27/01/2022
Para o coordenador do CENeg do Insper, Carlos Caldeira, a compra da empresa de jogos eletrônicos Activision Blizzard pela companhia de Bill Gates muda o mercado de games e streaming
Leandro Steiw
A primeira reação à compra da empresa de games Activision Blizzard pela fabricante de softwares Microsoft, anunciada no dia 18 de janeiro, por 69 bilhões de dólares, foi de espanto. Algum bug teria levado a empresa de Bill Gates a desembolsar tanto dinheiro em uma das principais desenvolvedoras de jogos eletrônicos do mundo? Segundo Carlos Caldeira, coordenador do Centro de Estudos em Negócios (CENeg) do Insper, a importância do mercado de games é subestimada, por isso os valores parecem surpreendentes. Dependendo da estimativa, os games movimentam um mercado de 180 bilhões a 200 bilhões de dólares por ano, receita maior do que a dos segmentos de filmes e esportes juntos. Ou seja, a aquisição foi um avanço estratégico e tecnológico da Microsoft.
Doutor em Estratégia Empresarial pela Fundação Getulio Vargas, com MBA pela New York University, Caldeira observa uma corrida para oferecer o verdadeiro primeiro streaming de games. “Porque game é tempo de tela, então, os jogos competem diretamente com a Netflix e a Apple, por exemplo”, explica. Reed Hastings, CEO da Netflix, já declarou que seu maior concorrente é o Fortnite, um game online que tem números absurdamente grandes de tempo de tela — em 2020, chegou a 5,7 bilhões de horas de uso. “Essa disputa por tempo de tela existia e, aparentemente, a Microsoft ganhou”, afirma o professor do Insper.
Entre outros motivos, a Microsoft foi a primeira a fazer um serviço de assinaturas para games bem-sucedido, substituindo a venda do produto. Lançado em 2017, o Xbox Game Pass já chegou a 25 milhões de usuários, um número que nem parece assombroso, mas é relevante. A Microsoft apresentou, até mesmo no Brasil, a possibilidade de se jogar sem a utilização de um computador poderoso. Ou seja, o game é processado nos servidores da Microsoft, e o usuário controla o jogo conectado à internet — inclusive pelo celular. Seria a decadência dos caríssimos PCs gamers?
A Microsoft passará a ofertar a assinatura do serviço e, pelo Game Pass Ultimate, a possibilidade de se jogar remotamente, via celular Android. “Com esse tiro, a Microsoft já acerta dois grandes: a Tencent, uma gigante chinesa com jogos de celular, e a Apple, que estava fazendo muito dinheiro em jogos mobile”, analisa Caldeira. “Além disso, ganha a corrida dos consoles, tanto que as ações da Sony caíram 10% no dia seguinte ao comunicado da compra da Activision Blizzard, e impõe um desafio enorme em jogos de PC para a Steam, plataforma que vende jogos, mas não os aluga.”
Nos últimos quatro anos, a Microsoft comprou 15 produtoras de games. Isso sugere que a empresa está reunindo títulos bem-sucedidos — com a Activision Blizzard, chegam Call of Duty, Tony Hawk’s e Candy Crush, entre outros — e vai torná-los exclusivos. “A Microsoft tem dinheiro e mudou totalmente o mundo dos jogos”, afirma o professor. Para Caldeira, a empresa passa a ser um grande competidor em mobile e um concorrente de peso para Netflix e Amazon (que estavam tentando desenvolver o streaming), derruba a Sony e coloca uma pulga atrás da orelha da Steam, que domina a distribuição de jogos para PC. Como cereja desse Candy Crush, torna-se a terceira maior de games, atrás de Sony e Tencent, mas com um potencial enorme para crescer.
Os problemas de assédio moral e sexual na Activision Blizzard também deram um empurrão no negócio com a Microsoft. Houve denúncias e protestos de funcionários que o atual CEO, Bobby Kotick, tentou desconsiderar. O enfraquecimento da diretoria abriu um novo flanco no mercado, que a Microsoft soube aproveitar e, a partir de agora, pode tentar sanar com políticas internas para a retomada da confiança dos empregados. “Essa é uma indústria que sempre foi supermachista, cheia de assédio, e isso não é mais aceitável”, diz Caldeira.
Entre as companhias de tecnologia, grandes plataformas e serviços de assinatura ganharam importância na batalha entre Facebook, Google e Microsoft — com a Apple, que oferece ainda menos serviços, correndo atrás. A aquisição da Activision Blizzard apresenta duas vantagens. Segundo Caldeira, a Microsoft tem o perfil de receita mais bem dividido entre vários tipos de negócios. O Google ainda é 75% publicidade. O Facebook é praticamente 100% publicidade. A Amazon, 50% em vendas e o restante em outros serviços, como AWS. Na Apple, 82% da receita vem de dispositivos. “A Microsoft tem uma divisão enorme; então, em termos de estratégia, é outra pegada. Há uma parte em serviços de rede, de AR cloud, uma parte em games, uma parte em PCs, uma parte em PC enterprise, uma parte em PC pessoa física. Existe uma divisão um terço, um terço, um terço. Estrategicamente, isso parece ser melhor”, observa Caldeira.
Outra jogada da Microsoft pode ser dominar o mundo dos games para obter uma posição privilegiada no metaverso, que não se sabe se será uma mescla de realidade virtual, realidade aumentada e blockchain, mas que, provavelmente, terá um pé em jogos eletrônicos. Tanto que a aposta do Facebook é partir para o metaverso com uma empresa de óculos de realidade virtual de games. Sendo um dos dominantes em games, a Microsoft se coloca frente a frente com o Facebook. Para o professor do Insper, na guerra por usuários, Bill Gates ganhou os 400 milhões de clientes da Activision e somou aos 200 milhões de usuários que já tinha no Office. A Amazon tem 200 milhões de usuários, e o Facebook tem 2,9 bilhões, mas muitos inativos. “Quem tiver um pé em games vai estar em vantagem no metaverso”, diz Caldeira.
Atualmente, quem está com esse pé são o Facebook, a Amazon (que é dona do Twitch, um site que transmite lives de jogos, e pode ser a porta de entrada do metaverso para a Amazon) e o Google (cujo sistema de jogos por streaming, o Stadia, não decolou). Para sair na frente, a Microsoft decidiu comprar usuários, comprar um acesso ao metaverso e ainda dominar os mercados de games e streaming. “A Microsoft entra no mercado de streaming de games, que talvez já seja maior que o de streaming de filmes, e tudo se alinha. Faz muito sentido”, diz Caldeira.
Quando a fórmula da Netflix se consolidou, os grandes estúdios começaram a tirar filmes e séries da plataforma e levar a exclusividade para seus próprios serviços de streaming, como a HBO Max e o Disney Plus. A Sony já demonstrou apreensão pela perda de games famosos no seu Playstation. Não se sabe se a ideia da Microsoft é reservar para si os melhores títulos, mas vale lembrar que, naquela oportunidade, as plataformas de streaming não compraram os estúdios de TV e cinema. “A Microsoft tem dinheiro suficiente para comprar os estúdios de games e as propriedades intelectuais, está com propriedades enormes e, aparentemente, está sabendo comprar. Mesmo podendo argumentar que pagou caro”, diz Caldeira. “É uma jogada muito interessante. Talvez ocorram os mesmos problemas do streaming. No final, vamos ter cinco plataformas diferentes.”
Caldeira enumera outras vantagens da negociação recente: “Só existe o serviço de streaming de jogos da Microsoft funcionando até agora. A Sony está correndo atrás para fazer o seu e não conseguiu. O Google meio que abandonou o Stadia. A Amazon fez uma tentativa de jogos por assinatura que não vingou. A Apple também tem jogos por assinatura, não streaming ainda, que não decolou. A Netflix falou que ia fazer o seu, mas não ouvimos mais nada a respeito. Então, a Microsoft vai ter uma vantagem boa.”
O insucesso do Google com o streaming demonstra que não é tão simples atuar nesse nicho. “Algumas pessoas não notam que um dos maiores negócios da Microsoft é justamente o Azure, com aplicativos e serviços que funcionam na nuvem. Por algum motivo, o Google não conseguiu fazer, mas a Microsoft teve êxito”, observa o professor. A Amazon tem o AWS, serviço de computação em nuvem, muito bem-posicionado, e a Netflix foi a primeira que conseguiu viabilizar o streaming, tornando-se líder porque a sua plataforma funcionava. Desde então, o diferencial é o processamento dos dados na nuvem, não só o armazenamento.
A luta das cinco grandes corporações — Facebook, Google, Apple, Amazon e Microsoft — vai mexer com o mercado de games, com os serviços de streaming, com o metaverso. “A Apple cresceu de zero para 20% a receita com serviços, mas ainda é muito dependente de dispositivos”, complementa Caldeira. “O que aconteceria se a Microsoft mostrasse que você não precisa mais de um device poderoso, que pode usar qualquer um e processar tudo na rede? O que aconteceria com a Apple? O pessoal não pensou por esse lado, mas é uma possibilidade que deveria começar a preocupar a Apple.” Há 20 anos, cogitava-se um futuro de conexões sem dispositivos, que ainda não se provou viável. A próxima inovação, bem além dos movimentos das Big Techs, pode estar a caminho. Assim, os surpreendentes 69 bilhões de dólares pagos por Bill Gates por outra companhia seriam apenas a repetição da situação clássica do universo dos games: sempre aparece alguém melhor para quebrar o recorde em vigor.