Mais de um século depois de sancionada a lei que aboliu oficialmente a escravidão, o Brasil ainda não superou as marcas desse período, diz o professor Aparecido Alves
Bárbara Nór
No último dia 13 de maio, foi celebrado o 135º aniversário da assinatura da Lei Áurea, que extinguiu oficialmente a escravidão no Brasil. Mas ainda falta muito para que, de fato, as marcas desse período sejam superadas no país. É o que afirma Aparecido Alves, professor monitor da disciplina de pensamento crítico e ética no Insper e mestre em economia pela Unicamp. “A escravidão foi um movimento que durou séculos, algo difícil de reverter em pouco tempo”, diz Alves.
Não só a escravidão durou séculos por aqui, como o Brasil tem tristes recordes. Fomos, por exemplo, a última grande nação que aboliu a escravidão — e também o país que mais recebeu pessoas escravizadas no mundo. Segundo o Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos, pelo menos 4,86 milhões de negros desembarcaram oficialmente no país até meados de 1880.
E continuamos protagonizando outras estatísticas lastimáveis: no primeiro trimestre de 2023, foram resgatadas 918 vítimas de trabalho escravo — alta de 124% em relação ao mesmo período de 2022. Ou seja: a mentalidade que o período da escravidão formou ainda está longe de ter acabado no país.
Para piorar, comenta Alves, a forma como a escravidão foi abolida no Brasil foi uma segunda violência contra a população negra. “Essas pessoas não tiveram suporte nenhum do Estado, algo que tem reflexos até hoje”, afirma.
Leia mais na entrevista a seguir.
O que a escravidão representou para o Brasil e que impactos disso podemos perceber até hoje em nossa sociedade?
A escravidão é uma instituição que foi forjada durante 300 anos para submeter uma parcela da população ao trabalho forçado. Seria difícil imaginar que esse processo sumisse rapidamente apenas com a Lei Áurea, não teria como a sociedade passar incólume. Até hoje, se diz que o dia 14 de maio de 1888, ou seja, o dia seguinte à assinatura da Lei, foi o dia mais longo da história do país. Uma vez emancipados, aqueles que eram escravizados não tiveram suporte nenhum do Estado. Simplesmente disseram a eles que estavam livres, mas sem nenhum apoio, nenhuma assistência. O reflexo disso é nítido até hoje em nossa sociedade. Quando se olha para os desempregados, por exemplo, a maioria são pretos e pardos. Eles também são maioria na população carcerária do Brasil. Já a renda das pessoas brancas é em média 60% a 70% acima da renda da população preta e parda. Tudo isso reflete um conjunto de situações estruturais que não foram resolvidas desde a emancipação em 1888.
Outra crítica que se faz a esse momento no Brasil é que teria havido políticas do Estado brasileiro que justamente dificultaram ainda mais o acesso de pessoas negras ao mercado de trabalho.
Sim, houve essa tentativa de embranquecimento da mão de obra do nosso país a partir do financiamento estatal da imigração europeia. Então, além de não dar o suporte necessário para que a população negra se inserisse no sistema de econômico com independência, você não deu guarida, não deu propriedades, e trouxe uma mão de obra europeia para cumprir e exercer as tarefas que a população escravizada cumpria até então. Então, nem um trabalho digno elas poderiam ter para tocar a própria vida. Isso foi o que infelizmente se chamou de liberdade n Brasil. Conseguir moldar e transformar nossa sociedade em uma mais igualitária, com mais justiça racial e digna é um reparo histórico que precisamos fazer se queremos nos entender como uma nação que busca desenvolvimento e protagonismo internacional.
Como você compararia o fim da escravidão no Brasil com o de outros países que passaram por isso?
Em linhas gerais, o processo no Brasil se tornou um pouco mais complicado. Fomos o último país importante a acabar com a escravidão. E os resquícios, até por essa demora, também foram bastante severos. Em outros países, como os Estados Unidos, por exemplo, a questão racial foi de certa forma mais aguda. Em alguns estados americanos, a segregação racial estava na lei. Esse caráter mais evidente do racismo por lá impulsionou o surgimento da luta pelos direitos civis, por volta dos1950. Nesse sentido, houve uma participação grande do movimento negro no avanço dessas questões, o que faz com que talvez eles estejam um pouco mais à frente que nós. A eleição de Barack Obama em 2008 mostra isso. Ainda assim, há muita coisa a se fazer por lá em termos de justiça racial.
Até hoje, não é raro surgirem denúncias de pessoas em situação de trabalhos escravos e análogos à escravidão no Brasil. Isso também é outro indício de que ainda não superamos a escravidão?
Sim. Parte dos empregadores não consegue olhar para as pessoas que estão trabalhando como um ser humano que merece a dignidade, e a escravidão foi um processo justamente de desumanização daquelas pessoas, que seriam vistas apenas como um recurso. Essas empresas focam única e exclusivamente no lucro, sem dar o mínimo de guarida, o mínimo de suporte para que a pessoa possa tocar a própria vida e prosperar. E acho que tem marcas mesmo quando olhamos todo o cenário de ocupações na nossa sociedade. Aquelas ocupações de menor renda normalmente são de pessoas negras ou pretas, assim como o acesso a determinados cursos e formações nas universidades. Há uma defasagem que precisamos resolver.
Que medidas precisariam ser colocadas em prática para reverter essa situação?
É preciso de políticas afirmativas para incluir essas pessoas nas empresas e universidades, de políticas de transparência salarial nas organizações e, sobretudo, de campanhas de conscientização. As pessoas precisam ter noção daquilo que se passa. Essas ações precisam ser contínuas, e não pontuais, o Estado precisa agir de forma contínua para que a gente consiga avançar. Além disso, precisamos discutir a questão da inserção, da diversidade em todos os ambientes. Isso é fundamental porque vemos que as pessoas não se dão conta do quão díspar é esse ambiente em que estamos inseridos. Há certos ambientes em que você não vê pessoas negras, elas praticamente não têm acesso. Percebo que há grupos defendendo maior diversidade e que vêm ganhando espaço, mas o caminho ainda é muito longo e a velocidade com que as mudanças estão acontecendo está aquém do desejado.