12/04/2022
Saiba como a análise de dados sobre os atletas, os adversários e até mesmo os torcedores está mudando o desempenho e a gestão dos esportes
Tiago Cordeiro
Fundado em 1892 na cidade inglesa homônima, o Liverpool se estabeleceu como uma força do futebol europeu ao longo das décadas de 1970 e 1980. Depois de um período de crise, em que viu o rival Manchester United dominar a primeira divisão do Campeonato Inglês, a Premier League, o clube da cidade que foi o berço dos Beatles, finalmente voltou ao auge nos últimos anos. Acumulou conquistas expressivas, que incluem o Mundial de Clubes em 2019, seis títulos da Champions League, o torneio europeu de clubes, e 19 títulos de campeão inglês. É o clube da Inglaterra com mais títulos europeus.
Parte do sucesso recente do Liverpool se explica pelo uso intensivo — e inovador — da ciência de dados. Nas últimas duas décadas, os principais times de futebol passaram a manter em sua folha de pagamento analistas de rendimento, que estudam as características dos adversários e produzem relatórios sobre o desempenho de seus próprios atletas. Também indicam para os goleiros, por exemplo, para que lado do gol cada batedor de pênalti costuma mirar. Mas o time inglês elevou as aplicações de data science a um novo patamar.
“O que é comum nestes cenários é que o uso de dados vá além do óbvio. Os clubes estão usando dados coletados de partidas anteriores para traçar estratégias que maximizem os resultados de seus times”, diz André Filipe de Moraes Batista, professor e coordenador técnico do Centro de Ciência de Dados do Insper.
Hoje, tão importantes para o Liverpool quanto os craques Mohamed Salah, Sadio Mané e Roberto Firmino são nomes menos conhecidos do público em geral, como William Spearman, Tim Waskett, Ian Graham e Michael Edwards. Spearman é diretor de data science do clube. Tem PhD em Física pela Universidade Harvard e já trabalhou no maior laboratório de física de partículas do mundo, a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern, na sigla em francês).
Waskett, um dos integrantes de sua equipe, é astrofísico. Graham, diretor da divisão de pesquisas do grupo Fenway Sports, dono do Liverpool, tem doutorado em física teórica. E Edwards, o diretor esportivo do clube, já trabalhou como analista de dados em outros clubes.
Distribuídos em diferentes postos da hierarquia do Liverpool, todos eles trabalham para obter uma série de dados relevantes, que incluem a probabilidade de um jogador se contundir, as jogadas específicas que funcionam melhor contra determinado grupo de zagueiros, os setores do campo mais ocupados pelos adversários. E até mesmo as melhores estratégias para fortalecer a relação com os torcedores — desde análises das camisas mais vendidas até o perfil dos sócios e os setores do estádio em que os ingressos costumam acabar mais rápido.
Além disso, nenhuma contratação de jogador é feita sem aprovação do time de análise de dados. Até mesmo a dispensa, ou autorização para vender um atleta, precisa ser validada pela área, que desde 2018 mantém um sistema de leitura da movimentação em campo de cada um dos integrantes do elenco, o que permite avaliar não só a qualidade dos fundamentos, como passes e chutes, mas também os setores específicos do campo em que eles recebem a bola, quanto erram e como lidam com a pressão do adversário. O uso de dados aparece, portanto, como um elemento de agregação de valor aos times.
O alemão Jürgen Klopp, técnico do Liverpool, pode utilizar essas informações para orientar um jogador que sempre chuta a gol de determinado local, mas raramente tem sucesso. O próprio Klopp é entusiasta do uso de análise para que os atletas tomem as melhores decisões em campo, com base em dados, não só no ataque como também na defesa — e tudo isso em tempo real, com a equipe técnica contribuindo para ajustes no posicionamento do time durante as partidas.
Este é um mercado em franca ascensão. Existem empresas globais especializadas em fornecer Big Data e analytics para clubes e seleções, com centenas de clientes — incluindo a seleção brasileira que vai disputar a Copa do Mundo em novembro, no Catar. O clube inglês Manchester City, por exemplo, se apoiou em uma análise de dados para renovar o contrato de uma de suas principais estrelas, o jogador belga Kevin De Bruyne.
De todas as dezenas de áreas em que os cientistas de dados têm sido solicitados, o esporte é uma das mais promissoras. A análise de desempenho, cada vez mais precisa em função do avanço tecnológico, também é crucial para qualquer atleta profissional alcançar resultados melhores. Filmagens e sensores distribuídos pelo corpo de um corredor, ou de um nadador, podem indicar as melhores estratégias para ganhar milésimos de segundos preciosos. O mesmo vale para dezenas de modalidades, de arremesso de peso a tiro ou canoagem.
No caso dos esportes coletivos, o futebol, na realidade, está atrasado em relação a outras modalidades. O fato de que poucos pontos (no caso, gols) são marcados por jogo dificulta a análise e reforça a impressão de que esse é um esporte mais aberto ao improviso e a falhas e acertos individuais — no longo prazo, porém, a consistência costuma ser premiada.
Outras modalidades esportivas descobriram a análise de dados décadas atrás e seguem acompanhando a evolução da tecnologia disponível. É o caso do beisebol, do futebol americano e dos times da NBA — a ascensão meteórica do time de basquete do Golden State Warriors se apoia, em boa parte, no investimento intensivo na análise de dados. A decisão do clube de apostar em bolas de 3 pontos, arremessadas de fora da linha específica demarcada na quadra, foi baseada em ciência e estatística e transformou o esporte.
Essas modalidades registram cases relativamente antigos. Lançado em 2011, o filme Money Ball, por exemplo, retrata um caso real, ocorrido durante a temporada de 2002, quando o gerente geral do time de beisebol Oakland Athletics (interpretado por Brad Pitt) contrata um recém-formado em economia pela Universidade de Yale (papel de Philip Seymour Hoffman). Seu trabalho é utilizar dados para orientar a contratação de atletas e o desenvolvimento de técnicas eficazes para melhorar os resultados da equipe.
Comparado com frequência ao xadrez, no sentido de que o controle mental e a movimentação de peças (ou jogadores) com diferentes funções proporciona resultados expressivos no longo prazo, o vôlei também conhece a análise de dados há tempos, inclusive no Brasil.
Já em 1996, o técnico de vôlei Bernadinho de Rezende contratou a analista de desempenho Roberta Giglio, estatística com formação em Educação Física, para auxiliar na preparação do clube Rexona. Por 21 anos, Roberta colecionou títulos ao lado da seleção masculina da categoria. Quando ela começou, ainda era preciso filmar os jogos com câmeras analógicas e analisar os lances de maneira praticamente manual, um cenário que mudou radicalmente com a possibilidade de produzir e avaliar indicadores gerados automaticamente com o uso de sensores e aparelhos de GPS.