Afinal, o que move o bilionário: salvar a civilização ou mera vaidade? Garantir a liberdade ou adquirir um enorme departamento de relações públicas?
David Cohen
Houve um tempo em que donos de meios de comunicação se tornavam bilionários. Aparentemente, agora ocorre o oposto: bilionários se tornam donos de meios de comunicação. O mais recente deles é o mais bilionário de todos, Elon Musk, que ofereceu 44 bilhões de dólares para comprar o Twitter e torná-lo uma empresa fechada (sem ações negociadas em bolsa) — um negócio que deve se concretizar dentro de alguns meses, após a aceitação do acordo pelos acionistas e o escrutínio das autoridades antitruste.
Musk nem sequer é o primeiro sul-africano a investir em um órgãos de mídia. Em 2018, seu conterrâneo Patrick Soon Shiong, um biomédico que enriqueceu após descobrir uma droga contra o câncer do pâncreas, comprou os jornais The Los Angeles Times e The San Diego Union-Tribune, por cerca de550 milhões de dólares.
Cinco anos antes, o cofundador da Amazon Jeff Bezos comprou The Washington Post por cerca de 250 milhões de dólares. Em 2017, a viúva do cofundador da Apple Steve Jobs, Laurene Powell Jobs, comprou participação majoritária na influente revista The Atlantic e tem feito investimentos em outros órgãos de mídia.
Musk, o principal acionista da fabricante de carros elétricos Tesla, da exploradora espacial Space X, da empresa de inteligência artificial OpenAI e de mais um punhado de companhias, todas com uma declarada missão de provocar algum tipo de revolução mundial, não iria seguir o mesmo roteiro. Resolveu, portanto, comprar o Twitter, um meio de comunicação diferente — do qual ele já era um apaixonado usuário, com mais de 90 milhões de seguidores.
O Twitter é bem diferente de um jornal. Define-se como uma plataforma, em que a comunicação é multidirecional (dos usuários para os outros usuários), em vez de unidirecional (dos jornalistas para os leitores). É um meio de comunicação, no entanto, e um dos mais influentes do planeta.
Embora sua base de usuários, cerca de 436 milhões por mês, represente apenas 15% daquela do Facebook (2,9 bilhões de usuários por mês no ano passado, segundo o site de análises Statista) ou 17% da do YouTube (2,6 bilhões) e fique bem abaixo de Instagram (1,5 bilhão), TikTok (1 bilhão) ou mesmo Snapchat (557 milhões), o Twitter atrai profissionais da elite de um sem-número de campos de conhecimento: políticos, acadêmicos, cientistas — e especialmente jornalistas, que reverberam suas discussões para toda a mídia.
Essa efervescência serviu de base para que um ex-dirigente do Twitter, Dick Costolo, definisse a rede social como a “praça pública da cidade”, aquele local para onde as pessoas se dirigem quando querem saber o que está acontecendo e desejam interagir com seus concidadãos. Muita gente aponta variados tipos de limitação para que essa definição seja verdadeira, mas não são poucos os fãs que concordam com ela — e Musk é um dos mais convictos.
Em termos de negócios, porém, o Twitter jamais chegou a ser muito bem-sucedido. A receita de publicidade está longe do potencial, e ela representa 92% da receita da companhia. No ano passado, o Twitter teve prejuízo líquido de 221 milhões de dólares; em 2020, de 1,14 bilhão. Carregava no início do ano uma dívida de 4,2 bilhões de dólares, que vai ser acrescida de outra de13 bilhões, caso a compra por Musk se concretize (uma parte do dinheiro que ele vai levantar com financiadores será com garantias do próprio Twitter; outra, com garantias da Tesla).
De acordo com cálculos de Matt Levine, colunista de negócios da Bloomberg com ampla experiência no mercado financeiro, os bancos irão cobrar taxas de juros de 6% até 11%, o que levará a companhia a uma obrigação anual de cerca de 1 bilhão de dólares só de juros — mais de dois terços da receita operacional prevista para este ano (que ainda é sujeita a juros, taxas, depreciação e amortizações).
Dada essa situação, as agências de avaliação de risco de crédito estão considerando rebaixar as notas do Twitter, que já estão quase no nível de créditos podres (junk). Se isso acontecer, a empresa terá ainda mais dificuldade para levantar financiamentos, e eles ficarão mais caros.
Com certeza, a compra do Twitter não é o melhor investimento da praça. Mas Musk, o homem mais rico do mundo, com fortuna estimada em cerca de 250 bilhões de dólares, pode se dar ao luxo de menosprezar a lógica financeira. Foi o que ele disse, aliás, a Chris Anderson, o diretor da companhia de palestras TED, em um evento em 14 de abril: “Isso não é um jeito de ganhar dinheiro. É apenas a minha forte intuição de que existir uma plataforma de máxima confiança e amplamente inclusiva é extremamente importante para o futuro da civilização”.
Tampouco os outros bilionários justificam seus investimentos em mídia pelo retorno financeiro, até porque são negócios pequenos em relação a suas fortunas. Mas Musk levou essa inclinação ao paroxismo. Dado o curtíssimo período entre ele ter anunciado a compra de 9% das ações da companhia e as duas ofertas para tomar o seu controle (a primeira rejeitada e a segunda aceita), Musk sequer olhou para os números do negócio.
O que o move, conforme disse há poucos dias (em um tuíte), é transformar o Twitter em “diversão máxima”. Isso, além de “salvar a democracia”, que ele considera ameaçada pelas regras de (segundo ele) cerceamento à liberdade de expressão.
Uma outra diferença de Musk em relação aos demais bilionários que compraram meios de comunicação é que estes basicamente aportaram recursos, financeiros e de gestão, mas deixaram a operação essencialmente na mão dos profissionais que já tocavam o negócio. Trata-se, na maioria dos casos, do reconhecimento de que, apesar da crise do modelo de negócios dos jornais tradicionais (com a perda de anunciantes para os gigantes da internet, Facebook e Google), sua atividade essencial — notícias e informações acuradas, investigações — estava na direção correta e se tornou ainda mais essencial.
No caso de Musk, não. Em primeiro lugar, porque o Twitter não é uma mídia tradicional e não faz trabalho jornalístico, mas principalmente porque não é da personalidade dele simplesmente delegar a implementação de suas estratégias aos profissionais que contrata.
Desde 2000, quando foi convidado a se retirar da X.com, companhia de pagamentos que acabou virando a PayPal, por divergências com seu sócio Peter Thiel e com o conselho de administração, Musk trata de criar ou investir em empresas nas quais possa exercer controle direto, minucioso, completo. É um workaholic e extremamente autoconfiante. Em 2018, quando enfrentava críticas pelos atrasos na produção do Modelo 3 da Tesla, Musk demitiu o vice-presidente sênior de engenharia, Doug Field, e assumiu ele próprio o posto de responsável pela produção. Disse ao jornal The New York Times que dormia numa sala de reuniões e por vezes passava três ou quatro dias sem sair da fábrica.
Uma vez que identifica a missão principal de uma empresa, o que ele chama de seu caminho essencial, Musk costuma se responsabilizar pela implementação do projeto em seus mínimos detalhes.
É provavelmente o que vai acontecer no Twitter. Segundo a rede de notícias CNBC, Musk deve assumir a posição de executivo-chefe da empresa assim que a compra for concluída, no lugar do Parag Agrawal. Em princípio, segundo fontes da rede, seria um arranjo temporário. Até que ele consiga implementar sua visão para a companhia.
Musk assegura que, basicamente, esta visão tem a ver com promover a liberdade mais completa possível na rede. Há dúvidas se isso seria bom para todos ou se Musk tem uma noção um pouco enviesada do valor da liberdade — e do próprio Twitter.
Usuário constante, com meia dúzia de postagens diárias, há anos Musk usa o Twitter para promover suas companhias. Principalmente a Tesla, mas também Space X, Boring e outras. Faz isso de forma pouco ortodoxa, atacando virulentamente seus críticos, com “brincadeiras” como chamar alguém de pedófilo (um caso que suscitou processo, arquivado).
Como tem milhões de seguidores, suas opiniões carregam o potencial de mexer com os mercados. Às vezes, de forma apenas intempestiva: quando anunciou que a Tesla desistiria do plano de aceitar bitcoins como forma de pagamento deu um baque de bilhões de dólares no mercado de criptomoedas, segundo estimativas da CNBC. Quando elogiou a criptomoeda dogecoin, baseada no meme de um cachorro da raça Shiba Inu, ajudou a provocar, ao contrário, sua valorização extraordinária (entre o final de janeiro e o final de fevereiro de 2021 sua cotação subiu 1.600%).
Outras vezes, os abalos no mercados são francamente irregulares: em 2018, ele tuitou que estava pensando em tirar a Tesla da Bolsa, tornando-a uma empresa privada. Disse que já tinha obtido o financiamento necessário para comprar as ações dos investidores. Isso se revelou falso, e alguns investidores o processaram por fraude (o processo ainda está em andamento). A SEC, órgão regulador do mercado de ações, o processou em seguida, num caso encerrado com uma multa de 20 milhões de dólares.
Tão confiante é Musk em sua comunicação via Twitter que, em 2020, ele simplesmente limou todo o departamento de comunicações da Tesla — em parte, porque considerou que podia falar diretamente com clientes e fãs pela rede social.
É bem possível que Musk ajude o Twitter. Sem ele, não é pequeno o risco de a rede perder a viabilidade econômica. Jack Dorsey, um dos fundadores da empresa e seu comandante até pouco tempo atrás, declarou que considera Musk a salvação de uma situação ruim.
Mas isso não acontecerá sem algum tipo de contaminação. Musk não é o tipo de magnata que fica contente em apoiar um órgão de comunicação a uma certa distância, ao estilo de Jeff Bezos ou Laurene Powell. Ele também já deu mostras de que não enxerga muitas barreiras entre as diferentes empresas que dirige. Pouco depois de ter fundado a OpenAI, em 2015, recrutou vários de seus pesquisadores para ajudar no sistema de piloto automático da Tesla. Também promoveu encontros das equipes da OpenAI com a Neuralink, para estimular colaborações.
Para o Twitter, entretanto, essa estratégia guarda alguns riscos além da perda de foco. Pelo próprio Twitter, Jeff Bezos fez uma provocação no dia seguinte ao anúncio do acordo para compra da empresa: “Será que o governo chinês acaba de ganhar uma certa influência sobre a praça da cidade?”.
O Twitter em si não tem grandes laços comerciais com a China, de onde foi banido em 2009. Não sofre, portanto, o tipo de pressão do governo chinês a que outros negócios, como a NBA ou Hollywood, estão sujeitos, sob pena de perder um mercado de 1,4 bilhão de pessoas. Já a Tesla… fabrica, compra peças e vende carros na China. Musk estaria potencialmente sujeito a pressões para conter críticas à China em nome de sua outra empresa.
Não que isso preocupe Musk. Ele já declarou que não faz planos de negócios (porque sempre dão errado) e costuma tomar suas decisões por impulso. A partir do fim do ano, porém, quando se espera que a compra do Twitter se concretize, terá que lidar com esse tipo de questão.
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