14/07/2016
Por Carlos MeloCientista político e professor do Insper
A exaltação de ânimos em torno de operações como a Lava Jato é compreensível na medida em que atinge partidos e políticos populares; afeta interesses, sentimentos e paixões ideológicas. A polarização política dos últimos anos tangenciou o fanatismo religioso e espalhou a intolerância, deixando um clima de emocionalismo improdutivo que despreza ou ignora o cálculo racional de suas causas, seus efeitos e os benefícios como saldo de todo o processo; sobram críticas, nem sempre injustificadas, ao protagonismo de setores do Poder Judiciário e do Ministério Público (MP). O melhor que não fosse assim. Mas, há que se manter a cabeça fria para compreender a história que passa diante dos olhos.
Claro que há que se ressalvar o Estado de Direito, as liberdades individuais, a Constituição – que, não é de hoje, são pouco respeitados no Brasil. Também o papel e a autonomia dos Poderes precisam ser preservados, coibindo eventuais excessos. Restituir à sociedade, não aos agentes da lei, a responsabilidade pela condução do processo político e social deve ser a principal preocupação da cidadania: na democracia, a expansão e a predominância de um grupo sobre todos os demais nunca é desejável, menos ainda saudável.
Anteparos que se faça à ação dos agentes da Justiça ou do MP merecem uma reflexão profunda, à parte. Mas, é importante não se colocar toda uma série de outros aspectos fundamentais a perder. O fenômeno é complexo, pois, se carrega os problemas acima, possui também o mérito de abalar o tradicional patrimonialismo nacional, compreendendo uma significativa transformação das relações Empresas-Estado no país. Além disso, dado o esgotamento do sistema político e o desgaste do Poder Executivo, é inevitável que algumas medidas, referendadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ocupem o vácuo que foi deixado pela ausência de liderança política.
De modo que os acontecimentos dos últimos anos retrataram o drama e a tragédia de práticas agora reveladas, relativas a um modo de gerir empresas e à forma de fazer política não mais compatíveis com os valores da cidadania, na sociedade moderna. Em seus espasmos de avanços permeados por crises, o Brasil, com efeito, vem se transformando. Ações como a simbólica Lava Jato confrontam a confusão, que sempre existiu, entre o público e o privado.
Na maior parte de sua história, o país não se conseguiu combater esse processo e criar incentivos para sua superação. Ao seu modo, as instituições se desenvolveram dominadas por este vício. Grupos de interesses particularistas sempre funcionaram na defesa e no alargamento de privilégios; o liberalismo, no seu sentido clássico, por aqui nunca vigeu porque implicaria num mínimo de competição em desacordo com o status quo.
Durante séculos, arrastou-se o protecionismo de setores de arcaicos que se favoreceram de relações com o poder para garantir a comodidade e as vantagens em que operavam. Reservas de mercado, fraude em licitações, negociatas, corrupção deram, muitas vezes, o tom das relações governamentais, nada republicanas, no país. Mesmo o homem do povo, sempre que possível, repetia – e ainda repete — este padrão de comportamento: o clientelismo é uma marca tão forte quanto o corporativismo.
Numa lógica tão simplória quanto depreciativa, esse sentimento se instalou com o fatalismo de uma espécie de “segunda natureza”: se sempre foi assim, assim sempre será. A oligarquia atual apenas dá sequência à sua imemorial condição. Só não se explicou porque não isto tudo não poderia ser combatido, como parece o caso, nestes nossos tempos de inevitável angústia.
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Evidente que não foram todos os empresários e nem todos os políticos que, através dos tempos, agiram dessa forma; óbvio que há bons exemplos de práticas; condutas republicanas e democráticas. Há casos de excelente comportamento tanto em empresas, como até mesmo em partidos. Mas, sabe-se, ao fim, que muitas vezes agir corretamente é remar contra as marés, coagidos pela força de um sistema que não é apenas “político” ou “estatal”, mas, na sua complexidade, “empresarial-político-estatal”.
“Empresarial” porque nasce do interesse de alguns potentados ou grupos empresariais; “político” porque recorre a operadores que transitam entre a sociedade e o Estado, normalmente — mas não só –, portadores de mandatos; “estatal”, pois encontra no Estado não apenas a fonte de recursos que satisfará esses interesses, mas também o controle do processo de desenvolvimento nacional, ao estabelecer estímulos e restrições ao investimento.
Esse complexo resultava na potencialização do lucro das empresas, na felicidade desde sempre precária de seus acionistas; mas também em financiamentos espúrios de campanha eleitoral e ou no enriquecimento pessoal do agente público. E, claro, na inevitável depauperação do Estado, tornando-o incapaz de atender a sociedade em seus anseios e carências, nos princípios do universalismo de procedimentos, da impessoalidade e na promoção do bem-estar, fragilizando assim a democracia.
De forma que somente de modo secundário e contingencial é que operações como a Lava Jato têm foco sobre o PT, o ex-presidente Lula ou contra a presidente afastada, Dilma Rousseff. Isto se deu na medida em que esses agentes se relacionaram com o sistema patrimonial, aderindo às suas práticas. Bobagem afirmar que fossem “de encomenda” contra um grupo político; outros partidos e outros personagens estão igualmente arrolados e necessitarão se justificar diante da Justiça e da Opinião Pública. Quem imaginou que a assunção do PMDB ao poder pudesse bloquear o processo errou feio.
Antes de tudo, o que há é a crise histórica de um modelo, um duro golpe no patrimonialismo; seus efeitos são positivos, embora haja colaterais deletérios que precisam ser ajustados. O importante é reconhecer que tudo tem sido possível porque alguns elementos de um sistema de integridade pública começaram a funcionar ou passaram a funcionar com maior efetividade.
Goste-se ou não do estilo dos jovens promotores, dos jovens juízes e dos jovens delegados, o fato é que o rejuvenescimento desses setores trouxe mudanças que têm causado abalos; agregue-se a eles outros órgãos da Administração, como as Controladorias Gerais, uma mídia fragmentada, menos cartelizada, mais investigativa e competitiva e temos uma importante transformação que, coordenada pelo também desejável remoçamento da política, tende a trazer ganhos indiscutíveis.
Evidente que esses elementos foram, sim, favorecidos pelas circunstâncias: os erros de condução econômica e a crise elevaram o senso crítico e trouxeram um mal-estar necessário para indignar e mobilizar a opinião pública, que tem acolhido e, por enquanto, protegido os atores desse processo. Transformá-los em heróis é — é claro — um erro; uma forma de substituir antigos salvadores da pátria por modelos novos e reiniciar um processo que deveria ser definitivamente descartado. Mas, compreender o conflito na sua mais essencial e real dimensão, sem endeusar ou demonizar seus agentes, parece fundamental para consolidar o sistema de pesos e contrapesos no país. O nebuloso presente precisa ser iluminado pelos faróis da história.
Fonte: Jota Info – SP – 05/07/2016