O processo de produção de energia limpa com baixo risco e quase nenhum lixo atômico está finalmente avançando rumo a aplicações comerciais. É uma ótima notícia… para daqui a algumas décadas
David A. Cohen
Quatro banhos quentes. Cinco, se você não demorar muito embaixo do chuveiro. É isso o que dá para fazer com a quantidade de energia produzida no último experimento do Joint European Thorus (JET), o reator de fusão nuclear do programa de pesquisas atômicas europeu Euratom. Não é lá muita coisa; e ao mesmo tempo é um passo extraordinário na busca da energia mais eficiente e mais limpa que a humanidade pode almejar.
A fusão nuclear é um tanto diferente da fissão nuclear, o processo que ocorre nos 437 reatores em funcionamento hoje pelo mundo. Trata-se do mesmo fenômeno que ocorre no Sol e demais estrelas: uma constante transformação de átomos de hidrogênio em hélio, produzindo luz e energia. Ou seja, um processo que não precisa de urânio nem plutônio enriquecidos… e, portanto, não deixa como subproduto o material radioativo que tem de ser armazenado por milhares de anos.
Melhor ainda: produz muito mais energia do que a fissão. Os 69 megajoules obtidos pelo JET em dezembro e anunciados no início de fevereiro, após revisão dos resultados, foram coletados em apenas 5 segundos de reação, usando míseros 0,2 miligramas de combustível.
E esse combustível é uma mistura de deutério e trítio, dois isótopos do hidrogênio. O primeiro é abundante na água do mar (aproximadamente um de cada 6.700 átomos de hidrogênio é um deutério, ou seja, em vez de ter apenas um próton em seu núcleo tem um próton e um nêutron). O segundo isótopo, o trítio, que tem um próton e dois nêutrons em seu núcleo, não é uma forma estável na natureza, mas pode ser produzido a partir do lítio, fartamente encontrado em todo o planeta.
“O trítio é radioativo”, explica Paulo Bufacchi, professor dos cursos de Engenharia Mecânica e Mecatrônica do Insper. “Mas sua meia-vida é de apenas 12 anos, bastante baixa.” Meia-vida é o tempo que um elemento leva para perder metade de sua radioatividade. Só para comparar: a meia-vida do Urânio-235 é de 713 milhões de anos; a do Urânio-238, de 4,5 bilhões de anos.
Resumindo: energia limpa, sem emissão de poluentes, com rejeitos cuja radioatividade é irrisória em comparação com a fissão nuclear e produzida com combustível barato e extremamente eficiente — com o deutério extraído de 50 copos de água do mar, misturado a um pouco de trítio, pode-se produzir o mesmo tanto de energia que a queima de duas toneladas de carvão.
Além disso, a fusão é muito mais segura do que a fissão. Na fissão, é necessário um mecanismo de resfriamento para estancar a reação em cadeia (e, caso ele falhe, ocorre uma explosão). Na fusão, não. Ela depende de condições muito difíceis de manter; portanto, se a energia auxiliar falhar a reação estanca. “Os testes com o JET provaram que você consegue confinar o plasma dentro do reator e, caso aconteça vazamento, a reação simplesmente para”, diz Bufacchi.
Parece a forma de energia perfeita. “Não é à toa que até países que usam muito a fissão, como a França, os Estados Unidos, o Japão e a Rússia, estão trabalhando bastante para desenvolver a fusão”, aponta.
O grande problema da fusão nuclear é que… ela não está disponível. Tudo o que temos, por enquanto, são resultados experimentais. E olha que a busca não é nova.
Desde a década de 1930, quando se demonstrou o processo de fusão nuclear, cientistas tentam entender como usá-la para produzir energia. “O primeiro reator para fazer esses experimentos foi o Tokamak, desenvolvido na Rússia na década de 1950”, conta Bufacchi. “Logo em seguida foi feito outro, o Stellarator. Os dois ainda são usados.”
No final dos anos 1970, houve promessas de que essa tecnologia iria decolar. Foi então que surgiu o JET, patrocinado predominantemente pelo programa nuclear europeu Euratom e construído em Culham, perto de Oxford, na Inglaterra. O plano original era que funcionasse por dez anos, mas os avanços estenderam o prazo para quatro décadas, durante as quais o projeto reuniu colaborações de centenas de cientistas de vários países.
A confiança era enorme. Naqueles anos 1970, a secretaria de pesquisa e desenvolvimento de energia do governo dos Estados Unidos previu que poderia haver projetos comerciais de fusão nuclear dali a 20 anos, caso fossem investidos 9 bilhões de dólares por ano na tecnologia. Um investimento de 1 bilhão de dólares ou menos, porém, significaria que a fusão não seria alcançada jamais. “E foi mais ou menos isso o que foi investido”, afirmou Steven Cowley, um físico britânico, à revista The New Yorkerno início desta década. “Bem perto do máximo que se poderia gastar para nunca chegar lá.”
Agora, contudo, a situação é diferente. As mudanças climáticas conferiram um teor de urgência a qualquer projeto de energia alternativa. E essa, apesar das dificuldades técnicas, desponta como a melhor delas — de longe. Em relação à energia solar ou eólica, ela tem não só a vantagem de ser potencialmente muito mais eficiente como também de não precisar de vastas áreas ou de só estar disponível ante determinadas condições climáticas.
Bem de acordo com a nova fase dos projetos de fusão, o JET encerrou suas operações no final do ano passado — com o citado resultado de produção de energia além do esperado. “O último experimento do JET foi um canto de cisne adequado para todo o trabalho revolucionário feito ali desde 1983”, afirmou Andrew Bowie, ministro britânico de Energia Nuclear e Renováveis.
Em seu lugar deverá vir o ITER, um megaprojeto internacional com pretensões de demonstrar a viabilidade comercial da fusão nuclear. Os investimentos não serão pequenos. “Quando o projeto começou, a ideia que ele custasse 5 bilhões de euros”, lembra Bufacchi. “Dois anos depois, passou para 19 bilhões, depois foi para 22 bilhões. Ninguém sabe onde isso vai parar.”
A ideia era que o ITER fosse inaugurado em 2016, mas o projeto foi ganhando mais ambições. O início das operações está agora previsto para o ano que vem; mas experimentos completos só são esperados para depois de 2035.
Antes mesmo de a máquina ITER começar a funcionar, os responsáveis já estão trabalhando na concepção do projeto que o sucederá, o DEMO, cujo objetivo é servir de ponte para a disseminação de usinas de fusão nuclear. Um sinal do quanto essa tecnologia está em seus primórdios é que o DEMO não é um único projeto, mas um feixe de ideias e propostas consideradas pelos países membros do ITER. Um segundo sinal de que a tecnologia não está madura é a própria formação do ITER, com a colaboração de União Europeia, China, Índia, Japão, Coreia do Sul, Rússia e, de forma mais tímida, Estados Unidos. Ou seja, os países estão ainda na fase de colaboração científica.
Com a saída do Reino Unido da União Europeia, não está certo de que o país vá participar do ITER. Mas os britânicos não vão abandonar o barco: o governo anunciou no início deste ano que vai investir 650 milhões de libras num programa de pesquisas nacional. O plano é inaugurar na década de 2040 a primeira usina de fusão nuclear comercial do mundo na região de Nottinghamshire, no miolo oriental da Inglaterra.
Isso se os Estados Unidos não chegarem primeiro. O governo Joe Biden declarou que pretende tornar a fusão nuclear uma realidade comercial já a partir de 2032 — a tempo de ajudar o país a se livrar dos combustíveis fósseis e alcançar a meta de zero emissão de poluentes em 2050.
No final de 2022 o Congresso americano aumentou os investimentos destinados para pesquisa e construção de reatores de fusão nuclear para quase 780 milhões de dólares. E investidores privados como Bill Gates, Jeff Bezos e Peter Thiel já colocaram cerca de 5 bilhões de dólares em dezenas de projetos de startups dedicadas à fusão nuclear.
O caminho dos americanos é um pouco diferente. Eles apostam em reatores que utilizam raios laser, em vez dos reatores de campo magnético, como os Tokamak.
Nos dois casos, trata-se de chegar às condições em que a reação semelhante à do Sol acontece. “No Sol, os núcleos de hidrogênio se fundem para formar o hélio, em alta pressão e alta temperatura”, explica Paulo. “A pressão vem do campo gravitacional e a temperatura, no núcleo do Sol, gira em torno dos 15 milhões de graus Celsius.”
Uma pressão como a do Sol é inatingível. O que o Tokamak faz, então, é criar um campo magnético dentro de uma estrutura em forma de uma rosca. A temperaturas cerca de dez vezes maiores que a do Sol — chegando a 150 milhões de graus Celsius —, os elétrons se desgarram do núcleo, criando o que se convencionou chamar de plasma, considerado um quarto estado da matéria. O campo magnético mantém o plasma circulando no reator, enquanto os núcleos colidem uns com os outros liberando uma tremenda energia na forma de nêutrons.
“No JET descobriram que a mistura de deutério e trítio forma plasma à temperatura de 150 milhões de graus Celsius”, diz Bufacchi. “Se for só o deutério, a temperatura precisa estar entre 400 milhões e 500 milhões de graus Celsius.”
No processo a laser, trata-se de aumentar a pressão de forma a que a temperatura não precise ser tão alta. No Laboratório Nacional de Livermore, na Califórnia, os cientistas encapsularam o hidrogênio em um cilindro de diamante do tamanho de uma borracha da ponta de um lápis. Atingido por lasers, esse cilindro cria uma pressão gigantesca. Combinada à alta temperatura, ela favorece a reação e o bombardeio de nêutrons.
“O laser provoca uma contração do volume das partículas, mas logo depois chega-se ao ponto em que não se consegue mais diminuir o volume e o combustível explode”, afirma Bufacchi. “Nesse meio tempo tem que acontecer a fusão.” Logo depois é logo depois mesmo: a coisa toda dura cerca de 100 trilionésimos de segundo.
O programa americano também teve o seu momento de euforia. Ocorreu em dezembro do ano passado. Pela primeira vez, a energia liberada pela fusão nuclear foi maior do que a energia usada para provocar o processo.
Este é o grande obstáculo a ultrapassar para chegar ao uso comercial da fusão: extrair mais energia do que se coloca. O JET não conseguiu isso. Mas é o que diferencia um projeto de pesquisa de um projeto comercial. “No JET, a razão entre energia gerada e energia consumida chegou a 0,6”, diz Bufacchi. “Mas o ITER tem o objetivo de chegar a um fator de 10.”
No laboratório americano, o ganho de energia teve um fator de 1,5. No final de 2023, os experimentos chegaram perto de um fator de 2.
Ainda é muito pouco. É preciso considerar todas as ineficiências. “Embora o experimento tenha gerado cerca de 3 megajoules de energia, um ganho em relação aos 2.05 megajoules dos raios laser que atingiram o cilindro, foi preciso extrair 300 megajoules da rede elétrica para gerar aquele pulso instantâneo de laser”, afirma reportagem do jornal The New York Times da época.
Há muitas formas de melhorar isso, a começar pela qualidade dos lasers, hoje muito mais eficientes do que os utilizados no laboratório da Califórnia. Mas especialistas opinam que uma usina nuclear viável precise gerar algo entre 30 e 100 vezes mais energia do que a que consome.
É por isso que mesmo o ITER ainda não será o modelo comercial. O Demo, sim, tem previsão de chegar a um fator de eficiência de 30. Mas ele (ou eles, já que há várias propostas) é ainda um projeto conceitual.
“Uma piada comum entre cientistas é que a fusão nuclear está sempre prometida para daqui a 50 anos”, diz Bufacchi. Com os espetaculares avanços científicos recentes, esse tempo diminuiu. E pode cair ainda mais, com o uso da inteligência artificial. Uma equipe da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, anunciou no final de fevereiro ter descoberto um modo de usar a IA para prever e evitar instabilidades no plasma durante as reações de fusão.
Ainda assim… “Se tudo der certo, em 2035 vai haver um reator muito pequeno. Reatores comerciais, é para lá de 2050”, calcula o professor. “E depois ainda vão décadas de uso até que se ter certeza da segurança da fusão nuclear.”
Como afirmam muitos críticos, em especial os ambientalistas, não dá para contar com a fusão para resolver a questão energética do planeta. Não porque ela seja ruim, mas porque não temos tempo para esperá-la.
Não é por isso que se deva menosprezar os avanços. Uma tecnologia com potencial fantástico agora tem uma trilha com promessa de investimentos, cronograma planejado e diversas metas intermediárias para medir seu progresso. É coisa para o futuro — talvez daqui a 50 anos… Mas já é uma realidade.