Premiado com sete estatuetas do Oscar, o filme dos diretores Daniel Kwan e Daniel Scheinert dá ares fantásticos ao corriqueiro e complicado relacionamento entre gerações
Leandro Steiw
Em entrevistas pré-Oscar, o ator James Hong disse que não basta entrar na sala de cinema e assistir a Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, atração da mais recente sessão do Insper Cineclube e que está em cartaz nos cinemas. Para o veterano artista de 94 anos, com participação em cerca de 700 produções cinematográficas, é preciso sentar e deixar-se levar pelo clima dos diretores Daniel Kwan e Daniel Scheinert. De fato, seria inútil decifrar cada mínimo detalhe das informações sobre fantásticos universos múltiplos que permeiam o enredo.
Uma ideia paira no ar: o mundo como conhecemos já está segmentado em dimensões geracionais e culturais incapazes de se entender. Na família de Evelyn Wang, papel de Michelle Yeoh, as personagens conversam ora em cantonês, ora mandarim, ora em inglês — sem que todos dominem os três idiomas. Para piorar, aparece um quarto palavreado no burocratês de Deirdre Beaubeirdre, a auditora de impostos vivida por Jamie Lee Curtis.
Evelyn se equilibra entre as frustrações do casamento com Waymond (Ke Huy Quan), a relação difícil com a filha Joy (Stephanie Hsu) e sua namorada Becky (Tallie Medel) e a rejeição afetiva de seu pai, Gong Gong (James Hong). No início do longa-metragem, vemos Evelyn tentando organizar outra bancarrota, desta vez financeira, nas contas dos negócios da família. Os desafios do multiverso surgem justamente quando ela vai se explicar para a agente fiscal.
Dimensões paralelas são um tema bastante explorado pelo cinema, pela literatura e pelas histórias em quadrinhos. Por maior que seja o esforço para acreditar que o nosso universo não é único, o multiverso é uma teoria especulativa — que se encaixa muito bem, entretanto, em obras de ficção científica. Só que o roteiro não pira na física. Está longe de se espelhar na plausibilidade de Contato (1997) ou Interestelar (2014). Não é um filme de ficção científica, e talvez aí esteja o erro de alguns espectadores.
Ação, humor e aventura são elementos muito mais fortes em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo. Acima de tudo, deve-se gostar de cenas de artes marciais. Os diálogos apresentam uma quantidade enorme de informações sobre personalidades alternativas, saltos entre universos e compartilhamento de mentes. Como as decisões de Evelyn precisam ser imediatas, não dá tempo de acompanhar tudo em detalhes. Não faz diferença, na verdade. Durante a trama, o conflito que importa é o geracional.
Os Daniels, como se autodenominam os diretores Kwan e Scheinert, buscaram inspiração em clássicos como Matrix (1999), Kill Bill (2003), A Felicidade Não se Compra (1946), Feitiço do Tempo (1993) e Era Uma Vez na China (1991). Em entrevista ao site IMDb, eles citaram ainda os filmes de ação produzidos em Hong Kong, os títulos estrelados por Jackie Chan e Michelle Yeoh, os animes Paprika (2006) e Mind Game (2004) e vídeos musicais, entre os quais A Day in the Life (1967), dos Beatles.
A maioria das citações dos diretores justifica as cenas de lutas, as situações nonsense e os efeitos de bullet time — movimentos em câmera lenta popularizados por Matrix, de Lana e Lilly Wachowski. O apelo emocional vem de A Felicidade não se Compra, do diretor Frank Capra (1897-1991): um anjo da guarda busca convencer um homem que pensa em morrer de que vida vale a pena quando se tem amigos. Em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, o apelo religioso dá lugar à fantasia pseudocientífica.
A antagonista é uma vilã superpoderosa, Jobu Tupaki, que pode destruir todos os universos com sua personalidade autocentrada. Por que ela desejaria instalar o caos e por que luta contra Evelyn Wang? A explicação é spoiler, mas também não é um grande segredo. Como os diretores já criticaram o “comportamento niilista pós-moderno que mata o sublime”, metade do recado está dado. O filme é para sentir e experimentar, eles disseram — exatamente como interpretou James Hong.
Daqui a alguns anos, talvez o longa-metragem dos Daniels nem se transforme em cult movie, como vários que eles homenagearam. O importante é que, mais uma vez, um representante do cinema indie mexeu na comodidade de Hollywood ao arriscar no ritmo de um tema simples e cotidiano. Uma vez em frente à tela, o espectador deve se preocupar com a diversão que os cineastas e uma afortunada conjunção de estrelas foram capazes de criar. Gente desta dimensão, inclusive.
Everything Everywhere All at Once, no título original em inglês, conquistou sete Oscars: melhor filme, diretor, atriz (Michelle Yeoh), atriz coadjuvante (Jamie Lee Curtis), ator coadjuvante (Ke Huy Quan), roteiro original e edição. Stephanie Hsu também foi indicada na categoria de atriz coadjuvante.
O roteiro é pontuado de frases ditas pelo pequeno Short Round, que Ke Huy Quan interpretou em Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984), quando tinha 12 anos.
O papel principal foi imaginado para Jackie Chan, mas Daniel Kwan e Daniel Scheinert acharam que o argumento ficaria mais bem resolvido com uma protagonista. Escolheram, então, Michelle Yeoh, que já havia atuado com Chan.
As proporções da tela mudam conforme o universo no qual se desenrola a história. O efeito torna-se sutil perante a dinâmica da história.
Os diretores fazem pontas no filme: Kwan como um assaltante, e Scheinert como um gerente distrital chamado Richard Long, referência à personagem que fez em The Death of Dick Long (2019), dirigido por ele mesmo.
2001: Uma Odisseia no Espaço, Star Wars, De Volta para o Futuro, Jurassic Park, Esqueceram de Mim, Ratatouille: são apenas algumas das produções citadas em sequências, diálogos, cenários e figurinos. A caça da auditora fiscal entre mesas e divisórias, por exemplo, remete a diversos movimentos do velociraptor na cozinha de Jurassic Park (1993).
O figurino de Deirdre Beaubeirdreda foi copiado da roupa de uma verdadeira auditora da IRS, a receita federal dos Estados Unidos, em foto que os Daniels encontraram em um banco de imagens.
As filmagens de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo consumiram meros 38 dias e um orçamento estimado em 14 milhões de dólares. Desde o lançamento, em 27 de março de 2022, já faturou em bilheteria dez vezes mais o que custou.
Kwan e Scheinert já haviam roteirizado e dirigido juntos o longa Um Cadáver para Sobreviver (2016), no qual o inusitado é um cadáver que ajuda um homem a voltar para casa.
Assista a um trailer do filme aqui.