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A Tesla está virando uma empresa “normal”?

Do ano passado para cá, a margem de lucro da fabricante de carros elétricos caiu para menos da metade. Pode ser apenas parte da estratégia de se tornar a maior montadora do planeta — ou sinal de que já não dá para ignorar os concorrentes

Do ano passado para cá, a margem de lucro da fabricante de carros elétricos caiu para menos da metade. Pode ser apenas parte da estratégia de se tornar a maior montadora do planeta — ou sinal de que já não dá para ignorar os concorrentes

 

David A. Cohen

 

Que Twitter, que nada. Quem acredita que a rede social rebatizada como X seja o grande problema do bilionário Elon Musk — por ter perdido pelo menos dois terços de seu valor de mercado desde que ela a comprou, em outubro do ano passado —, é porque não está prestando muita atenção na Tesla. A fabricante de automóveis, base de sustentação da fortuna de Musk, está passando por um momento bastante delicado.

Claro, a maioria dos empresários do planeta Terra adoraria viver um momento delicado como o dele: em outubro, a Tesla relatou um lucro líquido de 1,9 bilhão de dólares no terceiro trimestre deste ano. O problema é que isso significou uma queda de 44% em relação ao mesmo período do ano passado, quando os lucros foram de 3,3 bilhões de dólares.

E não é uma queda pontual. A margem de lucro da empresa, que andava pelos 17% no ano passado — uma taxa exuberante, só atingida entre montadoras pela fabricante de luxo Porsche, que faz menos de 1 milhão de carros por ano —, caiu para 11,4% no início deste ano, depois para 9,6% no segundo semestre e agora para 7,6%, em linha com as montadoras tradicionais.

“A concorrência finalmente chegou”, resume Carlos Caldeira, professor de estratégia e coordenador do Centro de Estudos em Negócios (CENeg) do Insper. Até que demorou. “A Tesla teve uns bons cinco ou seis anos praticamente sozinha no mercado de veículos totalmente elétricos.”

 

A primeira hipótese

A grande explicação para o tombo na margem de lucro é a redução significativa de preços que a Tesla promoveu desde o ano passado, da ordem de 25%. Mas… e a explicação para a explicação? Por que a Tesla decidiu baixar tanto os preços dos seus carros?

“Só há duas hipóteses”, afirma Caldeira. “A primeira é que Musk esteja cortando os preços para conquistar mercado. Quer ultrapassar a Toyota em volume de vendas e, consequentemente, em receita.”

De fato, Musk tem a meta declarada de produzir 20 milhões de automóveis por ano a partir de 2030, o dobro do que a Toyota fabrica hoje em dia. Além disso, o plano é estabelecer a Tesla como o principal sistema de carros de direção autônoma do mundo.

É a crença nesses dois objetivos que justifica um valor de mercado de 780 bilhões de dólares para a Tesla — mais ou menos a soma das próximas nove maiores montadoras de capital aberto. Afinal, chegar lá teria como consequência uma receita gigantesca por vários anos.

O segundo objetivo (dominar o mercado de direção autônoma) está razoavelmente bem encaminhado, pelo menos por enquanto. “A Tesla mantém a liderança sobre seus rivais em baterias, software e produtividade nas fábricas”, afirmou o analista Philippe Houchois, do banco de investimentos Jefferies, para a revista The Economist, em julho.

Um sinal positivo nessa direção foi a decisão de Ford, General Motors e Mercedes Benz, junto com outras fabricantes, de abandonar seus plugues próprios para recarregar os automóveis elétricos em favor do plugue desenhado pela Tesla (o que deve acontecer a partir de 2025).

A rendição ao padrão da Tesla tem vários motivos, como a inconsistência na qualidade de alguns plugues, mas o principal é que a empresa de Musk saiu na frente e dominou o território americano: ela tem cerca de 20.000 postos de carga rápida para carros, dois terços do total, a maioria em locais estratégicos (praticamente fechados à concorrência) como shoppings, restaurantes etc. Além disso, o sistema é mais inteligente: o carregador é menor, mais leve, mais fácil de utilizar… e reconhece o carro que está sendo abastecido, cobrando a fatura diretamente do cartão de crédito do dono.

Quanto à meta de se tornar a maior fabricante de carros do mundo… ela impõe alguns dilemas. Inclusive existenciais. “A Tesla deixou de ser uma startup, está ficando cada vez mais parecida com as demais fabricantes”, aponta Caldeira. “Como tal, vai enfrentar os problemas comuns às montadoras: competição, exigência de renovação dos modelos de carros, impacto das taxas de juros.”

Quando nasceu, a Tesla estava situada no nicho dos carros de luxo, muito, muito caros. Fez um sucesso tremendo, em especial na Califórnia, onde arrebanhou uma legião de fãs/consumidores atraídos pela promessa de um carro ecológico e, ao mesmo tempo, confortável e que confere status. Para esse nicho, as margens de lucro são em geral muito generosas.

“O problema da estratégia de nicho é que ela sempre tem um teto bem mais baixo que o mercado em geral”, diz Caldeira. Se quiser manter o crescimento, essencial para conservar as ações da companhia valorizadas, em algum momento você tem que sair do nicho.

Cybertuck
A picape Cybertruck chama a atenção dos consumidores. Se vai vender bem, são outros quinhentos

 

Dois caminhos: o Cybertruck e o Modelo 2

O primeiro passo para sair do nicho é o corte nos preços. O modelo Y, o SUV mais barato da Tesla, está sendo vendido agora a 44.000 dólares (ainda passível de um desconto de cerca 7.500 dólares pelos incentivos do governo em prol da energia limpa). Ainda é pouco. Ao pular para uma camada mais ampla (e menos financeiramente privilegiada) da população, a compra a crédito se torna mais relevante — e, portanto, o aumento das taxas de juros tem um efeito significativo nas vendas.

Não bastasse isso, a Tesla ainda enfrentou fechamento de fábricas temporários em Austin, no Texas, e em Shanghai, na China, para reestruturar suas linhas de montagem. Isso, por si só, já levaria a uma queda nas vendas; mas ela foi bem maior do que os analistas esperavam. Como consequência, a participação da Tesla no mercado de veículos elétricos dos Estados Unidos caiu dos 60% do início do ano para 50% no terceiro trimestre.

Há uma abertura para reverter a queda nas vendas, pelo menos em parte: a picape Cybertruck tem previsão de chegar ao mercado neste final de ano. Contudo, o próprio Musk alertou, em conferência com investidores, que “haverá desafios enormes para alcançar um bom volume de produção e tornar o Cybertruck lucrativo”. O prazo dado pelo próprio Musk foi de pelo menos 18 meses.

Mesmo que seja um sucesso estrondoso, o mercado para caminhonetes pode ser mais limitado do que se considerava (concorrentes como a Ford, Rivian e GM andaram relatando vendas aquém do esperado de picapes elétricas). E o Cybertruck, com seu desenho futurista, angular e um bocado diferente das picapes usuais, talvez tenha que vencer resistências demais. “Nós cavamos a nossa própria sepultura com o Cybertruck”, afirmou Musk, em um de seus rompantes de sinceridade/humilde mesclada com desafio arrogante.

A picape é uma mostra de que a Tesla, por mais que precise adotar parâmetros da indústria tradicional, ainda ambiciona revolucionar os mercados em que toca. Não é só o design aparentado a tanques militares; o material é uma ousadia: só um carro até hoje foi fabricado em massa com aço inoxidável: o DeLorean, famoso por servir de transporte através do tempo na franquia De Volta para o Futuro. Não é um exemplo auspicioso. A DeLorean foi à falência depois de vender menos de 10.000 automóveis.

A vantagem do chassis de aço inoxidável é que ele resiste melhor à corrosão. E não precisa ser pintado. A desvantagem é que o material é muito mais difícil de ser moldado e soldado. Também é mais pesado, o que resulta em menor autonomia.

Musk afirma que o modelo já nasce um sucesso. Segundo a Tesla, mais de 1 milhão de pessoas se inscreveram para comprar a picape. As taxas de juros mais altas, porém, podem ser um empecilho, adverte o próprio Musk, porque tornam as prestações mais altas, reduzindo a capacidade de compra dos norte-americanos.

Tudo isso torna mais complicado atingir o primeiro objetivo (vender mais carros que qualquer outra montadora). Mas o foco é esse. No meio do ano, a Tesla anunciou planos de expansão de sua fábrica na Alemanha: quer dobrar sua capacidade de produção ali, para 1 milhão de carros por ano. Também tem planos de lançar um carro de baixo custo, com preço inicial de 25.000 dólares, a ser lançado dentro dos próximos dois anos.

O “Modelo 2”, como o carro está sendo chamado extraoficialmente, poderia ajudar a Tesla a conquistar mercados além da América do Norte, Europa e China, em países onde a disputa de mercado é bastante guiada por preço. O contraponto é que esse aumento de vendas de modelos mais baratos certamente levará a uma redução ainda maior das margens de lucro.

 

A segunda hipótese

E aí chegamos à segunda hipótese levantada por Caldeira, do Insper. Longe de ser excludente, ela complementa a primeira: Pode ser que a Tesla esteja reduzindo os preços porque os concorrentes chegaram perto e ela não tem mais como cobrar o que cobrava”.

Em 2008, quando se tornou executivo-chefe da Tesla (uma empresa criada cinco anos antes por dois engenheiros americanos), Musk tinha na prática um monopólio — não por cerceamento, mas por completo desinteresse dos concorrentes, já que quase ninguém acreditava no potencial de mercado dos carros elétricos. Assim, quando o Modelo S foi lançado, em 2013, reinava absoluto.

O cenário é radicalmente diferente hoje. Os consumidores hoje podem optar entre por volta de 500 modelos de veículos elétricos, de dezenas de marcas. Estima-se que outros 400 estejam sendo lançados desde meados deste ano até o final do ano que vem.

De um lado, há as fabricantes tradicionais, como BMW, Mercedes, Hyundai, GM e outras, que têm introduzido cada vez mais modelos de carros elétricos no mercado. De outro, há as startups, principalmente chinesas, que almejam se tornar a próxima Tesla — e têm o apoio político e financeiro do governo chinês.

Nessa profusão de alternativas, é difícil imaginar que a Tesla consiga aumentar sua participação de mercado. Mesmo para manter posição, ou recuar pouco, ela precisa adotar novas estratégias.

Uma delas é a prática comum na indústria de atualizar seus modelos. “Quando não tinha concorrente, qualquer modelo era uma maravilha”, diz Caldeira. “Agora precisa se preocupar em modificar os carros.”

Os dois carros-chefes da Tesla estão ficando velhos. O Modelo Y tem três anos; o Modelo 3 já tem seis. É muito em um mercado em que a novidade sempre contou muito. A regra geral é fazer ajustes no modelo a cada dois ou quatro anos e redesenhá-lo inteiramente a cada quatro a sete anos. O Modelo 3 está agora apenas passando por um pequeno ajuste de estilo.

Até hoje, a Tesla sempre contou com atualizações de software, que automaticamente conferem ao carro algo a mais — uma funcionalidade melhor de direção autônoma ou avanço de comunicação. Foi o suficiente para sua base de fãs, mas é pouco para um público maior.

Assim como também deixa a desejar a estratégia de comunicação baseada apenas na fama que a Tesla já adquiriu ou aos tuítes do próprio Musk em suas redes sociais. Na conversa com investidores que teve em outubro, Musk foi pressionado a recorrer a propaganda, como fazem seus concorrentes.

Surpreendentemente, Musk foi receptivo à ideia. “O que você está dizendo tem algum mérito”, retrucou ao investidor Gary Black, que comanda um fundo de Chicago, “e nós vamos tentar um pouco de publicidade e ver como isso evolui”.

Outras práticas comuns à indústria são mais desafiadoras para a Tesla. De certa forma, está em curso para os veículos elétricos algo parecido com o que houve no início da produção dos automóveis. Henry Ford saiu na frente com uma estratégia de massificação baseada na linha de montagem de seu modelo T, extremamente eficiente, que dava aos consumidores a opção de escolher “qualquer modelo, desde que fosse preto”.

Alguns anos depois, a General Motors capitaneou a tomada do mercado com ofertas diferentes para diversos tipos de público. Olhando pelo viés da história, oferecer opções pode parecer a resposta certa. Mas isso implica abrir mão de um naco de eficiência operacional – que também se reflete nas margens de lucro.

Tanto é assim que, se de um lado a Tesla adota algumas práticas da indústria tradicional, de outro as montadoras tratam de copiar sua produção integrada.

 

Elon Musk
O empresário Elon Musk: há motivos para se preocupar com a concorrência chinesa?

 

E o futuro?

Em linhas gerais, tanto a concorrência quanto a vontade de ganhar mercado estão corroendo as margens de lucro da Tesla. “Se estiver reduzindo preços mais porque quer vender mais, tudo bem, faz parte do jogo”, avalia Caldeira. Se o principal motivo é a concorrência, a situação é menos confortável.

Em grande medida, esse desconforto vem da China. A montadora BYD, que produz suas próprias baterias e já tomou a liderança absoluta em vendas de carros elétricos no mundo, triplicou seus lucros na primeira metade deste ano, para 1,5 bilhão de dólares, aponta o jornal The New York Times. E está apenas esquentando os motores. A empresa encomendou recentemente uma frota dos maiores navios transoceânicos que existem para exportar seus carros para o mundo inteiro.

Isso não quer dizer, obviamente, que o futuro esteja determinado. Não há sequer segurança de que os carros elétricos vão de fato dominar o mercado automobilístico. Embora sejam os que mais vendem hoje, a Toyota, por exemplo, ainda mantém um pé na barca dos carros híbridos.

Ela argumenta que os híbridos podem ajudar mais rapidamente a reduzir emissões de dióxido de carbono, porque os carros elétricos movidos a bateria ainda são caros demais para muitos consumidores — sem falar no processo de produção e na escassez de materiais críticos para a fabricação de baterias.

Alguns analistas concordam. Preveem que a venda de carros híbridos vá ter um repique se os consumidores acreditarem que a rede de carregamento de baterias não seja tão confiável ou eficiente.

Por outro lado, talvez o mercado de venda de automóveis seja apenas parte de uma realidade bem maior. “Pode-se argumentar que o que vai valer dinheiro mesmo é a rede de abastecimento”, arrisca Caldeira. Neste caso, a Tesla está muito bem-posicionada. “Ou um futuro de serviços”, complementa.

Há muito se afirma que o transporte tende a deixar de ser um mercado de bens para se tornar um mercado de serviços. A contabilidade de quem vende mais carros perderia importância em relação à de quem faz mais viagens.

Essa história não tem avançado muito. Ela está ligada, primordialmente, a progressos na inteligência artificial e nos sistemas de direção autônomos; e à regulamentação de viagens sem motoristas.

A Tesla, em suma, perdeu grande parte de sua vantagem em relação à concorrência. E não é seguro dizer que vá conseguir se estabelecer como a maior montadora do planeta (algo que sustenta o seu valor de mercado).

Mas esta não é uma corrida normal, em que vence o melhor carro. É uma disputa em que os contendores precisam correr e, ao mesmo tempo, construir a estrada pela qual pretendem passar.

 

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