O debate conhecido internacionalmente como “food vs fuel” não é novo, mas ganha novos contornos com a elevação do preço dos alimentos e a pressão do processo de transição energética
Leandro Gilio, pesquisador sênior do Insper Agro Global
Marcos Abdalla Campos, assistente de pesquisa do Insper Agro Global
A transição global para uma matriz energética com menos emissões tem se acelerado, ao mesmo tempo que os preços globais de alimentos seguem em patamar elevado. Segurança energética e alimentar são temas cada vez mais delicados e estratégicos no âmbito geopolítico mundial e, nesse contexto, volta à tona o debate “food vs fuel”, que justamente opõe esses dois aspectos.
Em meados dos anos 2000, quando os biocombustíveis ganharam impulso como uma alternativa viável e simples para a redução de emissões — vários países estabeleceram metas de ampliação do seu uso —, começou-se a questionar se a disponibilidade de terras produtivas seria um fator limitante e se o crescimento da finalidade energética de produtos agrícolas poderia vir a ameaçar a segurança do abastecimento de alimentos e até mesmo áreas de preservação florestal.
As dúvidas à época recaíam principalmente sobre o programa americano do etanol, produzido principalmente a partir do milho, sugerindo que o aumento da demanda pelo grão elevaria os custos na produção de alimentos derivados — o mundo também vivia um período que ficou conhecido como “boom de commodities”, quando os preços de produtos agropecuários subiram fortemente diante da grande demanda chinesa.
No entanto, diversos estudos posteriormente publicados na literatura científica demonstraram que esse impacto fora bastante limitado: embora se reconheça em muitos trabalhos alguma ocorrência de competição pelo fator terra, resultados ponderaram sobre a interdependência entre combustíveis e a produção de alimentos; sobre elevações em produtividade que neutralizaram efeitos negativos; sobre geração de renda e emprego em regiões subdesenvolvidas derivadas do aumento no uso de biocombustíveis — aumentando o acesso a alimentos em determinadas localidades —; e até mesmo sobre a possibilidade de uso dos resíduos da produção como fertilizantes de menor preço.
Portanto, conclusões de efeitos diretos sobre a produção e os preços de alimentos com origem no crescimento de biocombustíveis foram consideradas bastante simplistas naquele momento, principalmente quando eram avaliados casos como o brasileiro, onde a produção predominante de bioenergia era advinda do etanol de cana-de-açúcar.
Hoje, em meio a um novo “boom de commodites”, provocado por desequilíbrios em cadeias globais de produção, principalmente motivados pela pandemia e pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia, discute-se novamente o papel e a importância da bioenergia na transição energética. Segundo dados da Agência Internacional de Energia, de 2022 até 2027, a demanda mundial por biocombustíveis deve crescer cerca de 20%, e alternativas em estudo poderiam impulsionar o uso energético de produtos agrícolas, como o hidrogênio verde. Portanto, nos dias de hoje, poderia haver uma competição pelo uso do recurso terra a ponto de existir algum efeito sobre os preços dos alimentos e a segurança alimentar global?
Primeiramente, é importante destacar que, ao longo das últimas décadas, houve grandes avanços tecnológicos tanto no lado da bioenergia quanto na produção agropecuária. Há um aproveitamento melhor dos produtos de origem agrícola, inclusive dos resíduos de produção, que elevam significativamente o potencial de conversão energética — nesse caso há o etanol lignocelulósico, biodiesel verde, e outros modelos mais recentes de conversão de biomassa. Além disso, na produção “dentro da porteira”, hoje existem sistemas integrados de energia e alimentos (IFES, sigla em inglês para Integrated Energy and Food Systems), que consistem em fazendas modeladas para intensificar e integrar a produção de energia e de alimentos, maximizando a sinergia na produção agropecuária e em sistemas agroflorestais.
Em suma, as tecnologias atuais permitem um crescimento significativo do uso de bioenergia sem pressão relevante sobre a produção de alimentos. O crescimento no uso de bioenergia com origem agrícola também permite ampliar a geração de renda em áreas rurais, que em geral são bastante defasadas em seus indicadores socioeconômicos quando comparados aos das áreas urbanas ou industriais, contribuindo positivamente para a segurança alimentar em algumas regiões. Portanto, a segurança alimentar e a segurança energética podem andar em conjunto e o estímulo a bioenergia não cria um elo de oposição entre esses dois importantes aspectos.