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Um problema do tamanho da China: uma Encol em cada esquina

O governo do país asiático tenta esvaziar — sem deixar que estoure — a bolha imobiliária que afeta quase um terço de sua economia

O governo do país asiático tenta esvaziar — sem deixar que estoure — a bolha imobiliária que afeta quase um terço de sua economia

 

David Cohen

 

“Compre um imóvel, depois compre um segundo. Se você já tem um segundo, compre um terceiro. Comprou um terceiro? Então compre um quarto!”

A exortação acima, feita na segunda quinzena de agosto por Deng Bibo, secretário do Partido Comunista Chinês em uma cidade da província de Hunan, viralizou nas redes sociais do país. Não exatamente com aplausos nem ufanismo. A maioria dos comentários era em tom irônico, alguns até revoltados.

O apelo enfático, em tom de quase desespero, e a reação indignada, beirando a revolta, são duas facetas da crescente crise imobiliária que afeta a China — e que, por tabela, tem impacto no ritmo de crescimento da economia mundial. Para ter uma ideia do tamanho do problema, basta dizer que as propriedades imobiliárias são o investimento preferido da população e respondem por um quarto da economia chinesa.

O que se vê agora no país é o provável esvaziamento de uma bolha financeira que dura décadas e foi acelerada a partir de 2008. “Quando o mundo entrou em crise por causa dos créditos podres nos Estados Unidos, a China adotou como remédio o aumento dos investimentos, principalmente em infraestrutura e imóveis”, diz Roberto Dumas Damas, professor de economia chinesa e macroeconomia no Insper. “Com isso, de lá para cá a alavancagem média das empresas desses setores subiu de 150% para 350%.”

Ridicularizar o discurso de um líder do Partido Comunista, ainda que um líder local, não é algo comum na China. Mas os comentários ousados não são nada perto de outro tipo de manifestação que começou a se formar nas redes sociais: um movimento em prol do boicote às prestações dos imóveis cujas construções estão atrasadas.

Este movimento, sim, pode ter consequências desastrosas em uma situação já bastante difícil. Segundo uma estimativa do banco australiano ANZ, os boicotes dos mutuários poderiam afetar empréstimos de 220 bilhões de dólares. Para a firma de análises S&P Global, o montante poderia chegar a 356 bilhões de dólares, e para o Deutsche Bank o prejuízo pode ser ainda maior, perto dos 400 bilhões de dólares — pelo menos 7% de todos os projetos imobiliários do país estariam em risco.

O movimento iniciou-se timidamente em julho, quando proprietários de imóveis revelaram documentos dando conta dos atrasos nas obras e dos boicotes a pagamentos em nível nacional. Também enviaram cartas a autoridades detalhando suas queixas e pedindo providências. Em cerca de um mês, a lista que começou com 30 projetos afetados por boicotes aos pagamentos de hipotecas cresceu para mais de 300, em mais de 90 cidades.

O problema só não é mais grave porque menos de um em cada cinco compradores de imóveis na China recorre a hipotecas. A maioria faz vaquinhas entre parentes, que investem coletivamente em uma propriedade — e muitas vezes pagam adiantado.

Ainda assim, o impacto pode ser enorme. É como se o país tivesse várias construtoras funcionando com o sistema da antiga Encol. Para quem não lembra, a Encol foi a maior construtora do Brasil até meados dos anos 1990, mas tinha um sério problema financeiro: usava o dinheiro obtido pelo lançamento de prédios novos para completar obras anteriores. Uma vez que o nível de lançamentos caiu, as obras começaram a atrasar e a empresa entrou num círculo vicioso que a levou à falência.

 

O nascimento da bolha

Imóveis são há muitos anos o investimento preferido das famílias chinesas. Cerca de 70% da riqueza delas está investida em propriedades. Essa tendência foi incentivada pelo governo, com a isenção de taxas de propriedade (a única grande economia do mundo que não as tem). Sem impostos e com os preços dos imóveis subindo constantemente durante décadas, este era um investimento extremamente lucrativo. Tanto que o setor passou a crescer bem além da real necessidade de imóveis: a taxa de vacância de apartamentos nas grandes cidades é de 15% a 25%. Ou seja, muita gente compra imóveis para deixá-los vazios, apenas como forma de valorizar seu capital.

A maioria dos projetos (mais de 85%) é realizada no sistema de pré-venda. Esse processo também foi intensificado no início do milênio — em 2005, cerca de metade era paga desta forma. Os pagamentos começam meses ou até anos antes do término das obras. Por esse sistema, os compradores são a principal forma de financiamento das obras. Ele é também, no entanto, um sistema que favorece abusos.

Até este ano, os governos locais exigiam que os projetos já tivessem entre 50% e 70% do orçamento coberto pelas pré-vendas para fornecer a garantia de finalização da obra. De acordo com a revista Foreign Policy, essas exigências levaram a um conluio generalizado entre construtores e autoridades, com os governos locais utilizando o dinheiro para financiar seus próprios projetos em troca de favores para as empreiteiras.

A demanda por imóveis e a facilidade de empréstimos para as empreiteiras levaram à bolha. O setor imobiliário foi responsável por uma parte importante do crescimento chinês, feito à base de investimentos. Mas esse modelo tem seus limites. “Um dos argumentos que eu tenho defendido há anos é que o modelo de crescimento que se apoia tão fortemente em investimentos em propriedades e infraestrutura é intensamente pró-cíclico”, afirmou o professor Michael Pettis, da Universidade de Pequim, ao site de notícias da ICIS, uma empresa de análises do setor químico e de energia com sede em Londres.

“Isso significa que, após um período de ciclos virtuosos, em que a expectativa de alto crescimento justifica um alto nível de investimentos e o alto nível de investimentos cria expectativas de alto crescimento, nós podemos fácil e vigorosamente alternar para um ciclo vicioso”, afirmou Pettis.

 

Trocar o motor com o carro andando

O governo chinês não deixou de perceber esse risco. Como lembra Dumas, uma economia normalmente tem três motores: consumo, investimentos (privado e público) e exportações. “Percebendo os limites do crescimento via investimentos, o Partido Comunista começou a agir para tornar sua economia mais orientada para o consumo.” Para isso, diz o professor do Insper, era preciso aumentar a renda do trabalhador.

“Até 2012, os salários no país cresciam aquém da produtividade do trabalhador. Isso torna o país muito mais competitivo, mas prejudica a capacidade de consumo. Quando Xi Jinping assumiu a liderança do PCC, o salário passou a crescer acima da produtividade. A ideia era ir desligando um motor enquanto ligava outro”, aponta Dumas.

Ao que tudo indica, a estratégia não foi aplicada a contento. Os salários não subiram rápido o suficiente e, com a crise mundial, a China optou por manter os investimentos em alta, insuflando uma bolha imobiliária calculada em 44 trilhões de dólares.

Em agosto de 2020, finalmente, o governo adotou uma postura mais rígida para controlar os endividamentos excessivos: criou a política de três linhas vermelhas. Em resumo, eram três parâmetros para avaliar a saúde das construtoras. A primeira condição era que a razão entre ativos e obrigações deveria ser maior que 70%; a segunda era que a alavancagem — a razão entre a dívida líquida e o patrimônio — fosse menor que 100% (como dito acima, a média no país era de 350%); a terceira era que a empresa tivesse mais dinheiro em caixa do que dívidas de curto prazo.

Se passassem pelos três critérios, as empresas receberiam sinal verde e poderiam aumentar suas dívidas em 15%. Se uma das condições não fosse cumprida, acendia-se o sinal amarelo e o aumento de dívidas não poderia passar de 10%. Com duas condições não cumpridas, a empresa receberia sinal laranja e só poderia contrair mais 5% de dívidas. Caso não passasse em nenhum dos três critérios, a empresa teria sinal vermelho e não poderia se endividar mais.

 

Uma crise autoinfligida

As medidas de ajuste, em vez de diminuir os riscos, acabaram precipitando a crise. Com menos acesso a crédito, empresas menores começaram a sofrer para pagar seus títulos. De acordo com o Beike Research Institute, uma organização chinesa dedicada a análises do mercado imobiliário, a proporção de títulos inadimplentes subiu de 1 bilhão de dólares, em 2019, para pouco mais de 3 bilhões de dólares em 2020 e para 7 bilhões de dólares em 2021.

Não foram só os pequenos que sofreram. O grupo Evergrande, a segunda maior empresa no ramo imobiliário por número de vendas, tinha em 2020 uma dívida de cerca de 300 bilhões de dólares e deixou de pagar obrigações no exterior. Quase foi à falência, um episódio que abalou as bolsas de valores do mundo inteiro.

Com o aperto do crédito, várias construtoras ficaram sem caixa para pagar fornecedores e funcionários, o que atrasou ainda mais obras — e deflagrou o movimento de paralisação de pagamentos, com o potencial de agravar ainda mais o problema.

“Foi uma crise autoinfligida”, diz Dumas, do Insper. “Para se adequar aos limites de alavancagem exigidos pelo governo, elas tinham duas alternativas: aumentar o patrimônio, vendendo ações, ou diminuir a dívida. A primeira alternativa era complicada, porque as ações estavam em baixa. Restava a opção de vender mais para ter dinheiro em caixa e quitar dívidas. Só que, quando todos começam a vender, os preços caem.”

De fato, os preços dos imóveis estão em queda há dez meses. A queda, porém, não tem sido tão grande quanto se esperava porque os governos locais pressionam as construtoras a não depreciar demais os imóveis para não provocar revoltas na população (cujas economias estão atreladas às propriedades). Como resultado, as vendas despencaram: as cem maiores empreiteiras tiveram em junho vendas 43% menores que as do mesmo mês no ano passado. A S&P Global prevê que neste ano a venda de imóveis será um terço menor que em 2021.

Para piorar a situação, a China já não cresce como antigamente. Em 2020, o PIB aumentou apenas 2,2%. Em 2021, teve um bom desempenho, com 8,8% de crescimento, mas este ano não deverá cumprir a meta de 5,6%. Em parte, a culpa é da crise do setor imobiliário. Mas há pelo menos outros dois fatores de peso: a política de covid zero, que interrompeu a produção e as exportações onde quer que houvesse um número significativo de casos da doença (Shanghai, por exemplo, ficou mais de dois meses em lockdown), a uma seca de grandes proporções que afetou a produção agrícola.

 

As medidas de correção

Nesta situação, o governo central recuou para a velha tática. Há alguns meses soltou um pacote de meio trilhão de dólares para irrigar o setor imobiliário novamente com crédito. A ideia é afrouxar as rédeas e, quando a situação estiver mais controlada, voltar a puxá-las, tentando da próxima vez calibrar melhor a pressão.

Outra medida que o governo vem tomando é censurar as comunicações entre mutuários que organizam boicotes aos pagamentos. Funcionários do governo tratam de apagar documentos e retirar das redes as mensagens que falam de atrasos nas obras e protestos ou paralisação do pagamento de mensalidades.

Ao mesmo tempo, Beijing emitiu sinais de que vai ajudar os governos locais a entregar seus projetos. Em julho, o órgão de regulação dos bancos afirmou que irá fortalecer a coordenação com as autoridades de construção e moradia e o banco central para apoiar os governos locais na “garantia da entrega das casas”.

Líderes locais também estão tomando atitudes para conter a crise — à sua maneira. Um exemplo foi a exortação de Deng Bibo para as pessoas comprarem uma, duas, três, quatro casas. Seu discurso foi proferido numa feira de imóveis que anunciava 10.000 casas. O governo local oferecia cupons de 440 dólares para qualquer potencial comprador. Em outra localidade (Yulin, na província de Guangxi, no sul do país), funcionários do governo local peregrinaram de porta em porta para convocar os cidadãos a comprarem coletivamente pelo menos 8.000 casas neste ano.

Em algum momento, é possível que o governo central acabe tomando providências mais drásticas, como a nacionalização de parte da indústria de construção civil. Se o caminho for este, ele não deverá ser trilhado antes de meados de outubro, quando se reúne o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, que deverá conceder a Xi Jinping seu terceiro mandato como secretário-geral.

“A China não pode admitir uma crise doméstica desse tamanho”, afirma Dumas. “Porque, se as pessoas começarem a protestar, o governo lançará mão do aparelho repressor.” Quem não se lembra (ou não ouviu falar) do massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989?

Encampar as dívidas dos governos locais não é algo que o governo central goste de fazer, mas se isso for o preço para resolver a crise… Basta ver o que ocorreu com a Evergrande: o calote ocorreu no mercado externo. “No mercado doméstico, o governo não permitiu”, lembra Dumas. “Mandou os bancos estenderem crédito.”

A mesma cartilha está sendo seguida agora, para tentar desinflar a bolha de forma suave, até conseguir trocar o motor de crescimento da economia, de investimentos para consumo. Vai dar certo? “Eles vão empurrando a crise para a frente”, avalia Dumas. “É assim que funciona a ditadura.”

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