Não, não é um mundo sem desigualdades. Mulheres e membros de outras minorias ainda têm que enfrentar o chão pegajoso, o tokenismo, o penhasco de vidro…
David A. Cohen
Pode parecer uma boa notícia: as referências ao “penhasco de vidro” — um termo para designar a propensão de promover mulheres (e outras minorias) a cargos de comando durante situações de crise — são praticamente inexistentes no Brasil.
“Olhando as principais plataformas de artigos científicos nacionais, não achamos muitos trabalhos sobre o fenômeno por aqui”, diz Ana Diniz, professora da graduação e coordenadora do Núcleo de Estudos de Diversidade e Inclusão no Trabalho do Insper. “Não é um termo tão disseminado.”
Infelizmente, isso não significa que estejamos num estágio próximo da igualdade entre gêneros. “Acho que a expressão não ganhou força porque o teto de vidro ainda é muito forte no país”, afirma Diniz.
Quer dizer: para que se possa analisar a qualidade das situações em que as mulheres chegam à liderança, seria preciso primeiro que houvesse um número mais significativo de mulheres na liderança. Não é o que tem acontecido.
A pesquisa anual sobre mulheres no mundo dos negócios feita pela empresa de consultoria e auditoria Grant Thornton concluiu que no ano passado as mulheres ocupavam 38% dos cargos de liderança no Brasil e 31% dos postos máximos, de presidente executivo. A pesquisa foi feita no mundo inteiro, com 5.000 lideranças empresariais, das quais 250 no Brasil.
Os números revelam uma certa estabilidade (apenas 1 ponto percentual abaixo do ano anterior) e uma taxa superior à média mundial de 29%. Ainda é pouco, mas não parece um dado tão ruim, principalmente comparando com 2019, quando só um quarto dos cargos de liderança era exercido por mulheres. Há, no entanto, alguns problemas.
O primeiro é que as lideranças femininas estão concentradas em áreas específicas: nas diretorias de RH (42% de mulheres), finanças (também 42%) e marketing (40%). Nos cargos de chefe operações (28%) e chefe de tecnologia (19%) o Brasil ficou abaixo da média mundial. E houve recuo mais significativo no cargo de executivo-chefe, de 4 pontos percentuais (eram 35% em 2021).
A segunda questão é que essa pesquisa apresenta números bem acima dos de outras. A B3, a bolsa de valores brasileira, fez em 2021 um estudo com 408 companhias de capital aberto e encontrou apenas 6% de empresas com três ou mais mulheres em cargos de diretoria; 61% não tinham sequer uma mulher diretora e 45% não tinham nenhuma mulher no conselho de administração. Nem mesmo nas empresas do Novo Mercado, que em tese apresentam práticas melhores de governança, a situação muda: 89% delas tinham uma ou nenhuma diretora.
O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa apresenta dados semelhantes. De acordo com sua contagem, a presença feminina em conselhos de administração é de meros 11%.
Um outro levantamento, feito em 2021 pela BR Rating, uma agência de classificação de governança corporativa, constatou que apenas 3,5% das companhias têm uma mulher como executivo-chefe, e só 16% têm mulheres em cargos de diretoria, numa amostra de 486 empresas nacionais e multinacionais com mais de 200 funcionários. Em média, a taxa de mulheres em cargos executivos é de apenas 23%.
O problema não é só brasileiro, obviamente. Em novembro passado, uma pesquisa anual sobre a percepção em relação a homens e mulheres em cargos de poder, o Índice de Reykjavik para Liderança, apontou que só 47% das pessoas nos países do G7 (Alemanha, França, Canadá, Estados Unidos, Itália, Japão e Reino Unido) se sente “muito confortável” com uma mulher como executiva-chefe de uma companhia importante de seu país.
Foi a primeira queda do índice desde que ele começou a ser medido pela empresa de pesquisas de mercado Kantar Public, em 2018. No ano anterior, a confiança nas mulheres em cargos de poder era de 54%. Uma possível explicação é que o preconceito contra mulheres tenha se agravado com a pandemia da covid 19 — quando muitas mulheres diminuíram o ritmo de trabalho ou largaram o emprego para cuidar dos filhos. “A gente vinha avançando e a pandemia deu um baque”, observa Diniz.
Essa batalha, digamos, prévia é que mantém ainda incipientes as outras discussões sobre as dificuldades de ascensão profissional das mulheres. E há muitas. “Na área da administração, temos muitos termos para designar as diferentes formas como as desigualdades de gênero se manifestam nas organizações”, conta Diniz. “Chão pegajoso, por exemplo, refere-se à sensação de que se exige mais esforço para uma mulher sair dos postos da base. Labirinto da liderança é um termo para ilustrar que os caminhos rumo à chefia são mais tortuosos.”
Há vários outros ainda. A síndrome da abelha rainha é um termo usado para definir mulheres em cargo de comando que criam mais dificuldades para outras mulheres; tokenismo é a adoção de práticas ou políticas igualitárias apenas superficialmente, de modo que não muda de fato a distribuição de poder; a parede materna é a barreira encontrada por mulheres antes, durante ou depois de uma gravidez. E por aí vai.
Um dos conceitos mais recentes é o penhasco de vidro. Surgiu em 2005, provocado por um artigo escrito por uma jornalista no The Times, da Inglaterra, em 2003. O artigo afirmava que as mulheres haviam rompido o teto de vidro nas empresas britânicas — mas isso havia feito com que o desempenho e as ações das firmas caíssem. A jornalista, Elizabeth Judge, citava dados mostrando que as grandes empresas com mais mulheres em seus conselhos tinham resultados piores do que as que só tinham homens.
Dois professores da Universidade de Exeter, na Inglaterra, Michelle Ryan e Alexander Haslam, analisaram o tema e descobriram que a relação entre mau desempenho e nomeação de mulheres de fato existia, mas ocorria no sentido oposto. Não é que as mulheres prejudicassem as empresas — é que empresas que estavam indo mal recorriam às mulheres. Concluíram isso verificando que em média os resultados dos cinco meses anteriores às nomeações eram ruins.
Ou seja, em situações de crise, as empresas tendiam a ser mais abertas a chamar uma líder mulher. O mesmo efeito mais tarde foi estendido para outras minorias. Faz sentido. Várias pesquisas já mostraram algo até intuitivo: quando tudo vai bem, as companhias tendem a buscar “mais do mesmo”, promover gente de dentro, formada na cultura interna. É o pensamento do “em time que está ganhando não se mexe”.
Quando as coisas vão mal, ao contrário, tende-se a buscar alternativas. E aí se abrem mais oportunidades para quem não pertence ao status quo.
Embora tenha sido confirmado por outras pesquisas (incluindo nos campos do direito e do esporte), o penhasco de vidro não foi encontrado em todos os mercados. Alguns pesquisadores inclusive sugerem que ele seja um mito. Uma meta-análise de 74 estudos, feita em 2020, concluiu que as evidências do fenômeno são dúbias.
“Talvez o penhasco de vidro não seja mais um problema em alguns setores graças a ações afirmativas, ou exista em alguns países e não em outros por causa de diferenças culturais”, escreveu a jornalista Kelly Oakes no site da BBC, no início do ano passado.
Ou talvez não seja possível coletar dados que comprovem o fenômeno pela ínfima quantidade de mulheres em cargos de poder nas empresas — como parece ser o caso do Brasil.
As explicações para o penhasco de vidro recaem em três categorias principais, aponta Oakes. A primeira: de acordo com o estereótipo do que é ser feminino, as empresas acreditam que as mulheres são mais aptas a cuidar das pessoas e dar sensação de pertencimento em épocas de dificuldades. A segunda: contratar uma mulher (ou uma pessoa de outra etnia) sinaliza mudança, tanto para o público interno quanto para investidores e parceiros. A terceira: trata-se de uma estratégia para “queimar” uma executiva, dando-lhe uma missão quase impossível, já que a empresa está mesmo em desespero.
Na linha desta terceira explicação, surgiu um conceito derivado: o “líder salvador”, aquele que resgata a empresa depois que a alternativa feminina não deu certo (em geral um homem branco e mais velho).
A direção para a qual todos esses conceitos apontam é que a batalha não acaba quando se ultrapassa o teto de vidro. “A mulher alcançar um cargo de alta gestão não significa que ela vai parar de enfrentar as dificuldades de desigualdade de gênero”, alerta Diniz, do Insper.
Para uma mulher, ou algum profissional de outra minoria, portanto, é preciso estar atento ao contexto de uma promoção. “Se pessoas parecidas com você são minoria na empresa e você é muito diferente do seu antecessor, é possível que lhe queiram como um símbolo de mudança — ou, pior, como um bode expiatório”, diz Keith Dorsey, sócia especialista em programas de liderança na Boyden, uma empresa global de contratação de executivos. Em artigo na edição de março da revista da faculdade Sloan, do MIT, ela recomenda que, “antes de aceitar uma posição como essa, você deve tomar ações específicas para mitigar riscos e aumentar suas chances de sucesso”.
A primeira ação é avaliar com cuidado a situação em que você está se envolvendo. Conversar com o antecessor, com a equipe, com analistas etc. O segundo passo é criar um plano e decidir se você vai dar o salto que pode atravessar o penhasco, mas também pode jogá-lo no precipício. Esse plano inclui arregimentar mentores, defensores e aliados; entender de onde você poderá buscar os recursos necessários; negociar prazos e reforços para o time.
“Se você é um profissional de uma minoria com aspiração à liderança, é possível que lhe ofereçam mais de uma oportunidade de penhasco de vidro”, diz Dorsey. “Não as evite. Elas podem ser excitantes e divertidas. Mas também não permita que o coloquem numa situação em que o sucesso é impossível.”
Para as empresas, a conclusão é que talvez seja necessário fazer um esforço extra para que as mulheres não apenas alcancem cargos de chefia, mas que sejam bem-sucedidas neles. É comum argumentar que o caminho está aberto, elas é que não desejam. Mas isso é balela. Um estudo do Insper em parceria com a consultoria de carreira Robert Half mostrou que a motivação para a liderança é praticamente a mesma entre homens e mulheres: 5,49 para eles, 5 para elas, numa escala de 1 a 7.
Entre essa disposição inicial e a realidade final há sempre muitos obstáculos, é claro. Mas eles deveriam ser os mesmos para todos, independentemente de a qual grupo a pessoa pertença.