04/05/2022
Um tanto a contragosto, o gigante do comércio eletrônico pode estar ajudando a revigorar os movimentos trabalhistas nos Estados Unidos
David Cohen
Incensada como uma gigantesca força que já promoveu rupturas e remodelações em diversos setores industriais, a Amazon pode ter agora iniciado uma nova revolução: no movimento sindical. Esta, porém, ela está promovendo a contragosto.
No mais importante centro de armazenamento, embalagem e distribuição de mercadorias para seu mercado mais estratégico, Nova York, a Amazon não conseguiu evitar o nascimento de uma pequena central sindical para representar os trabalhadores locais. Após cinco dias de votação, encerrada no dia 1º de abril, foi divulgado um resultado que parecia mentira, de tão inesperado, mas possivelmente indica o nascimento de uma nova realidade para o movimento trabalhista americano – porque a vitória dos funcionários ocorreu à margem das grandes centrais sindicais. Este movimento independente, local, organizado de forma desordenada e com pouquíssimos recursos é a grande novidade.
O Amazon Labor Union (ALU, sindicato de trabalhadores da Amazon), inexistente há um ano e meio, ganhou o direito de negociar com a empresa um contrato coletivo para reger as normas de trabalho e remuneração dos cerca de 8.300 funcionários do armazém JFK8, de Staten Island, o maior da Amazon no estado de Nova York. Trata-se de apenas cerca de 0,5% dos 1,6 milhão de empregados da companhia (sendo 1,1 milhão nos Estados Unidos), e um de um milhar de estabelecimentos da Amazon pelo país. Mas é um exemplo poderoso.
Depois da vitória, o líder da mobilização, o ex-funcionário Christian Smalls, afirmou ter sido contatado por trabalhadores de mais de 100 sedes da Amazon nos Estados Unidos, pedindo informações sobre como organizar o sindicato nesses lugares. Um armazém vizinho, menor, chamado de LDJ5, iniciou uma votação para também autorizar o sindicato a negociar um acordo coletivo. Desta vez, porém, o resultado, divulgado no início de maio, foi pró-Amazon.
As mobilizações de trabalhadores no LDJ5 contaram inclusive com a presença do senador Bernie Sanders e da deputada Alexandria Ocasio-Cortez, ambos da ala mais à esquerda do Partido Democrata. Até o presidente Joe Biden, no início de abril, saudou a vitória do Amazon Labor Union, afirmando em uma conferência de sindicatos de trabalhadores: “A escolha de se unir a um sindicato pertence aos trabalhadores apenas… Aliás, Amazon, lá vamos nós. Prestem atenção.”
O resultado lá é um sinal de que, se o movimento pró-sindicato está encontrando novos caminhos, a Amazon está longe de enxergar esse avanço passivamente. E não é só com propaganda ou ameaças. Uma das funcionárias da LDJ5, Esther Jackson, de 50 anos, disse ao diário The Wall Street Journal que jamais teve planos de aposentadoria e de saúde como os que a Amazon lhe dá; e é grata por ter sido contratada a despeito de ter uma ficha criminal.
O movimento na Amazon não é o primeiro do tipo nos Estados Unidos. Mobilizações de trabalhadores locais, sem o auxílio das grandes centrais sindicais, vêm ocorrendo aqui e ali de uns poucos anos para cá. Em 2018, professores de escola no Arizona e na Virgínia Ocidental usaram as redes sociais para organizar protestos e paralisações, e acabaram sendo apoiados pelo sindicato. Em empresas com trabalhadores de maior nível educacional (e salarial), como Google e Netflix, têm sido razoavelmente frequentes as mobilizações contra assédio sexual ou moral e preconceitos contra as pessoas transgênero, por exemplo.
O caso mais parecido com o da Amazon é o da Starbucks. Nos últimos seis meses, os funcionários de dez lojas votaram por se sindicalizar e em outras 150 houve pedidos protocolares de eleições para decidir sobre o tema (ainda pouco, em relação às cerca de 9.000 cafeterias da empresa no país). Neste caso, os líderes tiveram apoio do Sindicato Internacional de Empregados dos Serviços, mas a campanha foi amplamente feita com base em interações de trabalhadores locais, por email, mensagens de celular e reuniões via Zoom.
De certa forma, o que se está descobrindo é a força de um movimento sindical menos organizado, menos estruturado, menos capitalizado, menos técnico e menos ideológico. Menos tem sido mais.
Não chega a ser uma surpresa. O movimento sindical tradicional está em declínio acelerado. Em 2021, o número de sindicalizados nos Estados Unidos caiu para 15,8 milhões, quase 600 mil a menos que dois antes. Só 11,6% dos trabalhadores do país são filiados, menos que a metade da taxa de 40 anos atrás. Em 2020, o porcentual de filiados havia subido, mas era um crescimento ilusório: aconteceu apenas porque a grande onda de demissões devida à pandemia da covid-19 se concentrou em setores pouco sindicalizados, alterando a proporção nacional. Com a recuperação dos empregos, o aumento foi revertido.
Há uma série de explicações para a perda de apelo das grandes centrais sindicais. Uma delas é que sua representatividade não é tão convincente. Por dois motivos, conforme a acadêmica Jane McAlevey, autora do livro No Shortcuts: Organizing for Power in the New Gilded Age (Sem atalhos: organizando pelo poder na nova era dourada), sobre o sindicalismo.
O primeiro é que o sindicalistas buscam acordos com os executivos da empresa ou autoridades em nome dos trabalhadores, mas com pouca participação destes. O segundo é que as mobilizações são levadas a cabo por profissionais do sindicato, consultores e ativistas – em geral alienando os trabalhadores.
Combinados, esses dois motivos levam a um dos argumentos mais constantes dos representantes das empresas para menosprezar as centrais sindicais: dizem que elas são organizações desvinculadas dos funcionários, políticas, que vivem à custa do trabalho deles.
Este ponto infelizmente encontra eco em diversos casos reais. Exemplos como o de Gary Jones e outros líderes do sindicato de trabalhadores automotivos dos Estados Unidos, que desviaram cerca de US$ 1 milhão para gastos pessoais como jantares e diárias de hotéis luxuosos (além de mais de US$ 60.000 gastos com charutos), não ajudam muito a construir uma imagem de representantes engajados e ciosos dos interesses dos trabalhadores. E o problema é que não são raros. O antecessor de Jones na presidência do mesmo sindicato, Dennis Williams, também foi acusado de desvios de dinheiro para pagar uma vida de luxo.
A fama dos líderes sindicais já foi pior, graças a figuras como Jimmy Hoffa, presidente do sindicato de caminhoneiros, o maior dos Estados Unidos nos anos 1960. Envolvido em fraudes, métodos violentos e uma longa associação com mafiosos, Hoffa acabou sendo condenado à prisão em 1967 (de onde continuou a liderar o sindicato). Solto em 1971, ele desapareceu em circunstâncias misteriosas quatro anos depois e foi declarado “presumivelmente morto” em 1982.
Focar em figuras assim, no entanto, é deliberadamente ignorar que os sindicatos só surgem porque os trabalhadores têm reivindicações legítimas – principalmente as queixas salariais e de condições de segurança, mas não só elas: os sindicatos americanos foram bastante atuantes, por exemplo, na luta pelos direitos civis que acabou com a discriminação legal contra negros no país.
A vitória dos organizadores de um sindicato no armazém JFK8 foi ainda mais significativa porque a Amazon se empenhou fortemente para tentar evitá-la.
O caso começou em março de 2020, no início da pandemia da covid-19. Quando o comércio parou, as indústrias sofreram paralisações e as pessoas ficaram com medo de ir às compras, a Amazon absorveu boa parte das pessoas desempregadas – serventes, atores, recepcionistas de hotel, vendedores –, pagando-lhes US$ 18 a hora, US$ 3 acima do mínimo de US$ 15 reivindicado por ativistas. Esse reforço de mão de obra ajudou a empresa a atender a demanda dos consumidores, substituindo suas visitas a lojas físicas por compras via computador ou celular e entregas em casa. Nesse processo, a Amazon lucraria, naquele ano de pandemia, o equivalente ao lucro dos três anos anteriores.
Quase todas as compras de Nova York, o maior e mais rico mercado do país, passavam pelo centro de distribuição JFK8. Não importa o quão mecanizados tenham se tornado os processos da Amazon, isso significou uma considerável elevação de estresse para os empregados – eles próprios meio que robotizados por um sistema de controle que daria inveja ao pioneiro da linha de montagem Henry Ford.
Como já havia escrito o repórter Will Evans na revista The Atlantic um ano antes, as condições de trabalho para os funcionários nos armazéns da Amazon eram consideravelmente difíceis: turnos extensos, alta taxa de lesões, pouquíssimas folgas; até as idas ao banheiro eram rigidamente controladas, a ponto de alguns funcionários urinarem em garrafas.
Com a pandemia, a situação se agravou. Não foi só o aumento do fluxo de mercadorias. Para que os clientes pudessem se proteger do vírus com isolamento social, os funcionários do armazém tinham que trabalhar, e trabalhar mais.
Quando começaram a surgir casos de covid no armazém, Christian Smalls e seu melhor amigo no trabalho, Derrick Palmer, reclamaram com os gerentes do que consideravam condições de segurança insuficientes. A empresa respondeu que estava tomando “medidas extremas” para evitar contaminações, como limpeza profunda do ambiente e distanciamento social.
Smalls não aceitou a resposta e começou a mobilizar colegas. Naquele mesmo mês de março, foi demitido – segundo a Amazon, porque em suas rodas de conversa desrespeitou regras de distanciamento social. A partir de então, Smalls e Palmer iniciaram seus esforços de sindicalização do armazém.
Em toda a campanha, gastaram cerca de US$ 120.000, arrecadados principalmente com doações através de um site de financiamento coletivo, o GoFundMe.
A Amazon, em contrapartida, gastou cerca de US$ 4,3 milhões só com consultores especializados em combater movimentos de sindicalização. Logo de cara, a companhia formou uma equipe que envolvia dez departamentos, de acordo com documentos divulgados à Justiça. Um sinal de que a reação foi exagerada: nos primeiros dias, houve numa reunião mais executivos discutindo a ameaça da sindicalização (incluindo 11 vice-presidentes) do que trabalhadores que participaram dos protestos por mais segurança.
Uma das ações recomendadas pelos especialistas, de acordo com um email obtido pelo site de notícias Vice, era tornar Smalls a cara do movimento, porque ele não era “nem inteligente nem articulado” – de onde se intui que a Amazon poderia ter gastado melhor os milhões que reservou para a batalha.
Os recursos de Smalls, Palmer e os colegas que aderiram, embora muito menores que os da empresa, foram usados com criatividade: eles acendiam fogueiras para aquecer colegas que esperavam o ônibus de madrugada para ir para casa; produziram vídeos na plataforma TikTok, distribuíam bolinhos, empanadas e pratos de arroz tipicamente africanos em pequenos comícios, para atrair o grande número de imigrantes que trabalham no armazém. A certa altura, mostraram cartazes em que anunciavam “comida e maconha de graça” nas reuniões.
Com o tempo, arregimentaram outros organizadores da campanha, com vantagens significativas em relação a qualquer ativista de uma central sindical. “Eu falo francês, árabe, inglês e três línguas africanas”, disse uma das organizadoras, Brima Sylla, à revista Jacobin, uma publicação da esquerda americana com sede em Nova York. “Isso tornava muito mais fácil para me comunicar com os trabalhadores imigrantes dentro do armazém.”
Durante o processo, Smalls e Palmer chegaram a visitar um armazém da Amazon no Alabama, onde uma central sindical tentava organizar os trabalhadores. Não se consideraram bem recebidos pelos sindicalistas, que lhes pareceram estranhos à comunidade que tentavam influenciar.
Smalls e Palmer, ao contrário, conheciam bem a experiência de trabalho. Ambos tinham, então, 31 anos, haviam largado uma faculdade comunitária e se orgulhavam de ostentar notas altas no sistema de avaliação de desempenho da Amazon. Queriam subir na companhia. Entendiam as agruras do trabalho.
As condições da economia ajudaram sua briga. Em 2021, os empregos haviam voltado em grande número e estabeleceu-se no país uma situação favorável aos trabalhadores: mais demanda do que oferta, especialmente para cargos da base da pirâmide salarial. Mesmo assim, ouviram muitos nãos: de gente que desconfiava de sindicatos e suas taxas, de pessoas satisfeitas com o salário de US$ 18 por hora e especialmente do plano de saúde que a empresa oferece, ou de funcionários tão cansados que não tinham energia sequer para se engajar.
No final de janeiro de 2022, porém, eles finalmente conseguiram o número de assinaturas necessário para abrir uma votação sobre sindicalização. E, no início de abril, venceram.
Venceram, em termos. Ainda há um longo caminho para que o sindicato realmente possa comemorar. Como costumam dizer especialistas em conflitos entre patrões e empregados, o sindicato só ganha quando consegue a assinatura de um acordo. E isso pode levar meses, até anos.
De acordo com estudos de 2009 de Kate Bronfenbrenner, uma especialista em relações trabalhistas da Universidade Cornell citada pela rede de notícias NBC, menos da metade dos sindicatos consegue um primeiro contrato menos de um ano depois de vencer as eleições, e 30% não conseguem celebrar um acordo nem em três anos.
A Amazon, conhecida por sua postura agressiva nos negócios, já avisou que vai contestar a vitória do ALU. Para começar, opôs 25 objeções ao resultado da votação de Staten Island, em petição ao Conselho Nacional de Relações Trabalhistas.
Uma das objeções foi que oferecer maconha aos funcionários era uma forma de buscar apoio inadmissível. Outra diz que os organizadores do sindicato interromperam reuniões antissindicato (uma das medidas tomadas pela empresa foi obrigar seus funcionários a participar de reuniões nas quais seus representantes afirmavam que eles estariam mais bem servidos sem um sindicato).
A empresa protestou inclusive contra o Conselho, dizendo que o baixo número de fiscais designado para a votação criou filas longas demais e fez muita gente ir embora sem votar. A chance de reverter a votação é muito baixa, mas a empresa está demonstrando disposição para o combate. Ao mesmo tempo que combate o sindicato, acrescentou a seus famosos princípios a meta de ser “o melhor empregador do mundo”.
Por seu lado, o ALU também não está sendo tímido em sua reivindicações. As principais são pausas mais longas durante a jornada no armazém, mais folgas e um aumento substancial de salário, dos atuais US$ 18 para US$ 30 por hora.
Dada essa distância entre as partes, uma previsível demora em chegar a um acordo é, como dizem os especialistas, pior para o sindicato – e para os trabalhadores. Especialmente na Amazon, e mais ainda no armazém JFK8, onde a rotatividade nos últimos dois anos foi de 73%, de acordo com documentos da empresa.
Para resistir às possivelmente longas batalhas que virão, o novo sindicato precisará de recursos e experiência em negociação. Talvez seja necessário contar com o apoio de uma grande central sindical.
Do outro lado, está se tornando claro que as centrais também precisam de movimentos locais para se revitalizar. “O caso de Staten Island é um alerta para o restante do movimento trabalhista”, disse Mark Dimondstein, presidente do Sindicato de Trabalhadores dos Correios dos Estados Unidos, ao jornal The New York Times. “Nós temos que ser ‘de casa’, temos que ser levados pelos funcionários.”
Talvez não seja, no final das contas, uma reviravolta completa, e sim o estabelecimento de um modelo híbrido. Uma espécie de volta às origens do movimento sindical.
A necessidade de revitalização do sindicalismo não é um fenômeno apenas americano. No Brasil, os sindicatos tinham uma fonte de recursos estável, dada a legislação que impunha aos trabalhadores uma contribuição sindical obrigatória de um dia de trabalho por ano. Em 2018, o primeiro ano cheio após o fim dessa obrigação, a arrecadação caiu quase 90% – de R$ 3,64 bilhões para R$ 500 milhões.
A perda de arrecadação obriga a repensar os modelos de funcionamento. É preciso encontrar formas de atrair os funcionários, e isso provavelmente significa ter o pé na situação local de cada empresa.
Trata-se, talvez, de um ciclo natural. As batalhas locais levam a uma primeira organização, mas ela só se torna forte quando abrange temais mais gerais. A partir daí, a organização cresce, inevitavelmente se profissionaliza, se capitaliza… e acaba se afastando do dia a dia dos seus representados.
No Brasil, esse processo ajudou a pavimentar a redemocratização do país, que então vivia sob um regime militar, e deu origem ao Partido dos Trabalhadores. Na Polônia, o Sindicato Solidariedade, formado em 1980, foi ativo na transição do autoritarismo comunista para um regime democrático.
Quando cresce dessa maneira, no entanto, o movimento sindical torna-se outra coisa. Um movimento de trabalhadores certamente precisa da musculatura de organizações mais abrangentes – mas também da vitalidade, do contato direto com os empregados. Conseguir as duas coisas ao mesmo tempo não é nada fácil.