26/04/2016
Marcos Lisboa é um economista com profundo respeito pela política. Ele duvida que decisões econômicas puramente técnicas consigam tirar o país da crise. Defende que quem quer que ocupe a Presidência da República nos meses à frente formule uma agenda clara e a debata com a sociedade. Mais: é fundamental que essa agenda seja do governo inteiro, não apenas da equipe econômica. Por isso, defende também que o Ministério da Fazenda fique com um político com conhecimento de economia, em vez de um economista. O cargo de ministro requer uma habilidade de negociar e mediar conflitos, que um técnico, usualmente, não tem”, afirma Lisboa, Ph.D. em economia pela Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e presidente da escola de negócios Insper. Sempre modesto em suas formulações, o economista é uma raridade no cenário público brasileiro. Atuou como secretário de Política Econômica no Ministério da Fazenda durante o governo Lula e é contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Ao mesmo tempo, defende de forma intransigente a modernização da economia, reconhece os pontos positivos no discurso do vice-presidente, Michel Temer, e pede a retomada da agenda modernizadora que se perdeu durante o governo Dilma.
ÉPOCA – O país tem uma lista imensa de problemas a resolver. O que o senhor considera prioridade?
Marcos Lisboa – O mais urgente é o problema fiscal, as contas públicas. O Brasil está numa trajetória de dívida pública ascendente em relação ao PIB, insustentável. Ela poderá chegar a 85% do PIB no fim deste governo, em 2018. O Brasil um país de envelhecimento acelerado. Hoje, tem oito trabalhadores por aposentado. Em 25 anos, vai ter só quatro trabalhadores por aposentado. E tem regras que permitem aposentadoria muito precoce, aos 55 anos, em média, para os homens. No resto do mundo, a idade mínima é 65 anos. Isso leva o déficit público a aumentar cerca de RS 30 bilhões por ano. O mundo inteiro fez reforma da previdência, os desenvolvidos e alguns dos emergentes, como o Chile, a partir dos anos 1990. Se tivéssemos feito a reforma da previdência lá atrás, como o resto do mundo, teríamos evitado o problema. A questão do gasto público está diagnosticada pelo menos desde 2004. Chegou a haver uma proposta da equipe econômica de como limitar o crescimento do gasto, que foi veementemente rejeitada, publicamente, pela então ministra-chefe da Casa Civil (Dilma Rousseff, em 2005).
ÉPOCA – Na lista extensa de problemas, então, a previdência deveria ser o primeiro a ser atacado?
Lisboa – A previdência é uma, em especial a idade minima, mas não é só isso. Há o acúmulo de benefícios fiscais. A degradação do sistema tributário foi impressionante nos últimos anos – a complexidade dele aumentou, surgiram muitos regimes diferentes, uma série de distorções, alguns pagam muito, outros pagam pouco. Um terceiro ponto: rever as políticas de proteção setoriais, fracassadas. Quarto: rever a política social e focalizá-la nos mais pobres.
ÉPOCA – O Brasil teve um período de uns 15 anos ou mais de modernização, ai perdeu o rumo. O que deu tão errado nos últimos anos?
Lisboa – É a grande pergunta. Como é que se desmonta todo o avanço institucional construído ao longo de vários governos? Esse avanço era uma conquista de todo o país. Começou nos anos 1990, no governo Itamar. O país avançava na economia e no aspecto social. Com divergências, conflitos, alguns retrocessos, mas caminhava na direção da normalidade e da modernização. A abertura da economia, a estabilização, as privatizações foram respostas às grandes crises da economia fechada, desestabilizada e com hiperinflação dos anos 1980. Entre 1990 e 2008, o país viveu uma fase de arrumação, com fortalecimento das instituições, das agências reguladoras, a operação da política monetária, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a renegociação das dívidas dos Estados, as reformas de crédito, a política social criada sob Fernando Henrique e aperfeiçoada no governo Lula. Pela primeira vez o país crescia com queda da desigualdade de renda, com benefício para os mais pobres. Caminhava para ter regras horizontais, comuns para todos, com ausência de discriminação, com um Estado regulador, e não interventor, que se concentra mais na política social – educação, pensões, cuidado com os pobres. O Brasil convergia para a agenda dos países desenvolvidos. Parecia ter encontrado um caminho. Tudo isso foi desmontado a partir de 2009.
ÉPOCA – O que fizemos de errado?
Lisboa – Essa agenda de construção institucional nunca foi consensual, nem no governo Fernando Henrique nem no governo Lula. Havia divergências. Sempre houve quem defendesse o Estado mais discricionário, com poder de intervenção, que protege setores e diz os caminhos que cada setor tem de tomar. Acho que, em 2008, venceu a crença de que, se o governo promove desenvolvimento local de vários setores, o país se desenvolve. Venceu a defesa da necessidade de indústria naval forte (leia a reportagem a partir da página 42), indústria de bens de capital, de óleo e gás, de proteção à indústria automobilística. É a crença no “Brasil grande”, de que, ao produzir tudo que se puder dentro do Brasil, o país enriquece. Isso não é necessariamente verdade. Essa visão foi muito comum nos anos 1950. É a mesma crença que o Brasil teve no governo Geisel – diante de uma crise externa, pensamos naquela época “vamos fechar a economia, dar crédito, subsídios, assim vamos crescer”. Naquela época, ocorreu o mesmo que agora: a cada ano, menor investimento, menor crescimento e geração de empregos, maior degradação das contas públicas. Resultou nos trágicos anos 1980. Essa crença esteve por trás da política econômica dos últimos anos e nos levou à piora das contas públicas e ao declínio do investimento e do emprego.
ÉPOCA – Resolver tudo isso é isso é muito complicado. Como avançar com as propostas para resolver cada problema?
Lisboa – Esses temas são polêmicos, difíceis, afetam vários grupos. Por isso, me parece que essa agenda deveria passar por um amplo debate com a sociedade, num processo eleitoral. A sociedade tem de fazer as escolhas sobre como enfrentar os problemas. Perdemos essa oportunidade em 2014.
ÉPOCA – Fernando Henrique diz que o importante e ter uma agenda de governo, dizer claramente o que se pretende fazer. A agenda é tão importante assim?
Lisboa – É fundamental. No começo do governo Lula, tentamos fazer isso. Dissemos: os números são esses, nosso diagnóstico é esse, nossa proposta é essa. Foi polêmico, deu discussão dentro do governo, fora do governo. Tinha a discussão sobre focalização de gastos sociais. Gerou um grande debate, mas debate é saudável. Ter clareza de princípios e de agenda, fazer um debate público sujeito a críticas e rachas, tudo isso é parte da vida pública.
ÉPOCA – O que o senhor acha do documento Uma Ponte para o Futuro, apresentado publicamente pelo vice-presidente Michel Temer em outubro de 2015?
Lisboa – É um documento que enfrenta os problemas. Normalmente, fala-se muito em manter direitos e, magicamente, resolver os problemas. Nunca se sabe bem quem vai pagar a conta. No documento, é a primeira vez que se enfrentam os problemas e se diz “todos teremos de arcar com sacrifícios”. Ele aponta um caminho, uma direção. Mas quando, de que forma, ainda há uma distância entre o documento e uma agenda de verdade. É preciso definir modelos de transição. Não se podem mudar as regras bruscamente. Famílias e empresas tomaram decisões com base no regime que está aí. As mudanças têm de ser progressivas, dentro de um cronograma, para as famílias e as empresas poderem se ajustar. Não se trata de uma saída técnica. Há várias possibilidades de saída dos problemas, e essas escolhas pertencem ao mundo da política. Só não se pode admitir a inação. Não vejo um fundo do poço, uma estabilização. Se nada for feito, os problemas vão piorar.
ÉPOCA – O senhor acha que um politico com conhecimento de economia seria melhor no Ministério da Fazenda que um economista?
Lisboa – Defendi publicamente isso várias vezes. A agenda não pode ser do Ministério da Fazenda, tem de ser do governo. Cargo de ministro requer habilidade de negociar e mediar conflitos, um perfil que técnico, usualmente, não tem. Há exceções, como o Armínio Fraga. Mas são exceções.
ÉPOCA – Leva muito tempo voltar ao caminho certo?
Lisboa – Infelizmente, leva. É preciso reconstruir a credibilidade. Qual é a confiança de um investidor, hoje, de que as regras do jogo serão respeitadas no Brasil?
Fonte: Revista Época – 25/04/2016