Há um descontrole na economia Argentina. O “Clarín” o chama de “incertidumbre en la economía”. O nome, contudo, é traiçoeiro. Não há nenhuma incerteza: a Argentina reencontrar-se-á com seu passado: desestabilização das variáveis nominais (cujas manifestações mais claras e contemporâneas estão na taxa de câmbio, na inflação e nas negociações salariais), queda do produto per capita e dissenso social. Naturalmente, um prognóstico dessa natureza requer sustentação. Para tanto, dois eixos de argumentação devem ser desenvolvidos e articulados: uma breve digressão da história macroeconômica argentina e a análise dos eventos mais recentes no contexto da política econômica kirchnerista.
Entre 1961 e 2011, a taxa média de inflação na Argentina é de 192% ao ano. Nesse período de meio século, quatro em cada cinco anos apresentarão taxa de inflação acima de dois dígitos. Na Argentina, a inflação é quase uma certeza. Ora, como a moeda é um bem público, e, em parte, representativa do contrato social, estabilizar seu valor é pré-requisito para a razão de ser do Estado. Assim, nos últimos cinquenta anos, quatro planos de estabilização monetária foram implantados (1967, 1976, 1985 e 1991). Tal qual o Brasil, em 1967 a Argentina adotará políticas de estabilização monetária pautadas na redução dos desequilíbrios fiscais e na indexação ex-ante dos salários. Os resultados são transitórios: sem equilíbrio fiscal, a taxa de inflação, que é de 8% em 1969, alcança 473% em 1976. O produto per capita eleva-se 1,8% ao ano nesse período.
O golpe de Estado que derruba Isabel Perón em 1976 tem como justificativa desenvolver um “Proceso de Reorganización Nacional”. Há que se organizar a economia. O modelo adotado será aquele já em prática no Chile desde 1973: taxa de câmbio como âncora nominal, equilíbrio fiscal e medidas de abertura e desregulamentação. Contudo, ao contrário de Augusto Pinochet, Rafael Videla não logrará a completa e definitiva estabilidade das contas públicas. Por todo o período militar haverá déficit nominal, que chegará a 11% do PIB em 1983. A inflação alcançará 350% e o PIB per capita terá decrescido 1% ao ano.
O regime democrático é restituído em fins de 1983. Raúl Alfonsín enfrentará dois desafios: a crise da dívida e a inflação, que chegará a 672% em 1985. Derrotado por ambas, ele será mais um presidente da União Cívica Radical que não consegue concluir o mandato. O Plano Austral, de junho de 1985, articulará políticas de austeridade fiscal e monetária juntamente com congelamento de preços. Após fracassar no controle fiscal, a inflação alcançará, em 1989, o pico de 3.079%. No governo de Alfonsín, o PIB per capita terá caído 2,2% ao ano.
No final do mês passado (março de 2014) são necessários 10,5 pesos para se adquirir um dólar no “blue”, o mercado paralelo. O valor é 30% superior ao câmbio oficial e representa uma desvalorização de 44% em relação à taxa de fechamento de março de 2013. A taxa de juros sobre papéis do Banco Central dobra em meados de janeiro, chegando a 28,5% ao ano. No mesmo mês, a polícia de Córdoba obtém reajuste de 50% em seus salários. O mesmo reivindicam servidores em outras províncias. As variáveis nominais na Argentina não têm referência para sua dinâmica.
A origem do descontrole nominal na Argentina é, imediatamente, a redução do estoque de reservas internacionais.Em fins de março as reservas, que somam US$ 27,2 bilhões, são 32% menores do que há um ano. Retire-se desse montante US$ 8,8 bilhões que são ativos de bancos e depositantes. Excluindo-se outros US$ 9,8 bilhões contingenciados para pagamento de dívida externa soberana, tem-se pouco mais de US$ 9 bilhões, menos de dois meses de importações. A escassez do dólar rompe a confiança no peso e a medida dessa deterioração é dada pelas restrições impostas para o acesso à poupança em dólar, pelos estímulos à alocação de poupança em moeda doméstica e pelos limites de 30% para ativos em moeda estrangeira detidos pelos bancos.
Mas o que causa a redução das reservas internacionais? Déficits no balanço de pagamentos. Os termos de troca se deterioraram em 9,5% nos dois últimos trimestres de 2013. As importações de energia se elevaram. O déficit de 0,7% do PIB na conta corrente é o maior em mais de uma década. Sem acesso ao sistema financeiro internacional, as reservas internacionais definem-se pelas transações correntes. Entre abril e junho, contudo, os grãos serão colhidos e embarcados. As reservas se elevarão, mas a fonte da inflação permanecerá.
Qual é essa fonte? A mesma há 50 anos: déficits públicos. As despesas públicas são rígidas: alocam-se em toda sorte de subsídios cuja finalidade é o “controle” da inflação. Em 2012, o déficit nominal foi de 4,3% do PIB, o maior valor desde 2003. O financiamento desse déficit pela emissão de títulos para residentes mostra-se limitado. Resta, portanto, a monetização do déficit.
Déficit púbico e sua monetização apresentam-se como uma instituição na história argentina. Há aqui uma recorrência de meio século que se traduz em uma simples proposição macroeconômica: não há estabilidade de preços sem regime fiscal crível. Que esse binômio e a Argentina sirvam de parâmetros para os debates de 2014 no Brasil.
Fonte: Valor Econômico – SP – 03/04/2014