12/07/2013
O governo da China avança com reformas para liberar a economia e sofre os primeiros abalos. Até onde vai o novo choque de capitalismo?
O primeiro- ministro da China, Li Keqiang, é um homem de sorriso fácil e comunicativo. Tem chamado a atenção, em seu país e em viagens internacionais, pelo inglês fluente e pela fala descontraída, diferente de seus antecessores. Agora, terá de mostrar também que é capaz de manter a posição numa briga feia. Desde março, quando assumiu o cargo, Li vem usando a fala macia para propor reformas ousadas – em resumo, mais poder ao mercado e menos poder aos integrantes do Partido Comunista. Trata-se do tipo de reforma que poderia fazer a China do futuro crescer em bom ritmo e oferecer mais oportunidades a empresas de outros países, incluindo o Brasil- uma boa notícia. Mas trata-se também do tipo de reforma que pode fazer a China parar de crescer abruptamente, fechar oportunidades de negócios e afundar o mundo na crise – uma notícia horrível. Nas últimas semanas, o mercado chinês começou a reagir violentamente às mudanças propostas pelo homem de fala macia.
As declarações de Li vinham se tornando progressivamente mais fortes. Em março, em seu primeiro discurso no cargo, ele afirmou que o governo deveria conferir ao mercado um papel maior na condução da economia e facilitar a entrada de capital privado nos setores bancário, ferroviário, energético e de serviços. “Há muito espaço para elevar mais a produtividade por meio de reformas”, disse. Em maio, na Suíça, o tom subiu. “Vamos avançar sem desvios com a reforma do mercado financeiro, acelerar o desenvolvimento do mercado de capitais e promover firmemente (a adoção) de taxas de juros definidas pelo mercado.” Em junho, o governo começou a pôr em prática essa reforma financeira. O Banco Popular da China, o banco central do país, cortou o fluxo de dinheiro fácil que usualmente irriga as instituições financeiras. A medida mirava alvos diversos. Primeiro, interromper os empréstimos repassados dos bancos ao sistema bancário paralelo, formado por entidades sem regulação, que emprestam com pouco critério e elevam os riscos para a economia. Segundo, conter o avanço geral do crédito e permitir que as taxas de juros subam diante da demanda por dinheiro. Assim, bancos e empresas estatais passariam a usar esse recurso escasso de forma mais prudente e eficiente. Como resultado, a Bolsa despencou, e algumas taxas de juros dispararam. Espalhou-se o temor de que, se os juros subirem definitivamente, empresas importantes não terão como pagar suas dívidas. O economista Nicholas Lardy, especialista em China e pesquisador no Instituto Peterson de Economia Internacional, crê que os juros mais flexíveis (e altos) obrigarão as companhias estatais a se tornar mais eficientes e favorecerão as empresas privadas. “Isso dará um choque de curto prazo nos bancos e empresas e colocará os ‘paralelos’ em situação difícil. Também manda um forte sinal ao mercado de que acabaram os dias de dinheiro fácil”, afirma o consultor Edward Tse, da Booz, autor do livro The China strategy (A estratégia para a China). Esses abalos também aumentam a oposição a Li dentro do governo e entre os dirigentes de estatais. Será que o homem forte da China vai piscar?
Nunca antes a China teve um primeiro-ministro como Li, doutor em economia pela Universidade de Pequim. Se avançar com seus planos – e há dúvidas sobre sua tenacidade e seu poder para isso -, ele levará a China a um segundo choque de capitalismo. O país é uma experiência fascinante e intrigante desde que ocorreu o primeiro choque, em 1978, sob o primeiro-ministro Deng Xiaoping. Ele admitiu o investimento privado e a entrada de empresas estrangeiras no país. E deu uma explicação hoje famosa para o sistema misto que inventava: não importava a cor do gato, contanto que ele comesse o rato – tradução: a ideologia importava menos do que fazer o país crescer. O resultado foi a incorporação de características capitalistas que tornaram a China a segunda maior economia do mundo em menos de uma geração. Mais de 600 milhões de pessoas saíram da pobreza no país ao longo dos 35 anos seguintes, um fenômeno sem igual na história.
O novo choque de capitalismo proposto por Li teria alvos mais certeiros. Além de afrouxar o controle sobre os juros e conter o crédito, ele quer diminuir o investimento estatal dirigido e liberar os preços dos serviços públicos. Entram na lista também a ampliação da cobertura social e o incentivo à urbanização, a fim de estimular cidadãos e empresas a consumir mais. Nos últimos anos, a economia chinesa dependeu em demasia do investimento, segundo Roberto Dumas, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). Esse investimento resulta em capacidade excessiva de produzir e exportar, num mundo que compra menos por ainda estar em recuperação da crise. “A nova liderança chinesa percebeu a necessidade de rebalancear o crescimento. É necessário estimular o consumo interno”, diz Dumas. Apesar de esse problema ser completamente diferente dos que assolam o Brasil, a agenda de reformas de Li começou com medidas que soariam como música por aqui.
Para começar a reforma, Li definiu o ataque à burocracia como um dos quatro pilares de seu programa de governo. Em março e abril, acabou com dois ministérios e anunciou 107 medidas de redução de papelada que atrapalhavam cidadãos e empresas. As medidas incluíram a eliminação de procedimentos para abrir empresas e a delegação de outros procedimentos a autoridades locais. O objetivo é cortar, nos próximos anos, cerca de 600 vaivéns burocráticos que tornam empresas e cidadãos mais dependentes do governo central. O governo também abriu aos chineses a possibilidade de, pela internet, fazer comentários, sugestões e reclamações de abuso de poder. Em outra frente, tenta deslocar parte de seus incentivos para longe das grandes cidades e das grandes empresas – a concentração excessiva facilita a vida dos empresários com as conexões certas no governo. O banco central passará a conceder empréstimos de forma mais pulverizada e apoio financeiro a pequenas e microempresas e a negócios nas áreas rurais. Ficará também mais fácil a opção de comprar empresas e adquirir ativos fora do país.
Li chamou a reforma de “revolução auto imposta” – uma verdade parcial. Neste momento, o governo autoritário realmente não sofre pressões políticas tão fortes para abrir mão de parte de seu poder. Mas Li e outros dirigentes parecem ter percebido que haverá dificuldade crescente em administrar uma China cada vez mais complexa. No ranking do Banco Mundial sobre ambiente de negócios, a China piorou nos últimos anos. Caiu do 83º lugar, em 2008, para o 91 º, neste ano. O crédito dirigido pelo governo se expande perigosamente. Depois de se manter estável entre 2003 e 2008, saltou da casa dos 120% do PIE – já bem alta para mais de 180%. O ritmo de crescimento do PIE caiu de 14%, no início de 2007, para 7,7%, no segundo trimestre deste ano.
A urgência das reformas, porém, não torna sua adoção uma certeza. Os governos das províncias e das cidades podem sabotar as mudanças. E o sistema de decisões no Partido Comunista, que preza o consenso, dificulta guinadas radicais. Se passar pelo teste do mercado, nas próximas semanas, Li ainda precisará enfrentar a reunião plenária do PC, em outubro, quando terá de apresentar detalhes de seus planos. Mesmo com todos esses obstáculos, vale a pena prestar atenção à reforma em andamento.
Fonte: Revista Época – 10/07/2013