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Desigualdade no trabalho combina práticas de exclusão da empresa e da sociedade

O debate passa pela identificação das disparidades de gênero e raça que são responsabilidade das empresas e das que extrapolam o meio corporativo, diz o economista Michael França

O debate passa pela identificação das disparidades de gênero e raça que são responsabilidade das empresas e das que extrapolam o meio corporativo, diz o economista Michael França

 

Leandro Steiw

 

As razões que levam à exclusão social no Brasil são várias e seus efeitos nas disparidades estão retratadas nos resultados do estudo Gênero e raça no setor de publicidade, realizado pelo Núcleo de Estudos Raciais do Insper. Os pesquisadores Michael França, Rafael Tavares e Lucas C. Rodrigues utilizaram três indicadores de desigualdade socioeconômica: diferenciais no número de colaboradores, diferenciais salariais e o Índice de Equilíbrio Racial (IER), calculados a partir dos dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), gerenciada pelo Ministério da Economia.

O núcleo pesquisa o desequilíbrio racial e de gênero em empresas de setores variados. Segmentado, o estudo possibilita verificar quais sobressaem em termos de representatividade e analisar possíveis particularidades. Uma distinção pertinente é avaliar esse comportamento ao longo do tempo. Em um olhar geral, sabe-se que algumas desigualdades são geradas pelas práticas internas das empresas; outras, pela exclusão histórica na sociedade brasileira.

As informações sobre desigualdades socioeconômicas entre brancos e negros que trabalham no setor de publicidade permitem discutir a evolução ou involução dessas disparidades. “Constatamos algo que já tem sido repercutido há um bom tempo, que é a alta lacuna salarial quando se comparam homens brancos e mulheres negras, homens brancos e mulheres brancas e homens brancos e homens negros”, diz França, coordenador do núcleo. De fato, a desigualdade de remuneração entre homens brancos e homens e mulheres negras vem aumentando desde 2010 no setor publicitário, aponta a pesquisa.

Há uma conjunção de fatores que explicam as desigualdades de gênero e raça. O mais evidente é que as corporações não estão contratando negros e mulheres na mesma proporção em que contratam brancos e homens, reproduzindo internamente a exclusão enraizada em toda a sociedade brasileira. Parte da solução pode estar na revisão das políticas internas. Outra porção, porém, fica encoberta em circunstâncias que extrapolam o cotidiano do setor publicitário. “Temos de pensar quais seriam as responsabilidades diretas da empresa nessa exclusão e quais vêm de fora”, afirma o economista.

Internamente, a empresa é responsável pela exclusão quando não oferece as mesmas oportunidades para os diferentes gêneros e raças. Então, homens (brancos, predominantemente) ganham mais, são promovidos mais rapidamente e ocupam níveis mais altos na hierarquia. “Existe um conjunto de situações que acaba favorecendo mais um grupo em detrimento do outro, e mexer nessas práticas internas é uma responsabilidade da empresa”, diz França.

A literatura acadêmica mostra que mulheres que engravidam são penalizadas, pois ficam um período fora do mercado de trabalho e, no retorno, não conseguem crescer na carreira tanto quanto os homens. “Às vezes, as empresas até antecipam essa situação, pois sabem que as mulheres terão filhos e começam a dar maior responsabilidade para os homens”, afirma o pesquisador.

Outra condição interna é a afinidade de gênero. Homens tendem a fazer amizades com outros homens, tecendo uma rede de contatos que os ajuda a subir na empresa e obstrui a ascensão das mulheres. “Na questão racial, há muitos casos de indivíduos de origem socioeconômica desfavorecida que, quando entram em uma organização formada por colegas de núcleos sociais mais elevados ou da elite, dispõem de outro padrão cultural e não têm acesso a uma rede de contatos que poderia favorecer a ascensão social.”

França observa que um conjunto de práticas internas inadequado não promove os melhores talentos, pois acaba beneficiando um grupo em relação a outros — e, consequentemente, afeta o desempenho da organização. Nesse caso, a responsabilidade pela exclusão é da empresa. Um mecanismo de discriminação indireta, relacionado à rede de contatos, também se opera nas contratações. “Em empresas com um percentual elevado de homens brancos de alta renda, por exemplo, há uma tendência a indicar homens brancos de alta renda quando surge uma boa vaga de trabalho, excluindo outras pessoas boas e competentes que poderiam assumir aquela posição”, afirma. “Isso ocorre porque, quando surge uma nova vaga, os funcionários da empresa tendem a indicar pessoas relativamente próximas. O indivíduo pode até ter boa vontade com as questões raciais, mas quando abre sua agenda de contatos, só vê outros homens brancos de alta renda.”

 

Além do corporativo

Devidamente reconhecidas as questões de discriminação indireta, as empresas deveriam traçar mudanças na política de contratação em prol de uma maior diversidade interna. “Uma das possibilidades é estabelecer que uma vaga só possa ser preenchida no momento que haja uma representatividade racial e de gênero na candidatura”, diz França. “Então, se existirem dez homens brancos como candidatos, tem de haver dez candidatas mulheres brancas e dez negras, e dez candidatos sendo homens negros também. A partir disso, o RH avaliaria os currículos e selecionaria aqueles que fazem mais sentido para a empresa.”

Para França, essa inércia interna faz com que se reproduza um padrão desigual e se perpetue a discriminação ao longo do tempo. Mas há outro elemento a adicionar às causas da desigualdade: a exclusão gerada pela sociedade brasileira — fora das fronteiras corporativas. As ações afirmativas, por exemplo, têm permitido a uma geração de pessoas negras e de baixa renda se formar no ensino superior. Para algumas ocupações e setores, porém, a oferta de vagas ainda é relativamente baixa, mesmo com a ampliação ao longo do tempo.

As pessoas que estão sendo formadas agora precisam passar por esse filtro da contratação e ganhar experiência no mercado de trabalho. “Isso leva certo tempo”, afirma o pesquisador. “Então, persiste a disparidade na oferta de mão de obra negra em algumas ocupações, por exemplo, e também as desigualdades relacionadas a gênero e grupo social.”

Na questão racial, mais especificamente, o processo de exclusão social pode prejudicar, ao longo do tempo, a acumulação de habilidades e competências de pessoas que passaram toda a vida em famílias de baixa renda. Em tese, duas pessoas que estudaram na Universidade de São Paulo tiveram a mesma formação e, empregados, deveriam ter os mesmos rendimentos e o mesmo sucesso na carreira. “Mas existem outras variáveis relevantes que vão afetar a evolução dessas pessoas”, diz França.

Ele explica: “A pessoa de alta renda que sai da USP terá contatos, como já comentei, e uma pessoa negra e uma pessoa de baixa renda não terão. Isso vai influenciar na sua carreira no futuro. Outra é a questão das competências desenvolvidas ao longo da vida. Parte das competências da formação universitária será relativamente parecida, mas haverá muitas outras que não. Por exemplo, o indivíduo negro ou a pessoa de baixa renda possivelmente não vai conseguir falar outro idioma muito bem. O de alta renda, às vezes, vai falar um ou dois idiomas muito bem. Então, é outra competência que, no mercado de trabalho, fará a diferença”.

 

Riscos desiguais

À equação da desigualdade, multiplicam-se fatores aparentemente simples, mas que agregam na evolução profissional, como as experiências acumuladas em viagens ou aspectos culturais distintos. “Em coisas relativamente básicas, como abrir uma empresa e lidar com questões jurídicas, o indivíduo de alta renda já terá isso muito mais bem encaminhado do que aquele que ainda está naquela batalha da mobilidade social. Isso faz diferença”, afirma França.

Os riscos econômicos não são iguais para os dois hipotéticos recém-graduados da mesma universidade. A pessoa de alta renda tem alguma proteção financeira que lhe proporciona sair da faculdade e esperar até encontrar uma vaga de emprego com o retorno monetário ou não monetário que deseja. A rede de contato familiar e o capital social contam nessa escolha. Sem ajuda financeira, os mais pobres tendem a começar logo com qualquer estágio ou emprego e ainda conviver com o medo da demissão.

Conforme França, em muitas culturas empresariais, uma questão importante para o profissional ganhar certo respeito é o confronto de ideias, cujo maior risco seria a incompatibilização e a demissão. “Indivíduos de baixa renda podem ter, às vezes, receio de confrontar ideias e, portanto, podem não ser vistos, por essa razão, como um possível líder ou gestor”, diz o pesquisador.

Nesse conjunto de circunstâncias de exclusão gerada pelas empresas e pela sociedade, quem tem mais renda leva vantagens. “Precisamos pensar em como captar os melhores talentos em cada perfil de distribuição de renda”, afirma França. “Entre os indivíduos de maior renda, há pessoas extremamente talentosas, que se esforçaram e são muito boas. Mesmo que tivessem nascido na pobreza, possivelmente teriam conseguido crescer porque são pessoas extremamente dedicadas. Mas também há pessoas medíocres, que só estão ali por causa do patrimônio familiar.”

A mesma análise vale para pessoas de baixa renda. “Teremos pessoas talentosas, que se esforçam, e indivíduos sem potenciais”, afirma. “Então, acredito que o grande segredo para começarmos a avançar como sociedade é tentar captar os bons talentos em cada extrato social. Mas também é importante não perdermos de vista que, para aqueles talentos de baixa renda conseguirem prosperar, precisamos de investimento. Porque esses indivíduos já nascem numa exclusão dada pela questão familiar.”

 

Professor Michael França
O pesquisador Michael França

 

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