pouco tempo depois, He perdeu o emprego e, em seguida, sumiu — colocado em prisão domiciliar e, mais tarde, levado a uma cadeia longe de Shenzhen, onde morava com a mulher e filhos.
A condenação mundial a He, no entanto, não foi unânime. Em dezembro de 2019, o editor chefe do Journal of the American Medical Association (Jama), o pediatra Howard Bauchner, disse à MIT Technology Review, a revista do MIT, que a edição genética em embriões pode no final das contas se revelar uma boa prática médica. “Acho inevitável que isso vá avançar, e acredito que deva avançar”, afirmou, lembrando que os transplantes de órgãos, que salvam milhares de vidas a cada ano, e a fertilização in vitro, que leva a meio milhão de nascimentos por ano, suscitaram acalorados debates éticos. “Muitas vezes as inovações científicas são vistas como antiéticas, e com o tempo esse sentimento muda.”
Um recado, porém, a prisão de He deu de forma clara. Este avanço científico precisa ser feito de forma mais lenta, para que seja seguro. Terá sido compreendido?
Embora He tenha sido exemplarmente punido, ele e seus dois colegas chineses mais diretamente envolvidos na fertilização dos embriões foram os únicos responsabilizados, entre uma dezena de pesquisadores aparentemente envolvidos no caso.
O principal deles era Michael Deem, da Universidade Rice, em Houston, no Texas. Deem foi supervisor do doutorado de He entre 2007 e 2010. Os dois publicaram pelo menos oito artigos juntos. Ele também fazia parte da lista de autores de um artigo que He enviou para a revista Nature sobre a experiência com embriões.
De acordo com o site de notícias médicas Stat News, Deem era o último nome da lista de autores, um espaço normalmente reservado ao pesquisador sênior que supervisiona o trabalho. He aparecia como o primeiro autor, aquele cuja atuação foi maior.
Com a polêmica que se seguiu à divulgação do trabalho, a Nature decidiu não publicar o artigo, de acordo com diversas publicações — a própria Nature, seguindo seu protocolo, não confirma sequer o recebimento de trabalhos que não publica. A Stat News, porém, obteve uma cópia do artigo. Um dos colaboradores, um cientista chinês, afirmou à revista que Deem foi mais do que um mero observador. Ele teria participado do encontro em 2017 com voluntários e ajudado a obter seu consentimento para a fertilização in vitro e edição genética.
Logo que He divulgou seu trabalho, Deem chegou a dizer à agência de notícias Associated Press que havia encontrado os pais no processo de consentimento. Foi o bastante para a sua universidade instaurar um processo de investigação por sua participação.
Quando o assunto ficou sério, Deem contratou advogados, que negaram que ele tenha estado presente em qualquer fase da experiência ou que fosse coautor do artigo de He. A Universidade Rice jamais divulgou o resultado de suas investigações sobre o envolvimento de Deem no caso — mas ele deixou seu cargo de professor e pesquisador ali em 2020. Hoje, se apresenta como um consultor em uma companhia de energia que ele mesmo fundou.
Um outro pesquisador americano que aconselhou He foi Stephen Quake, professor de bioengenharia e física aplicada da Universidade Stanford. A universidade foi informada de sua participação no experimento pela universidade chinesa onde He trabalhava. Ele teria dado instruções para a preparação, implementação e divulgação do experimento.
A troca de emails entre Quake e He, no entanto, obtida pelo jornal The New York Times, mostra que o professor de Stanford não apenas aconselhou He a submeter o estudo aos conselhos de ética de sua universidade e do hospital como também ficou preocupado a ponto de contactar um especialista em Crispr.
He chegou a procurar até a professora Jennifer Doudna, uma das inventoras da técnica Crispr -Cas9. De acordo com a Stat News, ele falou de seu trabalho em um jantar com ela. Doudna teria feito tantas perguntas técnicas, em cerca de uma hora de escrutínio, que a certa altura He “jogou algum dinheiro na mesa (para pagar sua conta) e foi embora repentinamente”. Segundo a Stat News, ele ficou tão receoso após essa interação que deixou o Meridien, onde estava hospedado, e foi para outro hotel.
Vários outros cientistas foram admoestados por não terem dado um sinal de alarme sobre a experiência de He. Desde 2016, quando começou suas pesquisas, ele conversou com vários acadêmicos, principalmente americanos, sobre o que estava fazendo, incluindo Craig Mello, um vencedor do prêmio Nobel de Medicina, da Universidade de Massachusetts. Todos se defenderam dizendo que aconselharam He a não prosseguir com o trabalho.
O grande temor de experiências como a de He é enveredar por um caminho que lembra o filme de ficção científica Gattaca, de 1997. Trata-se de uma distopia em que as crianças são concebidas através de seleção genética e a biologia determina seu destino. O título do filme vem das letras G, A, T e C, que representam as quatro bases formadoras do material genético (guanina, adenina, timina, citosina).
A eugenia em si não é uma novidade. Dentro dos parâmetros da escolha individual, não se presta a julgamentos: pessoas consideradas bonitas ou brilhantes (ou ambas as coisas) costumam despertar maior atração sexual. Tornada política de estado, é uma prática totalitária e repressiva, criminosa — o mais célebre exemplo é a Alemanha nazista e sua política racial.
O problema é que a tecnologia pode potencializar as preferências individuais até um nível que lembra uma política de Estado repressora. Tome-se por exemplo a própria China.
Durante 35 anos, entre 1980 e 2015, o país teve um programa para restringir o número de filhos a apenas um por casal, para conter a explosão demográfica. Como lembra a jornalista sino-americana Mei Fong, autora do livro One Child (Um filho), sobre o assunto, a restrição trazia traços de eugenia, como a Lei de Eugenia e Proteção à Saúde, de 1994, que proibia pessoas com algumas desordens físicas ou mentais de se reproduzir (as críticas no mundo inteiro fizeram o país mudar seu nome para Lei Nacional de Saúde do Bebê e da Mãe, mas o teor era o mesmo). É por esse tipo de regulamento que pais com HIV são proibidos de ter bebês na China — situação que He queria mudar.
Ante essa restrição a ter mais que um filho, aplicada de forma desigual ao longo dos anos e em diferentes locais (mais nas cidades que nos campos, por exemplo), cresceu o número de abortos de fetos do sexo feminino, preteridos em uma sociedade machista e patriarcal — a tal ponto que há hoje 30 milhões de homens a mais que mulheres no país.
“Mesmo antes do Crispr, já era possível escolher características dos bebês usando fertilização in vitro e selecionando os doadores com características genéticas desejadas, como aparência ou inteligência”, escreveu Mei Fong em artigo para The New York Times, em 2018.
Fazer edição nos embriões é o próximo passo lógico para um público com essa demanda. Na maioria dos países, isso é proibido (incluindo Estados Unidos e China). No Reino Unido, a manipulação genética de embriões é permitida, mas apenas para propósito de pesquisa, com estrita aprovação das autoridades.
Um dos motivos para essa proibição é que a tecnologia é ainda muito nova para que se avaliem os riscos de mexer com embriões, algo capaz de introduzir uma mutação genética na população.
Em julho do ano passado, um comitê da Organização Mundial de Saúde propôs que as nações estabeleçam restrições mais fortes aos métodos de edição genética. Pelos padrões da OMS, uma experiência como a do doutor He é inaceitável pelos seus riscos. Ninguém sabe ainda se os bebês nascidos da experiência efetivamente são imunes ao HIV ou se terão outros efeitos colaterais. Tampouco se sabe se o procedimento não levou à inserção de erros no código genético dos bebês. Mexer com embriões, pelo menos por enquanto, é tabu. Mas outros tipos de edição genética também causam preocupação.
No entanto, o comitê de especialistas reconhece que a tecnologia fornece esperanças enormes para tratar de inúmeras condições ou promover melhoramentos genéticos os mais diversos. Não há como colocar o gênio (ou o gene) de volta na lâmpada; há desejos demais para formular.
Um registro de estudos feito pela OMS contabilizou 156 experiências com edição genética em seres humanos (que não estão no esperma nem nos óvulos).
Todo esse interesse tem, é claro, seu viés econômico-financeiro. De acordo com um artigo da revista Forbes, de 2017, os negócios em torno da ferramenta Crispr-Cas9 valem bilhões de dólares.
A estimativa é, provavelmente, tímida. Há inúmeras doenças ou síndromes cuja cura valeria dezenas de bilhões de dólares cada uma. Para além disso, há as promessas menos concretas e mais mercadológicas, como a da empresa B.G.I. Shenzhen, de sequenciamento genético, que há anos estuda a base genética da inteligência humana com o intuito de oferecer aos pais a possibilidade de aumentar o QI de seus filhos. Não importa que seja provavelmente impossível isolar algum componente genético responsável pela inteligência; importa que haja clientes que acreditem nisso.
Por tudo isso, é pouco provável que a edição genética não avance — de maneira muito rápida.