07/06/2022
Livro retrata os desafios e as conquistas de comunidade de pescadores localizada em Recife em um dos maiores manguezais urbanos do país
Bárbara Nór
Localizada na zona sul da cidade de Recife em um dos maiores manguezais de área urbana do país, a Ilha de Deus tem uma história que remonta ao início do século 20, quando se formou uma comunidade de pescadores artesanais. Cultura, comunidade e resistência fizeram parte da história desses habitantes — assim como a exclusão e o abandono por parte do poder público.
Até 1986, por exemplo, não havia nenhuma ponte ligando a ilha ao resto da cidade, e mesmo assim, naquele ano foi construída apenas uma ponte de madeira. As casas eram de palafitas e feitas de madeira, e não havia saneamento básico ou coleta de lixo. Da mesma forma, o acesso à educação e aos serviços básicos de saúde era precário. Até hoje, grande parte da população da Ilha de Deus, de cerca de 1.150 pessoas, vive da pesca — em especial do sururu, um marisco muito usado na culinária pernambucana.
A história do processo de urbanização da ilha começaria só em 2007, em uma iniciativa do então governo do Pernambuco. Depois de vencer um processo de licitação, a consultoria Diagonal iniciou, de forma participativa com os habitantes da ilha, um trabalho para a urbanização da Ilha de Deus. O objetivo era promover o que foi chamado de “transformação integrada”, unindo aspectos sociais, ambientais e urbanísticos. E é essa história que foi contada no livro Ilha de Deus – uma História de Resistência e Transformação, escrito por Carolina de Queiroga Jucá, analista de projetos na Diagonal, e Vilma Dourado, do Conselho de Gestão da Diagonal e Responsável Técnica da área social.
Elas, assim como Álvaro Jucá, cofundador da Diagonal, e Deise Coelho, diretora da Condominium, empresa do Grupo Diagonal, foram convidadas pelo Insper para participar de um webinar no dia 17 de maio, com a mediação de Carlos Leite, coordenador do Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. Além de contar a história da Ilha e do projeto de urbanização, o evento teve espaço para perguntas e dúvidas dos espectadores. “Esse livro é muito bem-vindo por mostrar o trabalho impressionante na transformação da Ilha de Deus”, disse Carlos Leite, do Insper.
Durante o bate-papo, Álvaro Jucá contou a história da Ilha de Deus, lembrando como eram precárias as condições de vida antes das intervenções. “Só 5% dos imóveis tinham água canalizada”, relatou. “Nos momentos de maré alta, a água invadia muitos dos imóveis, havia um problema do lixo na rua, não tinha coleta, era um esgoto a céu aberto.”
A urbanização da ilha, contaram os convidados, foi marcante para todos os envolvidos. Durante o webinar, foram exibidos também depoimentos gravados, como o de Nalvinha da Ilha, uma das lideranças da Ilha de Deus, e o de Geraldo Júlio, secretário de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco.
Em sua exposição, Deise Coelho deu detalhes do trabalho de campo feito pela equipe da Diagonal para garantir que as decisões fossem participativas, o que acabou aproximando muito os habitantes com a equipe da Diagonal. Foi justamente essa troca, disse ela, que tornou o projeto tão enriquecedor. “Foi um projeto muito emblemático e um marco na minha vida”, disse. “Tenho certeza de que, além de transformar a vida das pessoas da Ilha, esse projeto também formou muitos profissionais, foi um grande aprendizado e uma grande troca.”
Foi nesse processo, por exemplo, que surgiu a iniciativa da ponte de concreto construída em 2009, chamada de Ponte Vitória das Mulheres — ela era uma das prioridades apontadas pelos moradores da Ilha, que muitas vezes se viam obrigados a fazer o trajeto entre a Ilha e a cidade de barco. Por decisão coletiva, também ficou decidido que a ponte não serviria para carga pesada, como de caminhões ou grande fluxo de carros.
Afinal, um dos objetivos era também garantir a sustentabilidade tanto da cultura da Ilha quanto do meio ambiente em meio ao processo de urbanização. O projeto também capacitou moradores da ilha para a execução das obras de urbanização, que resultaram em 349 habitações de alvenaria para as famílias. Além disso, o trabalho envolveu a relocação de algumas famílias para ajudar a garantir a preservação do mangue.
Para escrever o livro, contou Vilma Dourado, uma das autoras, foi preciso recorrer à história oral da ocupação da Ilha junto aos residentes — algo que seria marcante para ela. “Essa experiência teve um aspecto bastante emocional durante o período em que a gente estava escrevendo”, disse. “Eu e a Carol [coautora do livro] sofremos muito como espectadoras também, de pensar na insalubridade, na precariedade, a maré invadindo a casa das pessoas. Tudo isso trazia na minha mente a história daqui [do Recife], um pouco da história da minha infância.”
“Foram sete anos de trabalho resumidos em aproximadamente 170 páginas, então foi intenso”, disse Carolina Jucá, coautora do livro. “Foi difícil, mas foi muito gostoso escrever esse livro e aprender um pouco sobre a história da cidade do Recife, é sempre importante lembrar de onde a gente veio.”
Tanto a história da Ilha quanto os detalhes sobre a metodologia e iniciativas da Diagonal e dos moradores foram documentados na obra, que conta também com fotos, oriundas de uma pesquisa de imagens da época das primeiras ocupações da Ilha de Deus, assim como relatos dos moradores e de outros envolvidos na urbanização. “No livro, está detalhado esse trabalho de como fazer e como planejar um gerenciamento de tantas intervenções sociais e ambientais ao mesmo tempo”, disse Deise Coelho, que considera que a obra virou referência para novos projetos.
Para assistir ao webinar na íntegra, clique aqui.