Óculos, relógios e até broches inteligentes. O desenvolvimento de novas tecnologias pode nos livrar da dependência das telas e ameaçar o domínio do aparelho da Apple — e dos smartphones em geral
David A. Cohen
Se há um ponto na história em que a Apple embicou no caminho de se tornar uma empresa de 3 trilhões de dólares, pode-se dizer que foi no lançamento do iPhone, em junho de 2007. O aparelho não só se tornou um campeão de vendas que sustenta a empresa e sua mística de inovação, como também pavimentou o mercado de smartphones.
O iPhone é responsável por cerca de metade da receita da Apple. Agora em sua 15ª versão já começam, no entanto, a aparecer sinais de que esse motor da empresa pode declinar. Não por causa dos problemas de superaquecimento que o aparelho demonstrou: há queixas de que os modelos Pro e Pro Max atingem temperaturas de quase 40ºC, e a Apple afirmou que uma atualização do software iria resolver a questão.
Tampouco pela queda das vendas no fantástico mercado chinês, o terceiro em importância para a Apple, depois dos Estados Unidos e da Europa — de acordo com duas empresas de análises de mercado, Counterpoint Research e Jefferies, o modelo deste ano está com vendas cerca de 5% abaixo do registrado pelo iPhone 14 no ano passado. Mas os motivos podem ser a situação econômica menos pujante da China ou o aumento da rivalidade entre os dois países (o Mate 60, novo aparelho da Huawei, empresa que sofre sanções nos Estados Unidos por alegadamente espionar para o governo chinês, está vendendo muito bem na China).
Por mais que sejam incômodos, esses dois obstáculos são parte dos negócios. A verdadeira ameaça para o iPhone vem de outra parte: o desenvolvimento de tecnologias concorrentes.
“Já se fala há alguns anos de outras tecnologias, como os óculos, substituírem os smartphones”, diz Luciano Soares, professor de Engenharia e coordenador do Laboratório de Realidade Virtual e Jogos Digitais do Insper. “É algo que de fato pode acontecer. Talvez demore 20 anos — mas várias tecnologias estão ficando melhores.”
Há quem prediga um período bem menor para a aposentadoria dos smartphones. “Estamos rumando para um futuro em que a tecnologia ‘vestível’ (wearable) vai se tornar o meio pelo qual interagimos com o mundo dos computadores”, diz um artigo de Wesley Diphoko, editor da versão sul-africana da revista Fast Company. “A presença de uma tela em um smartphone está lentamente se tornando irrelevante. Essa mudança pode levar dez anos para se tornar realidade, mas o processo de fazer com que os usuários a adotem está começando agora.”
A própria Apple está investindo nesse campo. Se o iPhone vai ser ultrapassado, a empresa quer ser ela a dominar a próxima tecnologia. Sua aposta mais forte parece ser o Vision Pro, seu óculos que mistura realidade virtual e realidade aumentada (RV e RA). Não ele sozinho. A empresa está trabalhando para que vários de seus dispositivos atuem em conjunto. O novo modelo de iWatch, o relógio da Apple, tem uma característica que já aponta nessa direção: a capacidade de enviar um comando com um duplo toque dos dedos indicador e polegar, sem precisar encostar no relógio.
Nessa futura interação de dispositivos, o iPhone — o aparelho desenhado para ser um faz-tudo — provavelmente se tornará irrelevante.
É claro que a Apple não quer perder sua posição dominante. Mas nada garante que a empresa vá se manter na dianteira. O Google já enxergou uma oportunidade de ultrapassar tanto a Apple quanto a Samsung no mercado de smartphones — e se posicionar para o que quer que venha em seguida. Seus modelos de telefone mais recentes, o Pixel 8 e o Pixel 8 Pro, se apoiam fortemente em inteligência artificial (IA).
É uma área em que o Google está bem na frente da Apple. Com o novo smartphone, fotógrafos podem, por exemplo, “puxar” objetos para fora de uma fotografia e deixar que a IA generativa preencha um fundo novo. Também podem tornar mais nítidos objetos desfocados. O Pixel também é capaz de transcrever e até sumarizar áudios. Ou traduzir a fala do usuário para outra língua.
“Parece estar surgindo um consenso, vindo de diferentes lugares do mundo da tecnologia”, disse o jornalista e escritor Brad Stone em sua newsletter da revista Bloomberg. “O ChatGPT e outros serviços de IA generativa podem rapidamente se tornar a pedra fundamental de um novo tipo de aparelho, com uma interação completamente diferente entre seres humanos e computadores.”
Os novos óculos da Meta (empresa mãe do Facebook) vão nesse sentido. Mais do que uma nova versão do Quest, seus óculos de RV, eles têm alto-falantes, microfones e uma câmera e podem transmitir vídeos e fazer chamadas telefônicas. E vêm, é claro, com a Llama (a assistente de IA da Meta) embutida.
Uma primeira versão desses óculos, chamada de Ray Ban Stories, havia sido lançada em 2021 e foi um fiasco de vendas. A diferença agora é a IA.
Talvez seja um pouco precipitado apostar nos óculos. “Essa ideia de que os óculos vão substituir os smartphones já foi promovida pela Microsoft há alguns anos”, diz Soares.
Em 2017, o brasileiro Alex Kipman, um dos inventores dos óculos de realidade mista (RA e RV) HoloLens, da Microsoft, disse à Bloomberg: “O smartphone já morreu, as pessoas só não perceberam ainda”. Na mesma época, o executivo-chefe da Microsoft, Satya Nadella, dizia que o próximo telefone lançado pela empresa “pode não se parecer com um telefone”.
Seis anos depois, essas previsões ainda não se concretizaram. “As pessoas não gostam de usar coisas na cara”, opina Soares, do Insper. “As próprias TVs em 3D, que exigiam uso de óculos, foram um sucesso que não durou muito.”
Soares não descarta a substituição dos smartphones, mas estabelece uma série de condições no meio do caminho. “Um primeiro passo é que os óculos de RA sejam mais leves e compactos”, diz. Um segundo, mais importante, é resolver a questão das baterias.
“Elas pesam muito e duram pouco”, resume ele. “Hoje a estratégia é colocá-las na nuca, como o Quest Pro. Ou incorporar uma bateria externa ligada aos óculos por um cabo, como o Magic Leap One (da companhia Magic Leap) ou o Apple Vision Pro.” Essa solução, acredita Soares, é pouco prática para um uso regular.
Um outro ponto crucial é a interação com as mãos, de forma que as pessoas possam prescindir do teclado de um smartphone ou de qualquer tipo de controle. Mas isso está progredindo bem, avalia.
Outro avanço necessário é na capacidade de detectar a posição, força, ângulo do aparelho. “O rastreamento de posição está cada vez melhor. Mas não sei se teremos IMUs (unidades de medição inercial) precisas para uso doméstico tão cedo.”
Os óculos são uma possibilidade, mas estão longe de ser a única alternativa para substituir os smartphones. Nem as fabricantes tradicionais são as únicas que podem promover este salto. Conforme noticiou o jornal Financial Times no final de setembro, a OpenAI (criadora do ChatGPT) se uniu à LoveFrom, empresa do aclamado designer Jony Ive, ex-Apple, para criar uma empresa que construa o “iPhone da inteligência artificial”. Há indicações de que o grupo SoftBank, do investidor japonês Masayoshi Son, está pronto para investir 1 bilhão de dólares na iniciativa.
Também saídos da Apple, o designer Imran Chaudhri e a engenheira Bethany Bongiorno estão criando um outro tipo de aparelho. Sua startup, a Humane, demonstrou um protótipo de um broche para usar na roupa, que tem uma câmera e um alto-falante embutidos. Em uma demonstração na plataforma de conferências TED, disponível no YouTube, o aparelho traduz a fala de Chaudhri para o francês, atende uma chamada telefônica, projeta um texto em sua mão com um projeto a laser e o aconselha a não comer um doce por causa de sua dieta.
A empresa já arrecadou 230 milhões de dólares (um dos investidores é a Microsoft; outro é Sam Altman, fundador da OpenAI) e o Humane AI Pin pode começar a ser vendido em novembro.
Há ainda uma série de outras tecnologias e soluções em desenvolvimento para nos libertar das telas. Em 2018, pesquisadores da Universidade Carnegie Mellon apresentaram o protótipo de um relógio que vem com um projetor. Ele permite que o usuário tenha acesso a um teclado e outros controles em seu antebraço, além de assistir a vídeos na palma da mão ou numa parede perto.
Uma outra possibilidade é uma lente de contato, a Mojo Lens, que vem com diversos sensores e a vantagem de seguir os seus olhos instantaneamente, permitindo acessar diferentes tipos de informação apenas mudando a direção do olhar.
Mesmo sem nenhuma dessas alternativas funcionando a contento, os fabricantes de smartphones já lidam hoje com uma queda de vendas de 20% desde 2021, de acordo com a Counterpoint Research.
Como diz Brad Stone, é um impulso e tanto para posicionar a IA como o próximo grande sucesso. “Olhar para as LLM (large language models, os algoritmos de IA que usam aprendizado de máquina para gerar novos conteúdos) como chatbots é o mesmo que definir os primeiros computadores como calculadoras”, escreveu Andrej Karpathy, um executivo da OpenAI, no X, antigo Twitter, de acordo com Stone. “Estamos vendo emergir um paradigma de computação completamente diferente.”