04/03/2015
Os escândalos na Petrobras, as dúvidas sobre a JBS e as pressões do governo contra a Vale mostram algumas distorções do novo capitalismo de Estado, fenômeno observado no Brasil e em muitos países, sobretudo emergentes. Os exemplos são analisados em “Reinventando o Capitalismo de Estado”, dos economistas Aldo Musacchio, da Harvard Business School, e Sergio Lazzarini, do Insper.
Os autores identificam nesse novo modelo o risco de fortalecimento da “mão espoliadora do Estado”, metáfora que remete à clássica “mão invisível do mercado”. Embora ambos pertençam ao campo liberal, não há no livro intenção de condenar a nova versão de intervenção estatal. Sem expressar juízo de valor nem levantar bandeiras sobre um tema ideologicamente polarizado, os professores consideram irrelevante o debate sobre a participação do Leviatã na economia, por se tratar de fato consumado. A questão, dizem, é como garantir que a mão espoliadora se transforme em “mão cuidadora”, favorável ao desenvolvimento econômico.
Musacchio e Lazzarini propõem uma taxonomia desse novo capitalismo, de acordo com a intensidade da presença do governo. O modelo tradicional – o “Leviatã como empreendedor”, ou seja, a empresa estatal – continua existindo, apesar de estar em declínio depois da onda de privatizações. Os novos modelos são os de “Leviatã como investidor majoritário”, mais comum na China e que no Brasil tem na Petrobras o maior exemplo, e “Leviatã como investidor minoritário”, a forma mais híbrida de capitalismo de Estado, que tem avançado no Brasil.
Tal classificação parte de uma definição mais abrangente de capitalismo de Estado. Para os autores, trata-se da “influência difusa do governo na economia, seja mediante participação minoritária ou majoritária nas empresas, seja por meio de fornecimento de crédito subsidiado e/ou de outros privilégios a negócios privados”.
Escrito originalmente em inglês, para a Harvard University Press, “Reinventando o Capitalismo de Estado” foi concluído antes que se avolumassem as suspeitas contra a administração da Petrobras. O livro registra que a abertura de capital alavancou a governança da empresa, mas afirma não estar claro “se a interferência política foi restringida”. Embora o caso esteja aberto, parece evidente que hoje a dúvida não se justifica.
A defasagem de informação, porém, não prejudica a análise. Musacchio e Lazzarini inserem a Petrobras no universo de 30 petrolíferas estatais “que atuam como intermediárias do fluxo de renda que os governos recebem com a exploração de petróleo e de gás”. Dessa perspectiva não há muita diferença entre a Petrobras e outras estatais do setor. “É nessas empresas que a tentação do governo de intervir na administração se manifesta com mais intensidade.”
O que diferencia essas estatais é o controle a que estão sujeitas. No caso do Brasil, “a Agência Nacional do Petróleo é relativamente fraca e muito dependente do governo. Em consequência, o presidente do Brasil e o ministro das Minas e Energia são os reguladores de fato da Petrobras”. Na Noruega, em contraste, a existência de agência regulatória autônoma e forte “ajudou a desenvolver freios e contrapesos institucionais que reduziram a capacidade do governo de intervir diretamente”.
Os autores não discutem o mérito da intervenção política. Registram tanto a visão desfavorável, em que se destaca a motivação política, como a visão favorável, em que pesa o interesse em fazer política industrial ou em alcançar objetivos sociais. A questão é que, no caso de empresas negociadas em Bolsa, quem paga a conta não é a sociedade, por meio de um Orçamento transparente aprovado pelo Congresso eleito democraticamente, mas o acionista minoritário.
A pressão do Leviatã para obter ganhos políticos e sociais atinge também empresas privatizadas em que o governo manteve presença como acionista minoritário. É o caso da Vale. Vendida pelo governo em 1997, a empresa continua sujeita à “interferência residual” do Estado, que detém participação acionária indireta por meio de fundos de pensão de estatais. Tal pressão atingiu o ápice no fim do governo Lula, que afastou um CEO bem-sucedido, Roger Agnelli, por sua resistência em usar a Vale para fazer política social e industrial.
O livro também aborda, embora com menos profundidade, o caso da JBS, a processadora de carne escolhida pelo governo para ser campeã nacional. A empresa deslanchou nos últimos anos, tornando-se uma gigante mundial, depois de empréstimos vultosos e participações significativas do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), que chegou a controlar quase um terço da empresa.
Sem mencionar especificamente a JBS, os autores apontam como problemas da política de campeões nacionais as distorções no mercado, o potencial de compadrio e a seleção do beneficiado de acordo com objetivos políticos. “Os campeões nacionais podem ser outra manifestação do governo de induzir o setor privado a pagar dividendos políticos.”
Musacchio e Lazzarini não poupam críticas ao papel do BNDES. Para eles, o atual modelo de funding do banco, baseado em contribuições sobre a folha de pagamento das empresas e empréstimos de longo prazo do Tesouro, gera três distorções na economia: incha as folhas de pagamentos, sufoca o investimento privado (ao absorver grande parte do crédito disponível) e aumenta a dívida bruta do país.
Para os autores, essa estratégia poderia até fazer sentido para um banco de desenvolvimento que usasse os recursos para financiar projetos que, de outra maneira, não teriam financiamento. Mas certamente esse não é caso dos campeões nacionais, empresas com acesso a linhas de crédito preferencial.
Pesquisa acadêmica rigorosa, “Reinventando o Capitalismo de Estado” escapa da discussão pautada por posições preconcebidas, além de indicar respostas e fazer perguntas que podem contribuir para o debate sobre a eficiência de um modelo econômico que se desenvolve na fronteira entre o público e o privado.
“Reinventando o Capitalismo de Estado – O Leviatã nos Negócios: Brasil e Outros Países” Aldo Musacchio e Sergio G. Lazzarini. Trad.: Afonso Celso da Cunha Serra. Portfolio Penguin (406 págs. / R$ 49,90)
Oscar Pilagallo é jornalista e autor de “História da Imprensa Paulista” e “A Aventura do Dinheiro”.
Fonte: Valor Econômico – 03/03/2015