Realizar busca
test

O x da questão: o Twitter vai virar um superapp?

Essa é a intenção de Elon Musk com a controversa mudança de nome da rede social do passarinho azul. O sucesso parece improvável — mas o bilionário já conseguiu coisas mais difíceis

Essa é a intenção de Elon Musk com a controversa mudança de nome da rede social do passarinho azul. O sucesso parece improvável — mas o bilionário já conseguiu coisas mais difíceis

 

David A. Cohen

 

Como negócio, o Twitter nunca chegou a empolgar muito. Como marca, no entanto, alcançou o restritíssimo clube dos nomes que viram verbo. “Tornar-se um verbo é o cálice sagrado”, afirmou Mike Proulx, um vice-presidente e diretor de pesquisas da consultoria Forrester, ao jornal The New York Times. “Significa que a marca virou parte da cultura popular.”

É basicamente por isso que a maioria dos observadores condenou a mudança de nome do site de microtextos, feita no final de julho pelo bilionário Elon Musk. Que o nome escolhido para a substituição tenha sido “X” seria, segundo essa visão, adicionar estupidez à imbecilidade. Tim Bajarin, colunista da revista Forbes, relata que os especialistas com quem conversou consideram o extermínio de uma marca tão bem conhecida como praticamente um suicídio empresarial.

“As críticas surgem porque ele está indo contra os preceitos tradicionais de estratégia”, diz o professor de estratégia David Kallás, coordenador executivo da pós-graduação lato sensu do Insper. Não é uma novidade. “O que o Musk faz é sempre muito estranho — mas é complicado apostar contra. Ele tem uma cota grande de bobagens e de acertos extraordinários.” Essa taxa de acertos, é bom lembrar, fez dele a pessoa mais rica do mundo.

Para nós, brasileiros, o apego à letra “x” como marca empresarial remete aos espetaculares fracassos de Eike Batista. Mas o nome tem outros problemas além dessa coincidência. Primeiro, há indícios de que a Meta, do rival e desafeto Mark Zuckerberg, detém os direitos de uso da marca X para projetos de mídia social. Fora isso, há uma já bem estabelecida conexão da letra com sites de conteúdo pornográfico (o que, para alguém que gosta de polêmicas como Musk, talvez seja considerado uma vantagem em vez de uma desvantagem).

Finalmente, há uma dúvida sobre a que remete o nome. Eike gostava de dizer que colocava “x” em suas empresas porque este era o sinal da multiplicação. Mas ele é também a letra que representa a incógnita, a dúvida. O próprio Musk parece simpatizar mais com essa segunda versão: declarou gostar de algo que “incorpore as imperfeições que nos fazem únicos”.

Não é de hoje essa sua inclinação, nem se restringe ao mundo dos negócios. Várias de suas empresas têm o X — como a SpaceX e o seu primeiro empreendimento financeiro, o banco X.com, que mais tarde se uniu ao Confinity para formar a startup PayPal. Na vida pessoal, Musk deu a um de seus filhos, com a música canadense Grimes (Claire Boucher), o nome de X AE A-12, depois trocado para X AE A-Xii porque o registro civil dos Estados Unidos não aceita nomes com algarismos. Em casa, o menino é tratado apenas por X — e sua irmã, Exa Dark Siderael, é tratada por Y.

Em artigo na revista Psychology Today, o escritor Leon F Seltzer afirmou que o “x” se tornou “a mais nihilista das letras”. Nesse caso, o logo acompanha esta sensação: “Saiu o passarinho vivaz, entrou um símbolo escuro”, afirma Kallás. Seltzer sugeriu que Musk gosta da letra por sua versatilidade: “Pode ser nascimento ou morte, cancelamento ou multiplicação, nada ou tudo.”

De fato, a julgar pelas primeiras declarações do bilionário após comprar o Twitter, a ambição é provavelmente esta mesma: matar para fazer nascer, cancelar para multiplicar, destruir uma marca de sucesso para substituí-la por… tudo.

 

As vantagens de um superapp

“Por que fazer um rebranding de uma marca tão bem-sucedida? Se for para se manter como mídia social, obviamente não valia a pena fazer a troca”, afirma Carlos Caldeira, professor de estratégia e coordenador do Centro de Estudos em Negócios (Ceneg) do Insper. “Mas se for um superapp…”

Neste caso, opina Caldeira, “também acho que não valia a pena; mas pelo menos tem alguma justificativa”.

O superapp é um antigo sonho de Musk. Dele e de boa parte da turma que lida com mídia social e aplicativos em geral. “É um desejo de todo mundo, mas até agora só funcionou na Ásia”, diz Caldeira.

Talvez o nome mais apropriado não fosse superapp, e sim multiapp. Trata-se na verdade de um app com múltiplas personalidades — uma plataforma, um “app de tudo”. É assim que funciona o mercado da China (e de alguns outros países asiáticos), com o WeChat, o Alipay, o Meituan… apps que têm funcionalidades de chat, transporte, pagamento, compras e praticamente tudo o mais que você imaginar.

“Um superapp é um único aplicativo, acessível por algum aparelho móvel ou por um navegador da internet, que oferece múltiplos serviços diversificados para a vida cotidiana pessoal e comercial, depende de uma plataforma de pagamentos comum, se beneficia de dados coletados entre os vários serviços para moldar ofertas e é amplamente adotado”, definem os professores Dan Prud’homme, da Universidade Internacional da Flórida, Guoli Chen, do Insead, e Tony W. Tong, da Universidade de Colorado, em artigo publicado em abril pela Harvard Business Review.

Não é de espantar que tornar-se um monstro desses seja o desejo de tantos produtores de apps. Em seus mais de 1 milhão de miniprogramas internos, o WeChat consegue ter mais de 1 bilhão de usuários ativos por mês. Cada uma de suas funcionalidades impulsiona as demais: se você assiste a um jogo online, o aplicativo de compras pode lhe oferecer itens que tenham a ver com o seu interesse; da mesma forma, o aplicativo de viagens pode lhe fazer ofertas para visitar algo relacionado ao livro que você acabou de ler e por aí vai. É o que se chama, no jargão do mundo digital, de “efeito de rede”: quanto mais se usa, mais fácil acrescentar um uso novo. E a rede não captura apenas os usuários; também os anunciantes passam a depender dela para alcançar seus clientes.

 

Por que é tão difícil

Se os apps com múltiplos serviços oferecem toda esta vantagem — a possibilidade de coletar muito mais dados dos usuários e canalizá-los para melhores recomendações, descontos, recompensas e, no final da linha, lucros —, por que eles não prosperaram no Ocidente? “Obviamente todo mundo adoraria fazer um superapp, você mantém o cliente numa plataforma fechada”, afirma Caldeira, do Insper. “Mas não é nada fácil.”

Vários fatores se combinam para explicar as dificuldades, na análise de Prud’homme, Chen e Tong. O primeiro deles é histórico: os gigantes americanos do mundo online nasceram numa época prévia à disseminação dos smartphones, e cresceram com a oferta de serviços especializados na web (busca, para o Google; rede social, para o Facebook; e-commerce, para a Amazon).

Um segundo fator se sobrepôs a esse: o temor de que adicionar serviços demais fizesse a qualidade deteriorar, levando à perda de engajamento. Foi isso que levou o Facebook, por exemplo, a transformar o Messenger num app separado, em 2014.

Esse temor também se apresentava no campo comercial. A percepção era de que serviços demais poderiam canibalizar as vendas (especialmente as receitas de anunciantes). No sentido financeiro mais amplo, o mercado acionário americano há décadas favorece empresas “especializadas”, com os investidores menos dispostos a reconhecer valor na diversificação para áreas não relacionadas ao negócio central da companhia.

Na Ásia, esses fatores estavam presentes quase de forma inversa. Os superapps nasceram na virada do milênio, quando a China começava a se beneficiar de seu salto de produtividade. A sociedade começava a enriquecer, mas a imensa maioria das pessoas não tinha ainda acesso a crédito, nem sequer a contas bancárias.

“O que a China tinha era um monte de smartphones baratos”, aponta Jeremiah Johnson, cofundador do Centro por um Novo Liberalismo, em artigo publicado no final de julho pela revista Foreign Policy. O explosivo crescimento econômico chinês (e a saída da miséria de milhões de pessoas) facilitou a transição para um comércio sustentado não por dinheiro vivo (uma transação pouco prática e inviável online), nem por cartões de crédito ou débito (ubíquos no Ocidente, mas de implantação mais cara e lenta àquela altura), e sim pelas carteiras virtuais nos smartphones. Em 2021, 87% dos chineses usavam pagamentos por celular para suas transações; é mais do que o dobro de qualquer outra nação.

E, uma vez que a sua carteira está num app, fica mais fácil fazer compras dentro desse mesmo app (que era uma ideia de Musk muitos anos atrás, da qual ele teve de se afastar mas que nunca abandonou).

O viés político do governo chinês contribuiu para favorecer ainda mais o desenvolvimento de superapps. Desconfiadas da influência estrangeira e preferindo empresários que se submetessem a seus ditames de vigilância e censura, as autoridades do país baniram quase todos os concorrentes internacionais dos apps chineses em áreas como mídia social, compartilhamento de vídeos, envio de mensagens, divulgação de notícias, buscas e finanças.

Além de limitar a concorrência, o governo chinês ainda favoreceu os superapps de outros modos. Eles não eram obrigados a fornecer informações sobre transações financeiras para reguladores, nem mesmo implementar sistemas antifraude ou contra a lavagem de dinheiro.

Curiosamente, essa tendência se inverteu. Nos últimos anos, as autoridades chinesas fizeram diversas operações punitivas a companhias que tinham práticas anticompetitivas ou lesivas aos consumidores. O governo se deu conta de que o poder dos grandes conglomerados podia ser um problema, em especial desde que o presidente do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping, passou a exigir lealdade e conformidade quase total em todos os campos.

“Uma das ironias dessa história é que a janela de oportunidade para desenvolver um ‘app de tudo’ pode ter acabado também na China, conforme a disposição do governo em relação ao setor de tecnologia mudou”, escreveu Johnson.

 

Elon Musk em foto de maio de 2023
Elon Musk assiste a uma corrida da Fórmula 1 em Miami, em maio de 2023

Por que pode dar certo

Também no Brasil houve tentativas de construir um superapp. “O Banco Inter tentou”, lembra Caldeira. “A Casas Bahia também tinha essa meta. Mas não deu certo”. Na Índia, o poderoso grupo Tata recentemente tentou lançar um superapp, sem resultados expressivos até agora.

Fora os sucessos da década passada na China e em outros países asiáticos de baixa renda, como Indonésia e Vietnã, e até certo ponto mesmo em países ricos como a Coreia do Sul, o Japão e Singapura, em nenhum lugar do Ocidente os superapps tiveram grande perspectiva. Considerando que mesmo na China as condições para seu surgimento já não são boas, por que apostar que o X-Twitter possa se tornar um superapp?

Porque as condições no Ocidente também estão mudando. Primeiro, há um movimento forte em prol da privacidade, o que torna mais complicado para as empresas de tecnologia comprar dados dos usuários de outras fontes ou compartilhá-los com outras companhias. A Apple já adotou restrições nesse sentido para as empresas que habitam sua plataforma, e o Google está estudando uma estratégia similar para o seu sistema Android.

Um ambiente assim funciona como incentivo para que as empresas coletem o máximo de dados dos seus usuários em seus próprios apps — e um caminho para isso é aumentar o número de serviços oferecidos.

Ao mesmo tempo, reguladores nos Estados Unidos e na Europa estão mais atentos para evitar a formação de conglomerados semi (ou inteiramente) monopolistas. Ou seja, está mais difícil conseguir aprovação para crescer via fusões e aquisições. De novo, a pressão antitruste pode levar a maiores investimentos na diversificação dos apps que as empresas já têm.

Junte-se a isso a febre de “appificação” que nós vivemos. Há uma profusão de apps para todo e qualquer serviço, e parece que todo serviço agora requer que você baixe um app. Evitar o gasto de tempo e energia para procurar, instalar e depois navegar por um mar de apps pode ser um estímulo para que os consumidores favoreçam os superapps, onde podem encontrar tudo num lugar só.

Pode-se observar esse caminho nas recentes mudanças do Facebook. O app principal da Meta agora inclui pagamentos, um marketplace, gaming, encontros, podcasts… fala-se inclusive na possibilidade de a empresa reintegrar o Messenger ao Facebook.

Da mesma forma, a Amazon agora tem consulta médicas, farmácia, entrega de comida, vídeo. O Spotify expandiu-se das músicas para os podcasts, audiobooks e streaming de vídeo. O Uber está crescendo rumo a serviços de transporte público, reservas de hotéis, entrega de restaurante ou pacotes etc.

As fronteiras, antes tão bem definidas, estão caindo. As exceções que confirmam a regra são Apple e Google: elas não precisam consolidar vários serviços num app só porque controla ecossistemas inteiros de apps.

Ninguém acha que haverá condições para a formação de superapps no Ocidente, tais como o WeChat da China. Mas há uma tendência de caminhar nesse sentido, até o ponto que for possível.

 

Por que faz sentido tentar

Musk não acordou para essa possibilidade agora. Ele já admira o modelo há muito tempo. Bem antes de comprar o Twitter, já demonstrava admiração pelo WeChat — em declarações no próprio Twitter.

Quando finalmente comprou o Twitter (a contragosto, obrigado pela Justiça depois de ter se arrependido de sua oferta), Musk voltou à carga, dizendo que iria acelerar o desenvolvimento de um “app de tudo”, emulando o WeChat. Zuckerberg também já falou algumas vezes de sua visão de um marketplace integrado a uma plataforma de conversas, “ao estilo de um superapp”.

Essa coincidência de visões tem muito a ver com a destruição da marca Twitter e a criação do X.

No início de julho, provavelmente instigado pela série de medidas antipáticas de Musk para com a base de usuários do Twitter — a aproximação com políticos de direita, a permissão para a volta de contas banidas por discursos de ódio, o enfraquecimento das equipes que previnem conteúdo inapropriado —, a Meta lançou o Threads, um serviço de microtextos que em apenas cinco dias teve mais de 100 milhões de downloads. Um mês depois o serviço perdeu quase 90% de seus usuários, mas imagine o susto que Musk deve ter levado. Pode ter sido o suficiente para fazê-lo tirar o nome X da gaveta, duas semanas depois.

E sua ideia é dar a volta por cima dos concorrentes. Musk não foi muito específico, mas a executiva-chefe que ele recentemente promoveu, Linda Yaccarino, tuitou (ou seria x-zou?) que o X será “centrado em áudio, vídeo, mensagens, pagamentos”, o que está inteiramente alinhado com a ideia de um superapp.

Faz sentido. Em vez de brigar com a Meta ou qualquer outra empresa em seu campo dos microtextos, o X tentará invadir a seara dos vídeos do YouTube — que é muito mais lucrativa. No início de agosto, Musk aparecia em sua conta no X-Twitter parabenizando a equipe que melhorou a qualidade dos vídeos na plataforma.

“Dadas todas as atitudes dele no Twitter, e agora com a troca de nome, a impressão é que o Musk está jogando a marca fora”, avalia Caldeira. “Mas ele pode ter concluído que o Twitter (que já perdeu metade do seu valor desde a compra) não ia dar certo nunca.”

O Twitter ainda tem cerca de 400 milhões de usuários. “Se ele convencer uma parte a usar os serviços mais lucrativos, como pagamentos online, está feito.”

 

Mas porque (de novo) vai ser muito difícil

Talvez seja uma alternativa viável para uma empresa que já estava em crise. Mas isso não torna o caminho de se tornar um superapp mais fácil.

Quando os desenvolvedores inserem muitas funções num app, arriscam frustrar o usuário, escreveu ele em agosto de 2021. “Apps com um propósito único são mais fáceis de navegar e mais rápidos.” E isso pode definir o jogo. Um estudo da consultoria Deloitte citado por ele indica que uma melhora de um décimo de segundo na velocidade de carregamento de um site de e-commerce aumenta a conversão de clientes em até 8% e os gastos deles em 10%.

Além disso, estudos do Google mostram que os usuários perdem o foco se tiverem que esperar mais de um segundo pela resposta de um app. Embora as velocidades de conexão estejam melhorando e o 5G possa suportar apps mais complicados, a interface de um serviço múltiplo será sempre mais demorada, pois o cliente tem de achar a função que quer dentro do aplicativo.

“Este é o meu maior senão em relação aos superapps”, escreveu. “A maioria deles resolve um problema da companhia, não do consumidor.”

Musk talvez não tenha essa noção. Ele é fascinado pela ideia de um app capaz de fazer tudo desde os tempos de seu primeiro grande sucesso, o PayPal. Sua visão original era, a partir dos serviços financeiros online, construir uma operação que fizesse tudo.

Mas a construção de um superapp começou a atrapalhar a eficiência do produto principal, de pagamentos por email. E Musk ainda insistia em chamar a companhia de X, apesar de PayPal ter se tornado uma marca bastante forte.

“Em menos de um ano, ele foi demovido do comando da empresa e substituído por Peter Thiel como executivo-chefe”, lembra Johnson, da Foreign Policy. “A PayPal foi salva porque seu conselho ejetou Musk. Mas desta vez não há conselho para tirá-lo, e não há ninguém para salvá-lo de si mesmo.”

Este website usa Cookies

Saiba como o Insper trata os seus dados pessoais em nosso Aviso de Privacidade, disponível no Portal da Privacidade.

Aviso de Privacidade

Definições Cookies

Uso de Cookies

Saiba como o Insper trata os seus dados pessoais em nosso Aviso de Privacidade, disponível no Portal da Privacidade.

Aviso de Privacidade