10/05/2022
A diversidade de interesses da turma explicitou o potencial das políticas públicas na área do Direito de Crianças e Adolescentes, diz Mayara Silva
Leandro Steiw
A lembrança de Mayara Silva de Souza vem da infância, vivendo com a mãe, Dona Neide, e os três irmãos no Grajaú, distrito mais populoso de São Paulo. “Eu sempre quis estudar Direito”, rememora. “Questões da separação dos meus pais mexeram comigo a ponto de eu querer ser advogada.” Realizado o sonho da formatura em 2015, ela fez duas especializações paralelamente, entre as quais a primeira turma do Programa Avançado em Gestão Pública (PAGP) do Insper, concluído em 2019.
Ex-aluna de escola pública, aos 15 anos começou a frequentar o Educafro, curso popular que engaja jovens da periferia a almejar o ensino superior. Com a boa nota conquistada no Enem, pagou a faculdade de Direito com bolsa do Prouni e financiamento do Fies. “Ingressei na Universidade São Judas Tadeu no ano seguinte do ensino médio, o que para mim foi muito importante. Nenhuma pessoa na minha família havia entrado no ensino superior, então foi algo muito significativo”, relata Mayara, que foi criada pela mãe e tinha como rede de apoio outras mulheres negras, como suas tias e primas.
Coisas mágicas do aprendizado na faculdade: “Descobri que a minha paixão era o Direito de Crianças e Adolescentes, e nem tínhamos uma disciplina específica sobre o tema. Passei a estudar de uma maneira muito autônoma o Estatuto da Criança e do Adolescente, e alguns professores, embora não dessem essa matéria, me apoiavam, sobretudo uma professora de Direito Empresarial, que foi minha orientadora no TCC”. Nessa ocasião, surgiu um trabalho voluntário na Fundação Casa e em presídios, com oficinas literárias para adolescentes e adultos, chamado Sarau Asas Abertas.
Hoje, Mayara atua na área de Direito de Adolescentes a quem é atribuída a prática de ato infracional, preocupação que se intensificou durante um estágio na Defensoria Pública. “Naquela experiência, percebi na prática que o Direito não dava conta de tudo. Eu conseguia ter acesso à defesa técnica de adolescentes, a compreender a fase processual no âmbito da Justiça juvenil, mas eu queria entender a execução das medidas socioeducativas no dia a dia das unidades socioeducativas.”
Durante esse período de questionamento, Mayara trabalhava como representante da prefeitura de São Paulo no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA). “Percebi que o que mobilizava e concretizava o Direito eram as políticas públicas”, observa. “Eu precisava entender como se cria uma política pública, como funciona, como se cobra, como se efetiva toda a teoria jurídica que eu havia visto na faculdade.” Uma amiga comentou que o Insper estava inaugurando uma pós-graduação em gestão de políticas públicas exatamente na época dessa inquietude.
Mayara recorda: “Felizmente, fui aprovada no processo seletivo e ingressei no PAGP muito com a sede de entender como o Direito se materializa por meio de políticas públicas. E também com um objetivo muito específico, porque eu já tinha essa paixão pelo direito de crianças e adolescentes e um foco muito específico em políticas públicas voltadas à infância e à juventude, sobretudo adolescentes a quem são atribuídas práticas de ato infracional. É interessante, porque, no próprio campo do sistema socioeducativo, muitas pessoas ainda têm dificuldade de entender medidas socioeducativas enquanto políticas públicas por priorizarem o caráter sancionatório da medida”.
A turma que ela encontrou no Insper revelava vocações distintas. “Só que o curso me qualificou ainda mais, pois cheguei muito preocupada com a área da infância e tive a oportunidade de olhar para outras políticas públicas que, no primeiro momento, não me chamavam tanto a atenção”, diz. “Na diversidade da turma, havia gente que trabalhava muito forte na área da saúde, da cultura ou da educação. Então, aprender com colegas e professores sobre outras políticas públicas que não estavam no meu radar foi algo que qualificou o meu interesse principal. Porque a política pública socioeducativa envolve educação, cultura e saúde, entre outras áreas, em todas suas instâncias.”
Quando terminou o PAGP, Mayara tornou-se gestora de um projeto sobre sistema socioeducativo na organização do terceiro setor na qual já trabalhava. “Acredito que essa oportunidade foi muito relevante e impulsionante para a minha carreira e, certamente, teve a contribuição do PAGP nesse processo”, avalia. Há oito meses, a advogada paulista é assistente técnica de um projeto do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), relacionado ao sistema socioeducativo no âmbito do poder judiciário no Brasil. Também pesquisa, no mestrado em Direito da Universidade de Brasília (UnB), o racismo estrutural na justiça juvenil.
A próxima meta deve agregar experiência internacional. “Meu plano é entender como países que têm proximidade política, social e econômica com o Brasil desenvolvem políticas públicas para adolescentes que são responsabilizados por alguma prática infracional”, afirma. “Considerando, obviamente, as especificidades e as legislações que o Brasil tem, que inclusive são legislações mais avançadas que as de outros países. Mas ainda existe uma prática de política na qual precisamos avançar significativamente, colocando o interesse de adolescentes em primeiro lugar, assim como suas especificidades sociais, culturais e econômicas.”
Para Mayara, estudar como as políticas são aplicadas em outros estados é importante para encontrar alternativas efetivas à privação da liberdade para adolescentes e jovens. “Quero conhecer possibilidades que me permitam ser criativa o suficiente para contribuir com o desenvolvimento de um modelo que respeite as vidas e os sonhos de adolescentes e jovens e a realidade social, cultural e política do Brasil”, planeja. Ela explica que, em 2017, se tratava de um público de um pouco mais de 26 mil adolescentes em privação de liberdade e de 118 mil em cumprimento de outros tipos de medidas socioeducativas — após este período, inexistem dados atualizados deste total. “Será que o Brasil não consegue desenvolver uma política que respeite o direito desses adolescentes com absoluta prioridade, como determina a nossa própria Constituição Federal?”, questiona. “E que faça com que eles não precisem mais recorrer a ações infracionais que, muitas vezes, são em verdade um pedido de socorro silencioso para viver com dignidade?”