Existem recursos que permitem barrar a atuação de grupos que estimulam o preconceito e a perseguição, mas a legislação pode avançar mais
Tiago Cordeiro
Ao longo das últimas décadas de sua popularização, a internet permitiu, por um lado, que mais pessoas sejam ouvidas e, de forma livre e democrática, divulguem dados, análises e opiniões para um público amplo e espalhado por qualquer ponto do planeta. Por outro lado, essa inovação potencializou o alcance da defesa da violência política e do discurso de ódio. Como impedir os excessos, seguindo a legislação e respeitando a liberdade de expressão?
Não há uma resposta simples para essa pergunta. Em busca de contribuições para o debate, a I Conferência Liberdade de Expressão na Era Digital, realizada nos dias 27 e 28 de abril pelo Insper em parceria com o InternetLab, centro independente de pesquisa em direito e tecnologia, reuniu quatro especialistas para a mesa “Discurso de ódio e violência política na internet”.
Eles agregaram sugestões para viabilizar a regulamentação do uso dos meios digitais, especialmente as redes sociais e os aplicativos de mensagens, de forma a impedir que ferramentas com potencial de enriquecer o debate público sejam apropriadas por indivíduos e grupos que estimulam o preconceito e a perseguição por motivações raciais, sociais e de gênero, entre outras.
Mariana Valente, diretora associada do InternetLab e professora de Direito na Universidade de Saint Gallen, na Suíça, lembrou que um levantamento realizado pela entidade nas últimas eleições apontou que as mulheres candidatas são alvo de discursos misóginos. “Não há iniciativas concretas para coibir essa prática. No Brasil, a agressão contra as mulheres não costuma sequer ser considerada discurso de ódio, quando deveríamos valorizar a segurança das pessoas, que é habilitadora da liberdade de expressão.”
“Os maiores inimigos de uma democracia são internos. Quando alguns de seus elementos são exacerbados, podem acabar por destruí-la”, afirmou, por sua vez, Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de Justiça no Ministério Público do estado da Bahia e doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
“As instituições precisam atuar, inclusive preventivamente”, disse ela, lembrando que, ainda que não haja uma regulamentação bem resolvida com relação ao discurso de ódio, existem leis que restringem as expressões de ódio. “Racismo é crime, imprescritível, inafiançável, punido com pena de reclusão conforme a lei. Temos na Constituição um microssistema antirracista.”
Tanto Lívia Sant’Anna Vaz quanto a coordenadora do painel, Allyne Andrade e Silva, superintendente adjunta do Fundo de Direitos Humanos do Brasil e professora do Insper, lembraram que o discurso de ódio nas redes sociais reflete graves conflitos sociais. “A especificidade das ameaças e agressões verbais expressas via internet é que elas têm um efeito de silenciamento”, disse Allyne Andrade e Silva.
Já Sant’Anna Vaz citou um exemplo de sua experiência profissional: “Em sete anos de atuação, recebemos em Salvador 101 denúncias de racismo, em qualquer ambiente, e apenas quatro, de fato, chegaram a uma condenação. E, mesmo assim, nesses casos, a vítima muitas vezes é punida, por ser submetida a um processo moroso e desgastante”.
A promotora levantou uma questão: no caso do discurso de ódio, é aceitável tolerar o intolerante? Ao que Daniel Sarmento, advogado e professor titular de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), respondeu: “A nossa Constituição parte da premissa de que não se deve aceitar a intolerância, pelo menos a radical. O risco de aceitar a intolerância é muito grande. Não sabemos, por exemplo, se dentro de um ano estaremos vivendo em um regime democrático”.
O novo modelo de esfera pública, baseado nas interações nas redes sociais, compromete alguns dos objetivos filosóficos invocados em prol da liberdade de expressão, disse Sarmento. “Percebemos isso empiricamente, na crise democrática que o mundo inteiro atravessa. A lógica financeira, que valoriza o reforço das informações nas quais as pessoas já acreditam, pode minar a pluralidade e reforçar a intolerância. Por isso, uma regulação objetiva e transparente é necessária”, afirmou.