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Sob nova (?) direção, a Disney chega aos 100 anos com corpinho de 98

A volta do líder de dois anos atrás, o CEO Bob Iger, será o bastante para solucionar a briga com o governo, a irritação de consumidores, a desconfiança do mercado, as rupturas no modelo de negócios e o crescimento de concorrentes?

A volta do líder de dois anos atrás, o CEO Bob Iger, será o bastante para solucionar a briga com o governo, a irritação de consumidores, a desconfiança do mercado, as rupturas no modelo de negócios e o crescimento de concorrentes?

 

David Cohen

 

Promover alguém de dentro, a opção mais recomendada quando a companhia vai bem e quer manter a cultura? Feito.

Escolher alguém que já tenha se mostrado competente em tarefas de grande complexidade? Feito.

Monitorar o desempenho do escolhido durante anos, dando-lhe cada vez mais responsabilidades? Feito.

Passar o bastão num processo gradual? Feito.

Um processo assim, tendo seguido o mais rigoroso figurino da troca de comando numa empresa, teria que resultar numa sucessão perfeita, um daqueles casos para apontar como exemplo nas aulas de administração. No entanto, deu no que deu.

Apenas 11 meses depois de começar a dirigir a Walt Disney Company sem a supervisão de seu antecessor, e apenas cinco meses depois de ter o contrato de executivo-chefe renovado até 2025, Bob Chapek foi sumariamente mandado para casa, em novembro passado. Para seu lugar foi chamado Bob Iger, o executivo que o havia escolhido, treinado, orientado e supervisionado, antes de se afastar dele, supostamente decepcionado com sua atuação.

“Foi tudo feito de acordo com o manual”, diz Afonso Braga, engenheiro com MBA em administração pela Warwick Business School, no Reino Unido, e professor de estratégias de marketing da pós-graduação do Insper. “Mas houve dois fatores imponderáveis. O primeiro foi a pandemia, que pegou a Disney com um líder novo em uma situação completamente inusitada. O segundo foi mesmo a personalidade.”

Braga não fala apenas como observador teórico. Entre 1999 e 2001, ele foi diretor regional da divisão de parques temáticos da Disney no Brasil — a mesma que Chapek comandava globalmente.

“A Disney é uma empresa que contrata principalmente pela atitude”, diz Braga. Ele lembra até de uma anedota sobre isso. Um consultor encontra uma funcionária muito sorridente num parque e afirma: “A senhora sorri muito porque trabalha na Disney”. Ao que ela responde: “Não, meu senhor, eu trabalho na Disney porque sorrio muito”.

A empresa acredita que conhecimento e habilidades são mais fáceis de encontrar. Atitude é mais difícil. Por isso os processos de contratação são muito longos, até para estagiários. “Uma empresa assim precisa ter na liderança alguém que inspire nessa direção. E Chapek aparentemente deixou de corresponder”, opina.

Em tese, Iger é uma pessoa extremamente bem-preparada para o comando. Nos 15 anos em que liderou a empresa os resultados foram excepcionais, tanto os financeiros como os estratégicos. Fora isso, é um executivo carismático e bem-quisto pelos funcionários.

Porém, no alvorecer do seu segundo centenário, celebrado a partir do dia 27 de janeiro, a empresa enfrenta desafios complexos e um ambiente incerto. Prestes a completar 72 anos (em fevereiro), Iger tem uma lista de problemas prementes a resolver (alguns derivados até de acertos do passado):

 

⇒ A corrente do streaming mudou de direção. Até abril do ano passado, a coisa mais importante nesse setor era arrebanhar assinantes, na lógica de primeiro financiar o crescimento para depois desfrutar de sua posição de liderança para produzir lucros. Iger percebeu isso no final da década passada, não renovou o contrato que dava à Netflix direito exclusivo de distribuir seu conteúdo e, no final de 2019, lançou a Disney+.

Chapek aprofundou essa estratégia, dando prioridade ao serviço de streaming — a Disney+, o canal de esportes ESPN e o canal de filmes e séries Hulu. E vinha obtendo os resultados esperados. Contando os três serviços, a Disney ultrapassou a Netflix em número de assinantes (cada uma com mais de 200 milhões).

Em abril, porém, o cenário mudou. Quando a Netflix anunciou que no primeiro trimestre do ano havia perdido mais assinantes do que ganhado, analistas passaram a considerar que o espaço para crescer ficou mais limitado. Como consequência, o setor se tornou mais “normal”: a ênfase agora é na busca de lucratividade.

Chapek prometia que a Disney+ será lucrativa a partir de 2024, mas pouca gente acredita. A divisão reportou 1,5 bilhão de dólares de prejuízo no trimestre encerrado em outubro, mais que o dobro dos 630 milhões de dólares um ano antes.

Iger precisa reverter, ou no mínimo conter esses prejuízos, mas ao mesmo tempo tem que fazer frente a uma concorrência cujos bolsos são fundos: Apple e Amazon, para quem os prejuízos no streaming são bem mais aceitáveis, dado seu tamanho e o fato de que o serviço ajuda a angariar clientes para suas outras divisões.

 

⇒ A TV a cabo está perdendo força. Por mais difícil que seja a conversão para o streaming, não há outra solução, porque a TV a cabo, ainda a maior fonte de receita da empresa, está perdendo fôlego mais rapidamente do que se pensava. A audiência da rede de TV ABC, da Disney, no horário nobre caiu em cerca de um terço nos últimos quatro anos. Os consumidores estão trocando suas assinaturas de TV a cabo pelo streaming.

A perda de audiência é um duplo prejuízo: afeta a receita de assinaturas e também a de propaganda. Ao mesmo tempo, as programações não ficam mais baratas. Ao contrário. No caso da ESPN, que tem novos concorrentes na disputa pelos direitos de transmissão dos esportes (como Amazon e Apple), os custos ficaram significativamente mais altos.

 

⇒ Há riscos em manter o preço alto dos parques. Iger é supostamente mais preocupado do que Chapek com as reações dos consumidores aos aumentos de preços (dos ingressos, da hospedagem, da comida, do estacionamento) e restrições nos parques da Disney, uma solução para aumentar a arrecadação abalada pela pandemia da covid-19. “Mas é pouco provável que volte atrás nessas medidas”, diz Claudemir Oliveira, um ex-líder da estratégia de treinamentos da Disney que abriu a divisão de Parques e Resorts no Brasil e trabalhou por 15 anos na empresa, até 2010, quando fundou o Seeds of Dreams Institute (Sementes de sonhos) nos Estados Unidos. “A não ser que comecem a perder clientes para os concorrentes.”

Alguns analistas consideram, entretanto, que os aumentos podem não ser sustentáveis, principalmente se os Estados Unidos entrarem em recessão, como se cogita para este ano.

Os problemas com os parques se estendem para fora dos Estados Unidos. A Shanghai Disneyland, inaugurada em 2016, foi fechada e aberta várias vezes durante a pandemia. Esta crise tende a arrefecer, mas o faturamento do parque pode ser afetado pela cada vez mais tensa briga comercial entre a China e os Estados Unidos.

 

Bob Iger, presidente da Disney
Bob Iger: de volta à presidência da empresa, com novos desafios

 

⇒ É preciso animar a animação. Os desenhos animados são o coração da Disney e sustentam todo o resto, incluindo atrações dos parques e artigos para consumidores. Porém, os últimos lançamentos do estúdio não fizeram o sucesso esperado — nem mesmo Lightyear, que pertence à recordista franquia de Toy Story. Esta safra de animações de pouco sucesso é a primeira a não contar com o toque de John Lasseter, o fundador da Pixar que deixou a Disney em 2018 após queixas de que tocava demais nas pessoas sem o seu consentimento (um prenúncio de acusações de assédio).

Os filmes em geral também precisam de uma chacoalhada. Seria ótimo retomar o desempenho de 2019, quando a companhia teve sete filmes com mais de 1 bilhão de dólares de bilheteria (nenhum outro estúdio teve mais de um; a maioria não teve nenhum). A audiência dos cinemas, contudo, está em declínio e é pouco provável que volte aos níveis de antes da pandemia.

 

⇒A Disney tem que entrar no jogo. Revitalizar suas áreas tradicionais é essencial, mas não menos crucial é tornar-se relevante em conteúdo de games. Para as gerações mais jovens, videogames são o meio de diversão mais importante. Televisão está em último lugar, segundo uma pesquisa da consultoria Deloitte citada pela revista The Economist.

Nesta área, a Disney está no ponto em que estava no streaming antes da Disney+: licencia seus personagens para outras empresas. É provavelmente um erro, que a coloca atrás de concorrentes como Netflix, Amazon e Apple, cuja assinatura inclui games.

 

⇒ As dívidas impedem novas compras. Uma solução para entrar no mundo dos games, ou mesmo do metaverso, seria comprar empresas que já atuam no setor, para absorvê-las e criar cultura interna. Iger já usou essa estratégia, tanto para entrar no mercado do streaming quanto para fortalecer os estúdios (em especial com a compra da 21st Century Fox).

O problema é que a leva de compras em sua gestão anterior e a operação durante a pandemia deixaram a Disney com uma dívida de mais de 45 bilhões de dólares, um obstáculo significativo no caminho de novas aquisições.

 

⇒ Os problemas incentivaram o ativismo de acionistas. É natural que os investidores fiquem descontentes com prejuízos, e a Disney tem dado motivos para desgosto de sobra neste campo. A situação dá margem a acionistas ativistas — em geral líderes de fundos de investimento que pressionam por mudanças na estratégia empregada pelos executivos.

Um dos mais destacados nos últimos meses foi Daniel Loeb, do fundo Third Point. Ele foi um ácido crítico da gestão de Chapek, vocalizando exigências de corte de custos, recompra de ações e mudanças de estratégia, especialmente em streaming e TV a cabo.

Em agosto passado, após comprar mais 1 bilhão de dólares em ações da Disney, Loeb pressionou pela venda da ESPN. Fora do guarda-chuva da Disney, focada em valores de família, a rede teria mais flexibilidade para aproveitar oportunidades de negócio — como as apostas esportivas, um ramo que está explodindo atualmente.

Faz sentido, mas as razões para não vender também são fortes, de acordo com diversos analistas: a ESPN tem um potencial de crescimento de audiência enorme, especialmente se a Disney perseguir a estratégia de distribuição pela internet. Isso sem falar que a ESPN hoje gera uma boa parte do fluxo de caixa da companhia, que ajuda a conter as perdas na transição para o streaming.

No final de setembro, as duas partes chegaram a um acordo. Loeb afirmou ter “entendido o valor estratégico da ESPN para a Disney” e a Disney aceitou chamar para seu conselho de administração a executiva Carolyn Everson, indicada por Loeb.

Não demorou muito, no entanto, para surgir outro acionista ativista. Nelson Peltz, do fundo Trian Partners, iniciou uma campanha contra o que chama de baixa qualidade em governança corporativa, operações, estratégia e alocação de capital. Ele também exige representação no conselho, à qual a Disney resiste.

 

⇒ É preciso definir o que fazer com a Hulu. Mais ainda do que a ESPN, a Hulu é, na opinião de analistas, uma candidata à venda. “Seria uma boa ideia vendê-la”, disse Doug Creutz, analista sênior na consultoria Cowen, ao site Yahoo Finance. “Ela não é um produto com a marca Disney.” Em outras palavras, seu conteúdo (em especial filmes adultos, com cenas eróticas), não condiz com a imagem de conteúdo familiar que a Disney representa.

A Disney possui dois terços da Hulu. Segundo o acordo com a NBCUniversal (divisão da Comcast, que controla o outro terço), a Disney pode ser obrigada a adquirir o restante do capital por um mínimo de 27,5 bilhões de dólares já a partir do início de 2024.

A questão que se impõe a Iger é se a Disney pretende seguir uma estratégia múltipla no streaming com três canais independentes (a Disney+, a Hulu e a ESPN), como faz agora, ou adotar uma postura de colocar tudo sob um só guarda-chuva.

 

E a sucessão, ele vai acertar desta vez?

Finalmente, há a questão principal para Iger: formar um sucessor. De preferência, num processo que desta vez dê certo. É claro que o mandato de Iger ainda pode ser estendido (como foi mais de uma vez no passado), mas encontrar um sucessor, e logo, foi uma das condições impostas pelo conselho ao nomeá-lo.

Dois anos não é um tempo tão curto para fazer isso, mas a tarefa é dificultada pela falta de executivos considerados prontos para a responsabilidade. Alguns dos subordinados que Iger tinha até 2020 se aposentaram, como o ex-conselheiro geral Alan Braverman e a ex-chefe de comunicações Zenia B. Mucha.

Outros dois executivos que tinham plenas condições de assumir o comando da Disney, Thomas Staggs e Kevin Mayer, deixaram a empresa quando Chapek assumiu. Os dois fundaram juntos a empresa de produção de conteúdos Candle Media. Especula-se que um deles (ou ambos) tenha sido procurado pela Disney para voltar à empresa e assumir o posto de Chapek, mas isso seria complicado; a Disney teria que comprar a Candle Media — e a transação teria de ser aprovada pelo próprio Chapek, ainda executivo-chefe.

Um nome que ganhou certa força foi o da diretora financeira, Christine McCarthy, graças a seu espetacular trabalho tanto sob Iger como na condução do caixa da empresa durante a pandemia (ela teria engendrado maneiras de a companhia resistir a um ou dois anos sem receita nenhuma). Além disso, McCarthy exerceu um papel de liderança na queda de Chapek; ela teria deixado claro ao conselho que o executivo-chefe já não tinha o apoio de sua diretoria.

Uma das coisas que pesam contra ela, entretanto, é a idade. Aos 68 anos, ela é dois anos mais velha do que Iger era quando se começou a pensar em sua aposentadoria.

Restam ainda Dana Walden, a chefe do setor de TV da Disney, e Josh D’Amaro, presidente da divisão de parques. Analistas afirmam que nenhum dos dois está ainda pronto, mas seriam escolhas lógicas para Iger — e isso deve ficar claro em razoavelmente pouco tempo.

“Eu aposto no Josh”, diz Claudemir, com a experiência de quem trabalhou 15 anos na Disney, respondendo tanto a Iger quanto a seu antecessor, Michael Eisner. “Por quê? Ele é o chefe da divisão de Parques e Resorts, a maior de todas da companhia, com quase 80% dos 220 mil colaboradores. Além disso, é um cara extremamente carismático.”

Seria para Iger uma escolha ao mesmo tempo igual e oposta à anterior. Igual porque Chapek também vinha da divisão de parques. Oposta porque Iger achou, lá por volta de 2018, que a Disney precisava de alguém com estilo mais ríspido e pouco sentimental, como Chapek, para dar seguimento à sua transformação em uma empresa de streaming.

A tarefa de encontrar e preparar um sucessor, portanto, será talvez a mais complicada para Iger. Isso supondo que ele realmente queira fazer isso. Ao New York Times, Creutz, da consultoria Cowen, declarou: “O modo como as coisas se passaram dá no mínimo alguma impressão de que Iger, e não o conselho de administração, tem a palavra final na companhia, e sua volta pode tornar uma verdadeira transição de poder para seu sucessor ainda mais difícil.”


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