05/10/2013
Antigo discurso sobre a subversão da Constituição: nova versão
(em homenagem ao seu 25º aniversário e ao meu saudoso e eterno mestre, Prof. Goffredo da Silva Telles Junior)
Evandro Fernandes de Pontes*
Há exatos 10 anos, tomei a pena para fazer umas pequenas anotações sobre a puberdade da Constituição. Naquela época já tínhamos constatado “várias cirurgias no corpo constitucional”, onde “extremos berravam um texto estropiado”: “mais de 4.000 medidas provisórias (entre as reeditadas e as outorgadas) e com 40 emendas, por leituras as mais extremadas possíveis. Seja nos bancos escolares, nas cortes ou ainda no Congresso Nacional, a Constituição já foi lida das formas mais distorcidas que se possa imaginar. Desde leituras reducionistas até leituras extremamente ‘liberais’ (lato sensu) e abrangentes marcaram esses 15 anos de excesso”.
Hoje, graças a uma emenda constitucional, as medidas provisórias estão menos frequentes – algo em torno de outras 650 publicadas após a 32ª Emenda. E por falar em emendas, essas sim vieram num ritmo espantoso de dez anos para cá: entre emendas e emendas de revisão, já chegamos a 80. Até as disposições transitórias já tiveram sua transitoriedade transitoriamente revista pelo período que essa nova transitoriedade possa durar…
Fizemos em 10 anos o mesmo que havíamos feito nos 15 anos anteriores. Nossa técnica de mexer na Constituição melhorou bastante, ao contrário da técnica em interpretá-la: essa piorou sobremaneira, bastando atentar para alguns votos de certos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) que passaram pela corte nestes últimos 10 anos ou pelo voto de alguns recém-chegados que lá se encontram atualmente.
Voltando para as emendas, temos aquelas ainda que incluem remendos que estão em passo de espera (as chamadas PECs ou Propostas de Emenda Constitucional), no corredor do SUS constitucional: lá temos outras 20 propostas, deitadas na maca, à espera de algum cauteloso cirurgião que nos dê o pouco magnânimo recorde de 100 emendas em 30 anos de vida. E nisso estaremos melhor que Estados Unidos (com 27 em 226 anos recém-completados) e Japão (zero em 66 anos).
Víamos ultraconservadores de esquerda (pois é, a esquerda já foi conservadora…) e ultrarreacionários de direita se digladiando sobre o texto, desde a sua (de)formação, por trás de fórmulas jurídicas, esticando, comprimindo, retalhando. Ora se cuidavam de formas jurídicas antigas, ora se tratavam de formas macaqueadas de algum outro ordenamento supostamente superior ao nosso. Hoje, estão todos no centro, não se sabe se pelos confortos do centro ou pelos desconfortos das pontas e extremos.
A biografia da Constituição continuou a ser escrita, por vidas e leituras não tão nobres, nem tampouco importantes. Aquela liberdade de expressão do propalado caso “Gugu-PCC” aquietou jornais em tempos de manifestações com mascarados, justamente porque se comprovou que um princípio constitucional tal qual o da liberdade de expressão pode servir às mais variadas matizes e interesses: desclassificam-se garantias para que se tornem direitos.
Mas o que permanece é hábito latino e ladino de ajustar o que não nos agrada, sobretudo quando o texto não atende uns leitores, que sempre vão atalhar em contraproposta ao seu cumprimento: “por que não mudar o texto?”.
Típico fenômeno da periferia do capitalismo, a Constituição Federal, desde o nascedouro até os seus 15 anos, chega hoje, aos 25, cheia de cicatrizes e experiências dolorosas e com a grave mania de se enxertar nas escaras do texto constitucional uma solução que pode estar ali. Continuamos sem buscar soluções na Constituição, insistindo nas reduções e sempre imaginando ter acabado com um problema.
Nesses 25 anos de experiência de leitura, não aprendemos a encontrar soluções na Constituição, mas repetimos o vício de achar que ela só carrega problemas. Muitos dirão que esse seria um dos efeitos da democracia, mas em raras comparações com outras experiências constitucionais democráticas haverá uma democracia se formar com tantas emendas e intervenções diretas do poder executivo.
No país do “permanente provisório com ares moderadores”, da Copa do Mundo que nunca vai acabar, ainda não atinamos que uma democracia se forma com ciência e consciência e não com insistência e indecência. A falta de diálogo ou o diálogo diferido a posteriori, do qual do Código Civil é um grande exemplo e o Código Comercial está para ser outro (exceto pelo combate admirável de homens como o “cidadão” Erasmo França), mostra o quanto ainda estamos pacificados com uma cultura antidemocrática, por mais que queiramos ensaiar o contrário.
Lysias (459-380a. C.), no século V a.C., em defesa da Constituição ateniense, intitulado “Discurso contra a subversão da constituição”, deixou a frase, ainda não lida e que vale para este 25º aniversário da Constituição Brasileira:
“Neste derradeiro momento em que supomos, homens de Atenas, que os desastres que caíram sobre ela foram deixados para trás com suficientes lembranças para a pólis se prevenir até mesmo de um desejo de nossos descendentes pela mudança da constituição, tais homens procuram nos enganar, depois de tantos e funestos sofrimentos e de nossa experiência em ambos os sistemas, com as mesmas espécies de decreto com que nos iludiram duas vezes antes”.
* Evandro Fernandes de Pontes é professor de Direito no Insper. Doutor e mestre em Direito Comercial, Evandro é graduado em Letras e em Direito pela Universidade de São Paulo. Foi pesquisador visitante na Faculdade de Direito da Universidade da Virginia (EUA) e tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial e Societário.
Data: 05/10/2013