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Pesquisadores apresentam as evidências do livro “Números da Discriminação Racial”

O lançamento do Núcleo de Estudos Raciais (NERI) do Insper reuniu autores, organizadores e apoiadores da obra que contribui para o debate racial no Brasil

O lançamento do Núcleo de Estudos Raciais (NERI) do Insper reuniu autores, organizadores e apoiadores da obra que contribui para o debate racial no Brasil

 

Leandro Steiw

 

O lançamento do livro Números da Discriminação Racial: Desenvolvimento Humano, Equidade e Políticas Públicas, do Núcleo de Estudos Raciais (NERI) do Insper, realizado em 27 de outubro, lotou o Auditório Steffi e Max Perlman. A obra espelha-se na própria essência do núcleo. A ideia era ajudar no debate racial no Brasil com dados, números e evidências empíricas, como já é feito há mais de 60 anos por economistas nos Estados Unidos, disse Michael França, coordenador do NERI e organizador e autor do livro. A intenção inicial era modesta, mas a produção cresceu até o ponto de se tornar peça importante no debate nacional sobre raça e gênero.

A ajuda de parceiros como a Open Society Foundations e o Instituto Ibirapitanga deu fôlego à equipe — inclusive com a contratação de mais pesquisadores. À medida que os capítulos ficavam prontos, França se surpreendia com o resultado. “Comecei até a ficar preocupado, porque há muito livro bom que às vezes não ganha visibilidade”, disse França, na abertura da programação (o evento está disponível na íntegra neste link). Recursos da Fundação Lemann possibilitaram outros dois eventos de lançamento, em Brasília e no Rio de Janeiro. Toda a receita gerada pelas vendas do livro será doada para o programa de bolsas étnico-raciais do Insper.

O livro apresenta a evolução das desigualdades raciais ao longo do tempo, relacionadas a mercado de trabalho, educação, violência e representação política. As evidências não são animadoras. “Em muitas áreas, avançamos muito pouco ou quase nada”, afirmou França. “Existe um pequeno grupo que está ascendendo socialmente, via cotas e ações afirmativas, mas há uma grande massa de pessoas que está ficando muito para trás. Se não começarmos a repensar nossos modelos de políticas públicas, esse grupo vai ficar só para trás.”

Esta é um das contribuições do título: embasar políticas públicas por meio de números e metodologias conhecidas e testadas. França acredita que a obra será útil não só para pesquisadores da Economia e das Ciências Sociais, mas também para professores, estudantes e gestores públicos. Para Lizandra Magon de Almeida, diretora editorial da Editora Jandaíra, o livro corrobora o que as lideranças do movimento negro, entre outros, reafirma há anos sobre a persistência da desigualdade racial. “Ele dá um passo adiante e apresenta elementos fortes e incontestáveis para pautar políticas públicas fundamentais para mudar a realidade cruel do Brasil”, disse Lizandra.

Pedro Abramovay, vice-presidente de programas na Open Society, chamou a atenção para a escolha que os cursos de Economia fazem na interpretação dos dados. “Não há nada de neutro e involuntário no olhar e no recorte escolhido”, afirmou Abramovay. “É uma opção política da branquitude que controla esse tipo de debate científico no Brasil e que tornou o debate impermeável na questão racial. Em qualquer área do conhecimento, esconder o recorte racial, como o Brasil fez durante muito tempo, é algo que nos prejudica enquanto país e prejudica a possibilidade de enfrentar a questão. Fico feliz que o livro permita que se faça cada vez mais esse debate com recortes de raça, sem medo e sem querer esconder e escamotear a questão.”

Na opinião de Daniel De Bonis, diretor de conhecimento, dados e pesquisa da Fundação Lemann, os dados e diagnósticos da publicação do NERI tem o potencial de transformar políticas públicas e a forma como se olha para os problemas no Brasil. “Sabemos que publicar o livro é um começo e que o interesse é ajudar a disseminar as ideias e vê-las traduzidas em impactos reais nas políticas públicas”, disse De Bonis. “A Fundação Lemman quer trazer esse debate para a educação pública, onde estão alguns dos números mais dramáticos que aparecem no livro e nos estudos que têm sido feitos nesse tema.”

 

Corpos estereotipados

Em consenso, a equipe do NERI decidiu que a imagem da capa não deveria lembrar a rigidez de um manual de Economia. A pesquisa por ilustradores levou ao trabalho da artista visual e designer Mayara Smith, que revisitou o seu projeto Amas de Leite, série de desenhos feita em 2018 e 2019. “Foi a partir das imagens de amas de leite que comecei a pensar na figura e na identidade da mulher negra, que deu origem aos meus trabalhos atuais”, contou Mayara. “São imagens de autorretrato para tentar recuperar e recompensar esse imaginário de mulheres negras criado a partir do olhar de pessoas brancas. Há uma série de estereótipos que os nossos corpos carregam até hoje.”

Alysson Portella, pesquisador do NERI e organizador e autor do livro, expôs alguns dados sobre diferenças salariais. Desde a década de 1980, na média, a disparidade entre mulheres brancas e homens brancos diminuiu consideravelmente. Mas homens negros e mulheres negras ainda ganham menos que homens brancos.

Quando se analisam pessoas de raças e gêneros diferentes com perfis socioeconômicos similares, a tendência de igualdade salarial se esvai. O capítulo apresenta os fatores, com uma curiosidade. “Cerca de 15% a 20% das desigualdades raciais entre homens brancos e homens negros, simplesmente não sabemos o que são e, possivelmente, são discriminação”, disse Portella. No caso das mulheres negras, acumulam-se duas camadas de discriminação: raça e gênero.

Na educação, os grandes progressos em termos de universalização do ensino básico não foram acompanhados no acesso ao ensino superior. “As cotas raciais representam só 25% das matrículas do ensino superior”, explicou Portella. No 9º ano do ensino fundamental, as diferenças de aprendizagem de português e matemática entre estudantes brancos e negros aumentaram nos últimos 20 anos e perduram mesmo entre adolescentes que frequentam a mesma escola e têm características socioeconômicas similares.

Essa desigualdade influencia as oportunidades desses jovens futuramente, no mercado de trabalho, e impõe grandes desafios ao Brasil. “Como vamos solucionar essas diferenças no acesso à educação, algo essencial para podermos acabar com as desigualdades raciais neste país?”, questionou Portella. Se depender só de representação política, os obstáculos para a solução se tornam intransponíveis. Há estados que não elegeram nenhuma pessoa negra em 2018, no pleito para governadores, senadores e deputados, comentou o pesquisador.

 

Sinônimos imperfeitos

Coautor de quatro capítulos e pesquisador assistente do NERI, Fillipi Nascimento destacou a importância de o leitor entender que não existe uma única forma de interpretar o problema da discriminação racial. Por isso, o livro define os conceitos de raça, racismo, desigualdade, discriminação, viés implícito, viés explícito e fluidez racial. “Às vezes, usamos conceitos de discriminação e desigualdade como se fossem sinônimos, só que existem particularidades de cada uma das situações”, afirmou Nascimento. “Reconhecer os mecanismos que fazem com que as discriminações operem ajuda a endereçar maior esforço no desenvolvimento de políticas públicas de enfrentamento.”

Alisson dos Santos, pesquisador do NERI e coautor do capítulo sobre violência, analisou como os índices de mortes de pessoas negras no Brasil demonstram a desigualdade racial. São 37 vítimas negras a cada 100 mil habitantes — número que se mantém relativamente constante nas últimas décadas. Entre a população branca, a taxa decaiu de 15 para nove vítimas a cada 100 mil habitantes. Por sua vez, entre indivíduos de 15 a 29 anos, 80% dos mortos por violência são negros. “Estamos punindo o jovem na medida em que não tentamos achar soluções práticas que o mundo tem apresentado e que podem funcionar para resolver esse problema”, disse Santos. “Essa estatística não tem volta. Uma vez morto, acabou a vida.”

Professora da Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas, Fernanda Estevan comentou o capítulo sobre ações afirmativas, do qual é coautora. “As políticas de cotas não só aumentaram a diversidade nas universidades brasileiras, mas também alteraram a escolha de cursos dos jovens que saem do ensino médio”, afirmou Fernanda. “A literatura tem mostrado que os impactos para os beneficiários das políticas são enormes e os custos para os não beneficiários talvez não sejam tão grandes. Outra mensagem dessas pesquisas é que, se o objetivo das políticas é mexer na diversidade racial, elas precisam ter um componente racial, porque o componente social sozinho não dá conta de aumentar a diversidade racial.”

Rodrigo Soares, vice-presidente acadêmico do Insper e coautor do capítulo sobre persistência histórica da desigualdade racial, lembrou que a renda e a inserção no mercado de trabalho estão correlacionadas com o acesso à educação e a bens públicos como transporte e saúde. “A população com menos representação política terá menor capacidade dentro do sistema político de demandar serviços e bens públicos, que beneficiariam essa população”, disse Soares. “Diante dessa persistência intergeracional, os pobres tendem a ficar pobres e os ricos tendem a ficar ricos. Quando interage com esse mecanismo, a discriminação torna o movimento socioeconômico ainda mais difícil para a população negra.”

Pesquisador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e coautor do capítulo sobre acesso à saúde, Rony Coelho citou dados sobre a discriminação no atendimento médico. Entre os brasileiros que não conseguiram qualquer atendimento, há 37% mais pessoas pretas e 50% mais pessoas pardas na comparação com as brancas, independentemente do número de tentativas. “Chamam a atenção os relatos de discriminação sofrida nos serviços de saúde pela população preta em todas as faixas de renda”, afirmou Coelho. “Ao longo dos últimos 30 anos, houve muitos avanços na universalização do Sistema Único de Saúde (SUS), mas o perfil epidemiológico das pessoas que ainda não tiveram acesso indica que a maior parte é negra.”

Naercio Menezes Filho, diretor do Centro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (CPAPI) do Insper, é coautor do capítulo sobre desigualdade racial na primeira infância. “Vários estudos científicos mostram que desenvolvemos as habilidades socioemocionais e cognitivas até 6 anos de idade, e crianças que passam por situação de estresse tóxico terão mais dificuldades em se desenvolver”, disse Menezes. “A pobreza extrema é maior entre as crianças de famílias negras, então as crianças de até 6 anos que crescem nessas famílias estão enfrentando mais dificuldades em relação às famílias brancas. Se agirmos logo no começo da vida, a possibilidade de eliminar essas diferenças no futuro aumenta muito.”


Confira as fotos do evento de lançamento aqui.

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