Se bem utilizada, a divergência entre membros de diferentes gerações, com visões distintas de gestão, pode levar a uma interação benéfica para o negócio
Raphaella Escudeiro*
Empresas familiares de hoje foram empreendedoras no passado. Por esse motivo, é muito comum que o fundador seja o chefe de família e os papéis de pai e gestor se sobreponham, tornando a dinâmica entre os envolvidos complicada e desafiadora. O tradicional se opõe ao moderno e a mente empreendedora se opõe à formação acadêmica. Está aí uma dicotomia frequente em empresas familiares.
Em filosofia, dicotomia é a oposição entre conceitos excludentes — ou seja, quando falamos em dicotomia para as empresas familiares, entendemos que há o jeito certo e o errado de fazer negócio. E, para muitas famílias, a dificuldade no processo de sucessão esbarra neste ponto: opor-se ao tradicional para adaptar-se ao mercado atual, deixar que a nova geração traga suas visões de negócio para dentro da empresa, sem anular ou esquecer a tradição que a trouxe até aqui.
A longevidade das empresas familiares é um tema abrangente e muito estudado, e a baixa taxa de sustentabilidade dessas empresas com o passar das gerações se deve principalmente à falta de planejamento sucessório. Estima-se que apenas 30% das empresas familiares cheguem à segunda geração, índice que cai para 5% quando se fala em terceira geração. Conflitos familiares e a falta de capacitação dos sucessores para gestão são os principais fatores apontados nas pesquisas, como em um artigo publicado na Revista de Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas da UFG. Nele, os autores entrevistaram proprietários e gestores de empresas familiares de diversos setores e identificaram que a grande maioria não conta com nenhum tipo de planejamento sucessório formalizado, sendo este um processo ainda visto como complexo, distante e conflitante na realidade das empresas familiares no Brasil.
Levando em conta os últimos dados do Sebrae e do IBGE, cerca de 90% das empresas brasileiras são familiares. Elas são responsáveis por 65% dos empregos no setor privado no país e por 30% do PIB brasileiro. Isso mostra como o investimento no planejamento sucessório, pensando na longevidade dessas empresas, impacta diretamente a economia do país como um todo.
O planejamento sucessório é uma ferramenta importante para a transferência de liderança, minimizando os riscos de conflitos familiares e garantindo a continuidade do negócio. Se bem executado, ajuda a preservar o patrimônio e a cultura da empresa, além de permitir ao sucessor se preparar com antecedência para assumir o cargo e as responsabilidades.
Para ilustrar, de forma bem simplificada, um bom planejamento sucessório envolve:
1) Antecipar a sucessão, para permitir que se planeje a transição de liderança;
2) Comunicar o processo para todas as partes interessadas;
3) Definir os papéis e as responsabilidades dos membros da família e demais funcionários;
4) Realizar o planejamento financeiro e o levantamento de questões patrimoniais, evitando conflitos contábeis;
5) Selecionar e treinar os sucessores — a capacitação é muito importante para o sucesso da transição de liderança;
6) Acompanhar o processo de sucessão, avaliação e monitoramento periódicos para fazer ajustes necessários durante o processo e garantir uma transição eficaz.
Em resumo, o processo de sucessão nas empresas familiares continua em sua dicotomia, mas, sendo encarada como uma ferramenta de análise crítica, permite a interação entre as diferentes gerações, que apresentam formas distintas de fazer negócio. Se bem utilizada, essa dicotomia pode levar a uma interação benéfica entre os opostos, trazendo leveza à complexidade das relações sutis. Família e empresa, gerações e pontos de vista, momentos e mercados diferentes, convivendo dentro da mesma realidade.
*Raphaella Escudeiro é a segunda geração da empresa da sua família, que atua no ramo imobiliário e de construção. É formada em Administração de Empresas pelo Mackenzie e tem Certificate in Marketing Management pelo Insper, além de outras especializações na área de marketing e estratégia. Integra o Comitê Alumni de Empresas Familiares, sendo uma das líderes da primeira gestão.