O Brasil precisa corrigir o excesso de intervenção do governo no mercado. Menos diretivo e mais catalisador, o Estado deve restabelecer as bases regulatórias para recuperar a confiança dos investidores.
Na acirrada disputa presidencial deste ano, o papel do Estado na economia foi um elemento central do debate. Colocando a culpa no cenário externo, o governo insistiu que o país estaria muito pior sem a volumosa expansão de subsídios, isenções tributárias e diversas outras intervenções engendradas pelo aparelho estatal.
É mais do que hora, portanto, de discutir o tipo de Estado de que o Brasil precisa – não somente em tamanho mas também na forma como interage com o setor privada O que nossa própria história e a experiência de outros países nos ensinam a esse respeito?
No começo da década de 90, com uma estrutura estatal inchada e endividada, pouco restou ao governo senão iniciar um amplo programa de privatizações. Contudo, diferentemente do senso comum, as privatizações antes e durante o governo de Fernando Henrique Cardoso não removeram a centralidade do Estado na economia. É só lembrar que o próprio BNDES foi o agente operacional do processo, participando ativamente de inúmeros consórcios privados como acionista ou emprestador, ao lado de outros atores estatais, como os fundas de pensão de empresas controladas pelo governo.
Com esse movimento, o Estado passou de controlador majoritário de poucas empresas a investidor minoritário em um grande número de companhias. Aldo Musacchio e eu (coautores do livro Reinventing State Capitalism, ainda inédito no Brasil) denominamos esse novo modelo de “leviatã minoritário”: o Estado privatiza, mas se mantém amplamente enraizado na economia via participações acionárias e empréstimos.
Passado o ciclo de privatizações, o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva adotou uma postura relativamente ortodoxa para garantir sua credibilidade no mercado. Mas as raízes do leviatã minoritário já estavam plantadas. Faltava apenas um impulso para que os laços estatais já presentes na economia tomassem uma feição mais ativa. E esse impulso, também ao contrário do senso comum, não foi dado pela crise financeira de 2008. Sob o governo Lula, as agências reguladoras, tidas como resquício das privatizações, foram enfraquecidas. Em várias alas do governo havia o desejo de expandir o papel do BNDES e formar grandes “campeões nacionais”. Basta notar que as conversações para a fusão de grandes grupos – Oi-Telemar, no setor de telecomunicações, e VCP-Aracruz, em papel e celulose, todos eles com participações minoritárias do BNDES ou dos fundos de pensão -já estavam em curso antes da crise.
A proteção indústria local e o renascimento de programas para setores específicos (como a indústria naval) também já estavam na agenda. Dessa forma, se as bases do leviatã minoritário já estavam plantadas, é especialmente no segundo mandato de Lula que o modelo se reforçou. A crise financeira de 2008 nada mais fez do que dar ao governo uma justificativa concreta para a onipresença do Estado. Por exemplo, o governo, com a crise, aprendeu a fazer transferências diretas do Tesouro aos bancos públicos para expandir o crédito. Embora a rápida recuperação do Brasil pós-crise tenha ocorrido em grande parte em razão do próprio dinamismo dos países emergentes – notadamente, o incessante apetite chinês por nossas commodities -, a leitura do governo era que tudo ocorrera graças ao pulso firme estatal.
Dilma em ação Assim, já era esperado que a continuidade do governo, sob Dilma Rousseff, seguiria passos similares. Mas com uma importante diferença: Dilma acreditava não apenas na intervenção estatal via BNDES e políticas industriais diversas mas também na ação direta e deliberada das grandes estatais. Esse modelo já estava presente, claro e cristalino, no discurso de Dilma durante o anúncio oficial de sua candidatura, em fevereiro de 2010. Disse Dilma: “Alguns ideólogos chegaram a dizer que quase tudo seria resolvido pelo mercado. O resultado foi desastroso. Aqui, o desastre só não foi maior – como em outros países – porque os brasileiros resistiram a esse desmonte e conseguiram impedir a privatização da Petrobras, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica ou de Furnas”.
É impressionante que todas essas grandes estatais foram usadas no governo Dilma para intervir diretamente nos mercados. O primeiro grande sinal foi o uso da Petrobras para controlar o preço da gasolina. Depois veio a intervenção nos bancos públicos – um evento que também ajudou a sedimentar a visão de que “intervenção funciona”, uma vez que a participação de mercado desses bancos cresceu substancialmente.
Em seguida, Dilma forçou uma redução no preço da energia elétrica, cuja conta teve de ser paga, em grande parte, pelas grandes estatais. O BNDES continuou sua expansão desenfreada e passou a ser um agente de transformação de divida em superávit primário: o Estado se endivida, repassa com juros subsidiados ao BNDES, que então aplica seus ativos a taxas de mercado e devolve o resultado, em dividendos, para o próprio governo.
É a chamada “contabilidade criativa”. O pêndulo retornou, novamente, em direção ao modelo do leviatã majoritário: o uso de grandes estatais controladas pelo Estado para influenciar diretamente a economia. Mas o leviatã minoritário não saiu de cena. Apesar de Dilma retomar o programa de concessões privadas, o capital estatal via BNDES, fundos de pensão e, mais recentemente, o próprio FGTS continuou irrigando diversos consórcios e grupos. No afã de reduzir tarifas à força, o governo passou a querer tabelar a rentabilidade dos investidores privados, ao mesmo tempo os afagando pela porta dos fundos com capital público e empréstimos subsidiados.
Do que resultou todo esse ativismo? As intervenções nas grandes estatais drenaram seu caixa e surtiram pouco efeito prático, uma vez que juros e preços voltaram a subir e a mão forte do governo gerou um profundo sentimento de incerteza regulatória.
Mesmo com o gigantismo do BNDES e dos vários fundos estatais, os investimentos caíram. O uso da máquina pública para inflar o superávit do governo só fez minar a credibilidade da política fiscal. O leviatã perdeu sua eficácia. O que fazer? No âmbito do leviatã majoritário, é preciso caminhar para um maior isolamento político das grandes estatais, livrando-as da discricionariedade do governo em exercício. As estatais devem voltar a ser instrumentos de Estado, e não de governo. A confusão entre Estado e governo aparece claramente nas declarações de José Sergio Gabrielli, ex-presidente da Petrobras, no programa Roda Viva gravado no inicio de 2012 (conforme lembrado em um artigo recente do jornalista Josias de Souza).
Ao ser indagado sobre o aparelhamento da Petrobras com políticos, Gabrielli prontamente respondeu: “Os partidos participam da gestão do Estado. Isso é parte da prática democrática. Isso é parte da democracia. Os partidos são legítimos”. Em uma linha diametralmente oposta, as melhores práticas para gestão de estatais são conhecidas: gestão profissional, resistência ao aparelhamento, autonomia financeira para planejar o caixa e os investimentos.
No caso particular de estatais listadas em bolsa, é importante também atentar para a proteção aos acionistas minoritários. Controlar o preço da gasolina, por exemplo, impõe perdas para quem acreditou e investiu na Petrobras – inclusive, nesse caso, trabalhadores que decidiram alocar parte de seu FGTS em ações da empresa.
Freios e contrapesos Ao mesmo tempo, para criar freios e contrapesos à ânsia do governo em intervir para fins políticos, é preciso reconstruir as agências reguladoras e delegar sua gestão a técnicos de renome e com independência para submeter as empresas privadas e estatais aos mesmos parâmetros de competição.
Um exemplo: a Statoil, petrolífera controlada pelo governo norueguês, não apenas tem sua gestão dissociada do ciclo político como também se submete a uma agência reguladora, a Norwegian Petroleum Directorate, constituída por técnicos de notório conhecimento e reputação.
E no caso do leviatã minoritário? Com mais de 400 bilhões de reais transferidos do Tesouro, o BNDES se avolumou além do que seria prudente, dado o aumento da dívida pública e o custo dos subsídios. Como cerca de 60% dos empréstimos do banco ainda vão para grandes empresas, que podem se capitalizar por meio de outros mecanismos de mercado, há espaço não apenas para redução dos subsidios como também dos desembolsos.
Empresas grandes só devem receber crédito estatal se seus projetos gerarem reais benefícios socioambientais ou avanços tecnológicos esperados. Até mesmo o mais recente foco em infraestrutura merece qualificação. Por exemplo, a concessão de um aeroporto em uma grande cidade, que é um monopólio local com ampla capacidade de geração de caixa, decididamente não precisa de subsídios. Além disso, não faz sentido o BNDESPar, braço de investimentos do BNDES, permanecer com um número elevado de empresas já estabelecidas em sua carteira, incluindo grandes empresas estatais. A carteira deveria ser reciclada para financiar novos empreendedores, com bons projetos e reais restrições de capital. E, acima de tudo, o BNDES deveria criar mecanismos transparentes e rigorosos de avaliação do impacto dos investimentos e empréstimos, ao mesmo tempo acabando com toda e qualquer forma de contabilidade criativa em suas transações com o Tesouro.
Exemplo chileno Um ótimo caso a ser estudado é o Corfo, instituição de desenvolvimento do Chile. Apesar de muito menor do que o BNDES, o Corfo desempenhou um papel estratégico na constituição de importantes indústrias, como a de salmão, e atualmente trabalha mais na linha de financiar empreendedorismo e inovação tecnológica.
O capital não é repassado a grandes grupos, nem se pretende criar campeões nacionais. O Corfo nem sequer empresta dinheiro. Atua de forma distinta, em parceria com bancos privados, ajudando a garantir os empréstimos que esses bancos repassam a empreendedores com escassez de capital. No Brasil, em contraste, os bancos públicos frequentemente competem com os bancos privados. Sempre que se fala na possibilidade de buscar fontes alternativas de financiamento para determinados projetos, é comum ouvir dos empresários: “Para que, se o BNDES tem linhas tão baratas? ” É claro que não precisamos nem devemos extinguir linhas subsidiadas. Há grande espaço para os bancos públicos ajudarem a impulsionar o investimento e a inovação no país, em parceria com o setor privado.
Porém, uma atuação mais seletiva e criteriosa seria fundamental para garantir que os subsídios cheguem a quem efetivamente necessita deles. Em resumo, o Brasil precisa de um Estado que busque corrigir os excessos da última década, tanto em termos do tamanho de sua participação na economia quanto na forma de interação com o mercado. Uma interação menos diretiva e mais catalisadora, evitando microgerenciamentos e restabelecendo as bases regulatórias para reduzir as incertezas aos novas investimentos. Um novo modelo que coloque as ideologias de lado em prol de uma combinação mais sinérgica entre indução pública e empreendedorismo privado.
Publicado em EXAME CEO – Novembro de 2014