04/08/2022
Tido como “radical de centro”, o presidente Emmanuel Macron defende duas medidas aparentemente de esquerda: limites para executivos e ganho extra para trabalhadores. Elas fazem sentido?
David Cohen
Limitar salários de altos executivos que sejam considerados exorbitantes e promover uma participação dos trabalhadores nos lucros das companhias podem parecer bandeiras típicas de movimentos socialistas — mas são duas das propostas do presidente da França, Emmanuel Macron, normalmente identificado com a direita, ou com uma espécie de “centro radical”, para seu segundo mandato, iniciado em 14 de maio.
O governo francês já avançou na segunda dessas propostas, estendendo benefícios para as empresas que decidirem distribuir a seus trabalhadores uma remuneração extra. A prime exceptionelle de pouvoir d’achat (extra excepcional de poder de compra) foi estabelecida em 2019, em resposta ao movimento dos coletes amarelos, uma onda de protestos de rua contra o aumento do preço dos combustíveis, a partir do final de 2018. Nos dois anos seguintes ela foi renovada como forma de conter os efeitos da pandemia sobre os trabalhadores mais pobres. Neste início de agosto, a medida foi mais uma vez aprovada pelo Senado e deve se tornar permanente a partir de 2024.
Trata-se, basicamente, de um incentivo para as empresas distribuírem ganhos extras aos seus empregados, por meio da isenção do pagamento de impostos (tanto pelas empresas como pelos trabalhadores) para o bônus, dentro de certas condições.
Para este ano, o teto de isenção de impostos triplicou, de 2.000 para 6.000 euros nas empresas que tenham acordo de interesses com seus funcionários ou que empreguem menos de 50 pessoas, e de 1.000 para 3.000 euros nas demais empresas. A isenção, no entanto, só vale para aqueles que ganham até três salários mínimos.
A proposta que consta no programa de governo apresentado por Macron nas eleições é ainda mais ousada: tornar obrigatória a distribuição de resultados para todas as empresas com mais de 11 empregados que distribuam dividendos aos acionistas (hoje o acordo de participação já é obrigatório, mas apenas para empresas com mais de 50 funcionários). Ou seja: se a companhia quiser distribuir dividendos, precisa conceder algum prêmio aos seus trabalhadores.
“A discussão sobre participação nos lucros e resultados (PLR) é interessante”, diz Ricardo Rocha, professor de finanças do Insper. “Mas isso tem que ser iniciativa da empresa, não uma obrigação. A literatura mostra que os incentivos que não têm reciprocidade não funcionam, ou funcionam mal.”
De acordo com Rocha, o máximo que o Estado pode fazer é criar incentivos, como desconto na tributação ou conceder mais visibilidade à marca. É exatamente essa linha que foi aprovada por acordo no Senado da França. E esse é um dos pontos em que a proposta difere das reivindicações socialistas. Os políticos de esquerda defendiam um puro e simples aumento de salários.
O aumento de salários, porém, é uma faca de dois gumes. De um lado, sem dúvida melhora a vida de quem está empregado. De outro, torna as contratações mais caras e, se a economia não sustenta os lucros das empresas, pode reduzir a oferta de trabalho. Entre essa proposta e a defesa de negociação livre entre patrões e empregados, favorecida pelos liberais mais ortodoxos, Macron de fato trilha um caminho do meio: estimular a participação dos trabalhadores nos resultados das empresas.
“Quando a empresa vai bem, ela distribui dividendos aos acionistas, isso é normal”, disse Macron em entrevista à rádio France-Bleu Normandie. “Mas é preciso que os assalariados recebam algo, também.” O Brasil tem uma norma nesse sentido, a lei que regulamenta a PLR. Por aqui, porém, ela não é obrigatória nem isenta de impostos. Ainda assim, quase todas as grandes empresas adotam a prática.
Na França, há dois tipos de acordo de PLR. Um é o acordo de interesses, facultativo, que deve estabelecer metas claras para a companhia. Se elas forem atingidas, os empregados recebem um montante definido (que não pode ser maior do que 20% do salário bruto). O outro é o acordo de participação, obrigatório para empresas com mais de 50 funcionários, que obedece a uma fórmula legal (levando em conta o lucro líquido, o capital da empresa, o valor adicionado e a massa de salários).
O novo bônus de poder de compra só poderá ser pago pelas empresas que possuam um acordo de interesses com seus funcionários (só nesse caso haverá renúncia fiscal do governo). “O que essa proposta tem de bom é a discussão de como unir os interesses dos trabalhadores aos da empresa”, diz Rocha. “Melhor ainda seria distribuir ações aos funcionários.”
A outra proposta de Macron surgiu da indignação causada pelo pacote de compensação do executivo-chefe da Stellantis, o português Carlos Tavares, referente a 2021. A remuneração consiste em 19 milhões de euros de salários, mais um montante de ações da empresa avaliado em 32 milhões de euros e um plano de compensação de longo prazo que gira em torno de 25 milhões de euros.
A Stellantis foi formada no ano passado pela fusão, em partes iguais, do conglomerado ítalo-americano Fiat Chrysler com o grupo francês PSA (dono das marcas Peugeot e Citroen). A pequena fortuna paga a Tavares tem a ver com os resultados iniciais dessa fusão.
A Stellantis reportou resultados acima do esperado, com 11,8% de aumento da margem de lucro operacional (antes de impostos) globalmente e uma taxa ainda melhor, 16,3%, nos Estados Unidos. Apesar disso, 52% dos acionistas da companhia votaram contra o relatório de pagamentos dos altos executivos, por considerá-los excessivos. Essa votação, entretanto, é apenas simbólica, pois as compensações são regidas com base na legislação holandesa, onde a Stellantis está sediada.
A companhia frisou ter distribuído 1,9 bilhão de euros aos acionistas e que a remuneração de Tavares era 90% variável — dependente do desempenho — e mais baixa que a recebida pelos comandantes de empresas rivais como a GM e a Ford.
Isso não aplacou a indignação demonstrada por Macron, que à época do anúncio estava em campanha pela reeleição, num segundo turno de votação contra a candidata de extrema direita Marine Le Pen. “As pessoas comuns têm problemas de pagar as contas, dificuldades e ansiedades em suas vidas, não podem ver somas como essas”, afirmou na mesma entrevista. “Se não, a sociedade vai explodir.”
Seu ministro das Finanças, Bruno Le Maire, disse em entrevista à TV France 5 que o salário de Tavares era “excessivo”, mas afirmou que a França não pode baixar o pagamento aos executivos por conta própria: “Isso tem de ser feito em nível europeu, ou vamos perder todos os bons CEOs capazes de entregar resultados fortes.”
“Essa proposta parece que é um jogo para a torcida”, diz Rocha, do Insper. “Como se faz isso num mercado como o americano, por exemplo, que sempre se guiou pela meritocracia? A gente pode até concordar que a discrepância entre os ganhos dos altos executivos e da média dos assalariados aumentou demais. Mas, se eles forem padronizados, a empresa vai continuar dando os mesmos resultados? Não sei. O teste é arriscado. Quem vai querer fazê-lo?”
É difícil conciliar a indignação de Macron com os proventos de altos executivos à sua fama de político favorável ao mercado. Mas isso talvez se explique pelo fato de que o centro político, na França, não está no mesmo ponto que nos Estados Unidos, no Reino Unido ou na Alemanha (e talvez tenha mais a ver com o Brasil).
Macron ainda é identificado pelos franceses como um ex-banqueiro de investimentos contrário à taxação de grandes riquezas, que defende leis trabalhistas mais flexíveis e o fim de direitos especiais à aposentadoria. Mas uma de suas grandes influências é o ex-presidente francês Michel Rocard, socialista, e seu primeiro governo tem uma série de políticas que vêm desse campo.
Não é apenas o dinheiro que o governo distribuiu durante a pandemia para conter a crise econômica — vários países adotaram a mesma solução, incluindo os Estados Unidos, com pacote de auxílio trilionário, e o Brasil. A diferença é que a França já é um país com economia altamente socializada, que gasta mais do que os países nórdicos em programas sociais. Macron elevou a dívida pública a um nível bem mais alto que a média da União Europeia.
Além disso, seu governo aprovou diversas leis progressivas, como dobrar o direito à licença paternidade para quatro semanas (sendo uma compulsória) e multas a empresas que não diminuírem a diferença de salários entre homens e mulheres.
Mais ainda, como escreveu Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI, na revista The Economist em abril, Macron teve que adaptar seu plano econômico para o segundo mandato porque as circunstâncias mudaram. Os protestos dos “coletes amarelos” colocaram a desigualdade geográfica no mapa; o aquecimento global tornou a ecologia mais proeminente; a pandemia da covid-19 evidenciou a necessidade de cuidar melhor dos funcionários da saúde; a queda das taxas de juros tornou a redução da dívida pública uma prioridade menor que no programa de 2017.
Ainda assim, diz ele, “a direção geral não mudou”. O programa de centro aponta para dois pilares: diminuir a desigualdade e aumentar o crescimento econômico. O primeiro pilar é atingido não apenas pela distribuição de renda (o foco principal de partidos de esquerda) mas também por igualdade de oportunidades (uma perspectiva mais comum em países anglo-saxões).
Por isso o primeiro governo Macron investiu pesadamente em educação, diminuindo o número de alunos por professor para 12 em áreas menos favorecidas, promovendo reformas no treinamento profissional, com foco em aprendizado contínuo etc. A promessa agora é dar maior autonomia para as escolas inovarem e melhorar o status e o pagamento dos professores, incentivando-os a investir mais em sua formação.
O segundo pilar tem mais a ver com políticas liberais: diminuir impostos para as empresas, incentivar as pessoas a trabalhar e a inovar. As taxas das empresas já caíram de 33% para 25% nos últimos cinco anos. O seguro-desemprego deverá ter, a partir de agora, uma obrigação de que o segurado entre em algum programa de treinamento ou trabalho. Fora isso, há a proposta de elevar para 65 a idade mínima de aposentadoria, uma medida impopular.
Perseguir todos esses objetivos (especialmente a reforma da previdência) deve se tornar um tanto mais complicado no segundo mandato. A coalizão que lhe dá sustentação ficou com apenas 245 cadeiras no Congresso, nas eleições do final de junho. São mais de cem a menos que as 346 do primeiro mandato, que lhe davam uma confortável maioria de cerca de 60% da Assembleia Nacional. Seu governo dependerá agora do apoio da esquerda ou da direita, de acordo com a proposta.
A coalizão de esquerda, liderada por Jean-Luc Mélenchon, conseguiu 131 cadeiras, fora as 22 de outros partidos de esquerda que não fazem parte do grupo. A Reunião Nacional, partido de Le Pen, elegeu 89 parlamentares, dez vezes mais que na última legislatura. Tomou espaço da direita tradicional, os Republicanos, que caíram de 101 para 61 cadeiras.