Em clima de ficção científica, o diretor Ridley Scott desafia o espectador a refletir sobre o sentido da vida
Leandro Steiw
O planeta é um lugar perigoso para se viver. As grandes cidades são sujas e poluídas. As mudanças climáticas alteram o regime das chuvas. A civilização está fragmentada. Não estamos em 2022, porém. Estamos em 2019, quatro décadas no futuro. No universo distópico de Blade Runner: O Caçador de Androides, do diretor britânico Ridley Scott, a atração do Insper Cineclube no dia 17 de agosto, às 18h, no auditório.
Na imaginada Los Angeles de 2019, a Tyrell Corporation fabrica seres artificiais com a forma humana para trabalhar em operações perigosas nas colônias extraterrenas. Os replicantes tornaram-se ilegais na Terra depois de um motim, portanto, são caçados e mortos (ou “aposentados”) pela unidade “blade runner” da polícia quando pisam no planeta. Na versão original do filme, seis deles, da geração Nexus-6, de força e inteligência sobre-humanas, voam para cá.
Rick Deckard, interpretado por Harrison Ford, é um ex-caçador de replicantes, convocado para encontrar e eliminar quatro sobreviventes — um ou dois já teriam sido mortos, um erro de edição que as futuras versões de Blade Runner tentam corrigir. Deckard é um burocrata que aposentaria os replicantes sem pudores, mas acaba se interessando pelo motivo que teria levado os Nexus-6 a se infiltrar na Tyrell. Nessa investigação, se envolve emocionalmente com uma funcionária da Tyrell, Rachael, vivida por Sean Young.
As questões centrais de Blade Runner são a mortalidade e a longevidade. Qual é o sentido da vida? Embora sobre-humanos, os replicantes querem viver mais do que o tempo programado em seus corpos. Esse é um ponto que ajudará a explicar certas decisões tomadas pelos personagens no desenrolar da trama. Escrever mais do que isso para quem ainda não conhece o filme — existe alguém? — seria estragar as surpresas.
Em segundo plano, corre a questão ambiental, mais bem explorada no livro Androides sonham com ovelhas elétricas?, do escritor americano Philip K. Dick (1928-1982). No romance, a atmosfera terrestre é altamente poluída, os animais foram quase extintos e apenas os muito ricos podem ter pets verdadeiros. Aos demais habitantes, que preferiram não emigrar da Terra, restam cópias dos bichinhos. No filme, a única referência explícita ao tema aparece na cena da coruja, nos escritórios da Tyrell.
Blade Runner não foi um sucesso de crítica imediato. Embora o longa-metragem tenha arrecadado 6,1 milhões de dólares no fim de semana de estreia, de 25 a 27 de junho de 1982, a imprensa mainstream falou mal do ritmo, considerando-o inadequado para uma história de ação e aventura. Os acadêmicos adoraram. Mundialmente, o filme faturou 42 milhões de dólares. No Brasil, só foi lançado em dezembro do mesmo ano, um atraso tradicional naquele mundo pré-streaming.
O tempo provou que alguns críticos estavam enganados. Para os amantes de ficção científica, Blade Runner rapidamente se tornou um objeto de culto, principalmente fora dos Estados Unidos. O visual sombrio do filme, inspirado no cinema da década de 1940, teve influência considerável nas produções subsequentes de Hollywood, no mundo da moda, nos videogames e na difusão de histórias em quadrinhos para adultos. O otimismo trágico do roteiro tinha muito a ver com a falta de perspectiva dos anos 1980 — na qual a produção, enfim, estava inserida.
A primeira versão levada aos cinemas era conduzida pela narração em off do protagonista. Foi uma interferência do estúdio baseada em testes com audiências, que desgostou o diretor e parte do elenco. Mais tarde, lançaram-se as versões “Director’s Cut” (1992) e “Final Cut” (2007), que consolidaram a perspectiva de Ridley Scott, sem a narração. Evidentemente, a polêmica contribuiu para realimentar o mito por quase três décadas.
Blade Runner passou em branco no Oscar de 1983, apesar de indicado para melhor direção de arte e melhores efeitos visuais. Vale lembrar que os concorrentes eram pesos-pesados: a primeira estatueta foi para Ghandi, de Richard Attenborough (1923-2014), e a segunda para E.T.: o Extraterrestre, de Steven Spielberg.
Se a produção não foi um abre-alas para Ridley Scott e Harrison Ford, que já vinham de trabalhos anteriores elogiados, colaborou para pavimentar a carreira de Rutger Hauer (1944-2019), Daryl Hannah e Sean Young, seguidas por altos e baixos. E ainda proporcionou momentos dignos para Edward James Olmos, Joe Turkel, M. Emmet Walsh e William Sanderson, entre outros coadjuvantes.
Digna de nota é a trilha sonora do compositor grego Vangelis (1943-2022), então mundialmente conhecido pelo Oscar por Carruagens de Fogo (1981). As músicas estão no filme, mas o disco completo só foi lançado na década seguinte, fazendo circular algumas centenas de TDK (se não souber o que é, vai ter que ler as curiosidades logo abaixo) não oficiais entre os fãs. Outra possibilidade era ouvir a versão orquestrada vendida na época.
Cult movies podem ser medidos pela quantidade de material que geram nos anos seguintes. O livro Future Noir: The Making of Blade Runner (1996), do escritor e cinegrafista Paul M. Sammon, é uma das mais consultadas fontes de informações sobre o filme de Ridley Scott. Eis algumas curiosidades contadas pelo autor:
Até dirigir Alien, o 8º Passageiro (1979), Ridley Scott não se interessava por filmes de ficção científica. Ele considerava apenas duas produções do gênero como dignas de citação: O Dia em que a Terra Parou (1951), de Robert Wise (1914-2005), e Star Wars (1977), de George Lucas.
Muito do visual retrô futurista do filme foi inspirado nos desenhos do artista francês Moebius (1938-2012), dos quais Ridley Scott já gostava antes de se envolver com a produção. Durante a redação das primeiras versões de Blade Runner, o cineasta sugeriu ao roteirista Hampton Fancher conferir o visual de Heavy Metal, versão americana da revista em quadrinhos francesa Métal Hurlant. Outro artista que chamou a atenção de Scott foi o americano Syd Mead (1933-2019), que trabalhara em Jornada nas Estrelas: O Filme (1979). Mead desenhou os veículos de Blade Runner e deu palpites na concepção visual do longa-metragem.
Por dois meses, de setembro a outubro de 1980, o papel de Rick Deckard pertenceu a Dustin Hoffman, o superstar que Ridley Scott queria para alavancar o lançamento do filme. Ele havia ganhado, em abril, o Oscar de melhor ator por Kramer vs. Kramer (1979), tendo já sido indicado por A Primeira Noite de um Homem (1967), Perdidos na Noite (1969) e Lenny (1974). Hofmann topava fazer o protagonista se o roteiro fosse mudado substancialmente, sugeriu diversas alterações, mas pulou fora do projeto tão rapidamente quanto entrou. Assim, as mudanças foram descartadas. Fora de Blade Runner, Hoffman se envolveria com Tootsie (1982), que lhe valeria a quinta indicação ao prêmio de melhor ator, perdendo para Ben Kingsley, por Ghandi.
Ridley Scott não queria classificar o protagonista Rick Deckard de detetive. Achava a profissão datada para uma história que se passava no século 21. Na pré-produção, descobriu-se que o famoso escritor beat William S. Burroughs (1914-1997) havia publicado, em 1979, Blade Runner: a Movie. A expressão caiu no gosto do diretor. Comprados os direitos de uso do título, os produtores souberam que a obra de Burroughs era uma adaptação cinematográfica do romance The Bladerunner, do americano Alan E. Nourse (1928-1992), de 1974. Novo licenciamento precisou ser feito.
Ridley Scott detestava o uso do termo “androide” no filme. Dizia que quebraria a cabeça de quem falasse a palavra no set. Para Scott, “androide” estava desgastado pelo uso frequente em obras de ficção científica e sugeria uma história sobre robôs, que não fechavam com as criaturas da fictícia Tyrell Corporation. Em busca de um nome alternativo, o roteirista David Webb Peoples ouviu da filha, Risa, o substantivo “replicação”, então restrito às pesquisas de clonagem de células. Nasciam os replicantes. Ironicamente, no Brasil, o filme foi lançado como Blade Runner: O Caçador de Androides. Não se tem notícia de alguma cabeça quebrada por aqui.
Meses depois, Scott já não se empolgava com o título Blade Runner e aceitou mantê-lo como nome de trabalho, até encontrar o definitivo. O cineasta pensou em chamar o filme de “Gotham City”, mas o desenhista e escritor Bob Kane (1915-1998), criador do Batman, protestou. Ficou Blade Runner mesmo.
Uma cópia da primeira versão do roteiro de Blade Runner, escrito por Hampton Fancher, foi parar nas mãos do escritor Philip K. Dick. Ele odiou os estereótipos e lugares-comuns apresentados no roteiro cinematográfico e publicou um artigo desaforado numa conceituada publicação de Los Angeles. As arestas foram aparadas depois que Dick leu a versão mais recente do roteiro, de fevereiro de 1981, que não era a definitiva, mas continha a essência da história levada às telas. Infelizmente, o escritor morreu em março de 1982, pouco mais de três meses antes do lançamento de Blade Runner.
Num mundo pré-Big Techs, os néons publicitários do filme vendem marcas como Atari e TDK, objeto de desejo em videogames e fitas magnéticas para adolescentes dos anos 1980. Sem dúvida, um universo alternativo ao 2019 como conhecemos.
Harrison Ford interpretou a maioria das cenas de ação do filme, sem o uso de dublês, como já fizera em Os Caçadores da Arca Perdida (1981). Entre as situações de maior risco, o dublê foi usado apenas na sequência do salto entre dois prédios.
O pombo que escapa das mãos do replicante Roy Batty, vivido por Rutger Hauer, estava tão molhado durante as filmagens que não conseguiu voar como estava previsto no roteiro. Simplesmente saiu caminhando. Uma cena extra foi gravada posteriormente, em Londres, com outro pássaro devidamente seco.
Curiosidade clássica, com alto risco de spoiler: Rutger Hauer improvisou as duas últimas frases do replicante Roy Batty: “Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”. Bem-vindo ao culto!