Para John Stuart Mill, a divergência de opiniões em uma sociedade é necessária para se aproximar da verdade de qualquer tema debatido
Enzo Orabona
O filme “O povo contra Larry Flynt” retrata a história do fundador da revista pornográfica Hustler, Larry Flynt. A trama gira em torno da trajetória do editor para assegurar os direitos de publicação da revista nos EUA. A luta de Flynt, a despeito de suas atitudes, julgadas inapropriadas e obscenas pelo governo, traz à tona a temática da liberdade de expressão, apresentando questionamentos sobre seus limites. O longa pode ser relacionado com as noções de liberdade abordadas por John Stuart Mill em sua obra de 1859, “Sobre a Liberdade”, como por exemplo o livre confronto de ideias, a falibilidade presente em todos os indivíduos e a ideia de dano.
Durante diversos momentos do filme, Flynt é confrontado por inúmeras personalidades, principalmente agentes do governo e pelo pastor Jerry Falwell, líder religioso que Flynt enfrentou na Suprema Corte em 1988, por conta de sua publicação satirizando uma suposta primeira relação sexual de Falwell. Para todos esses embates, o editor usa a ideia de liberdade de expressão como “coringa” em sua argumentação, pautando-se na ideia de que as pessoas têm o direito de possuírem opiniões impopulares sem serem julgadas ou punidas por conta disso. Na opinião do protagonista, o direito à liberdade de expressão deve ser absoluto, uma vez que a forma do indivíduo se manifestar como bem entende não implica de maneira severa nos direitos individuais das pessoas. Podemos relacionar essa parte da trama em que o editor publica a sátira simbolizando a relação sexual do pastor com o princípio do Dano apresentado por Mill, uma vez que os limites da liberdade podem ser debatidos. Para o filósofo, a expressão do indivíduo deve ser levada em consideração até o momento em que essas ações não causem danos a terceiros, isto é, todo tipo de manifestação é válida, exceto aquelas que ferem de alguma forma a vida do outro, ultrapassando assim, o limite da liberdade de expressão.
Outro pensamento muito discutido pelo filósofo em seu livro é a importância do livre embate de ideias, isto é, Mill acredita que a divergência de opiniões em uma sociedade é necessária para se aproximar da verdade de qualquer tema debatido, visto que sem opiniões distintas apenas uma visão é apresentada, podendo assim formar ideais equivocados e, consequentemente, a alienação de toda a sociedade. Deste modo, constata-se que o confronto de opiniões ajuda a fortalecer o pensamento crítico do indivíduo, além de abrir espaço para ideias incomuns representadas por minorias. Com base nesse conceito, podemos analisar a cena do filme em que Flynt é baleado pelo supremacista branco, Joseph Franklin, saindo de um julgamento na Geórgia. O atirador, por não concordar com a pornografia explícita promovida por Flynt, age de forma criminosa a fim de tentar preservar sua visão de mundo, sem considerar opiniões contrárias em relação ao tema. Para Mill, atos como esse não promovem o desenvolvimento da sociedade, no que diz respeito à formação de um pensamento crítico, justamente por tentar suprimir o livre conflito de ideais.
Mill também discute o princípio da falibilidade, que baseia-se na noção de que o ser humano é falho e não possui certeza absoluta de que algo seja verdade. Assim, cria-se abertura para pensamentos diferentes, que por mais que sejam comprovados falsos no futuro, ajudam a ampliar visões sobre as temáticas em questão. Além disso, a falibilidade também se aplica para erros cometidos por indivíduos em relação à liberdade de expressão manifestada por eles, isto é, permite que o ser humano possa falhar em suas teses, crenças e discussões.
A partir da relação feita entre o filme e as ideias de John Stuart Mill, entende-se que a liberdade de expressão é essencial em assuntos políticos e sociais, uma vez que a multiplicidade de ideias contribui para o aprimoramento de concepções presentes em nossa sociedade, ampliando o conhecimento intelectual e cultural da comunidade, fugindo de dogmas pré-estabelecidos e da alienação. O filme termina com a vitória de Flynt na Suprema Corte, assegurando seus princípios. O interessante da mensagem transmitida é que a luta em questão não era essencialmente pela liberação da pornografia nos Estados Unidos, e sim pelo direito dos indivíduos expressarem opiniões próprias relativas aos mais variados temas em uma sociedade.
Referências bibliográficas:
Filme: “O povo contra Larry Flynt” – 1996
Livro: “Sobre a Liberdade”, John Stuart Mill. Capítulo II – “Da liberdade de pensamento e discussão”
https://efabiopablo.files.wordpress.com/2017/02/sobre-a-liberdade-col-saraiva-de-bolso.pdf
Texto de apoio: “Liberdade de expressão: 4 momentos-chave para entender sua evolução”, Fernando Schüler