O desenvolvimento de fornecedores locais ou regionais é uma das oportunidades para superar a crise que começou com a pandemia, diz o professor André Duarte
Leandro Steiw
Guerra é incerteza. O conflito na Ucrânia se encaminha para dois meses de duração, embora analistas julgassem improvável uma guerra durar tanto na atualidade, ainda mais no continente europeu. As cadeias logísticas, que ainda sofriam os efeitos da pandemia da covid-19, mal tiveram tempo de se reorganizar. Por causa do ataque russo e dos novos lockdowns sanitários na China, a Organização Mundial do Comércio reduziu de 4,7% para 3% a previsão de crescimento do comércio de mercadorias em 2022. O planeta pisou no freio novamente.
Segundo André Duarte, professor da disciplina Estratégia da Cadeia de Suprimentos do Insper, a pandemia prolongada provocou dois fenômenos na cadeia de suprimentos global. O primeiro é o efeito cascata, quando o atraso de uma ponta da cadeia produtiva vai se acumulando sobre o seguinte e gerando novos atrasos. Uma fábrica de automóveis no Brasil, por exemplo, depende de peças que vêm de diversos países. Se alguma delas não chegar, a montagem do veículo não fica pronta e a produção estanca. O fechamento gradual dos portos causou essa situação.
Outro componente da pandemia foi a migração de serviços para produtos, que envolve toda a logística de transporte marítimo, aéreo e terrestre. Os consumidores ficaram em casa e substituíram os gastos com a vida social pelas compras de bens e alimentos. Muitas mercadorias são transportadas em aviões de passageiros, cuja demanda aterrissou naquele momento — ainda hoje a movimentação nos aeroportos brasileiros está 25% abaixo do nível pré-pandemia, conforme o Índice Abdib-Vallya de Infraestrutura. O excedente foi transferido para os navios, que operavam no limite. Com o aumento de demanda de produtos além do esperado, acumularam-se contêineres nas filas dos portos mundo afora.
O segundo fenômeno é o efeito chicote, que ocorre quando uma pequena variação na ponta da cadeia reverbera com força no início da cadeia. É o caso de diversos produtos que compramos nos supermercados, como o papel higiênico. Empresas compram embalagens com grandes quantidades, diferentes dos pacotes vendidos nas gôndolas dos supermercados. A adoção do trabalho em home office aumentou a demanda nos supermercados e as pessoas passaram a consumir só as embalagens menores em casa. A tendência é sobrar um tipo de embalagem e faltar de outra. “Essa variação mínima reflete-se na ponta da cadeia, que fornece os insumos e que não tem condições de reagir rapidamente”, explica Duarte.
Junta-se ao efeito chicote o movimento especulativo causado pelo pânico inicial da pandemia. Nessas ocasiões, todos correm a estocar mantimentos e produtos para prazos mais longos do que o habitual. “Quando se especula a falta e alguém faz estoque, outros ficarão sem o mesmo produto. Então, é uma especulação que acaba virando realidade”, afirma. Conforme Duarte, a crise sanitária desencadeada pelo coronavírus apresentou uma série de questões interessantes, principalmente sobre a reavaliação das cadeias globais de abastecimento. Afinal, em níveis distintos, todas as economias interagem uma com as outras e foram prejudicadas pelo fechamento dos portos e pela consequente falta de produtos.
O avanço da covid-19 foi caracterizado como pandemia pela Organização Mundial de Saúde em 11 de março de 2020. Desde então, o alerta persiste. Às vésperas dos dois anos, em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia. O impacto na questão energética foi imediato. Além de ser um dos maiores produtores mundiais de petróleo, a Rússia fornecia um terço do gás natural consumido na Europa. No acumulado do ano, o barril de petróleo Brent subiu 25%. Nada é produzido sem energia, portanto, todos os preços acompanharam a elevação.
Antes da guerra, a Rússia e a Ucrânia respondiam por metade das exportações mundiais de trigo — 30% e 20% respectivamente. A Rússia era o maior exportador de produtos nitrogenados, usados em fertilizantes. A Ucrânia, o terceiro exportador mundial de milho. Trigo para alimentos, milho para rações, fertilizante para o plantio: as sanções à Rússia e a destruição da Ucrânia desordenaram a produção. A inflação atravessou fronteiras.
“Isso é bom para as nossas commodities, de alguma maneira, mas, como consumidores, pagamos o preço dolarizado”, diz Duarte. “Existe também uma questão importante relacionada à segurança alimentar, principalmente nos países de baixa renda, que poderão sofrer ainda mais. Vamos sofrer porque aquilo que nós comemos no dia a dia vem, na sua maioria, do pequeno produtor, que também precisa usar fertilizantes e insumos, que estão ficando mais caros, encarecendo o produto final.”
Outro setor que já estava desorganizado antes da guerra é o de terras-raras, elementos químicos usados em produtos como lâmpadas de LED, lasers, componentes de computadores e motores de carros elétricos. Conforme o United States Geological Service (USGS), as maiores reservas estão na China — que supriu 60% da demanda global em 2021. O recrudescimento da covid-19, no início de abril, colocou 373 milhões de pessoas sob bloqueio total ou parcial em 45 cidades chinesas, relatou o jornal britânico Financial Times. As restrições sanitárias pararam centros de produção de Xangai e interromperam as entregas para a indústria automobilística e de produtos eletrônicos.
A Rússia e a Ucrânia estão entre os maiores produtores de metais preciosos como paládio e platina, utilizados em catalisadores de veículos automotores, instrumentos odontológicos e peças de relojoaria e joalheria, entre outros. E também de níquel, cobre e alumínio, metais com dezenas de aplicações industriais. A carência no abastecimento dessas três matérias-primas pode elevar os preços de objetos cotidianos como latas de bebidas, fios elétricos e utensílios de aço inoxidável.
Compreendidos os riscos para a gestão das cadeias logísticas, buscam-se as soluções. Três conceitos se apresentam: offshoring (ir para fora), reshoring (trazer para dentro) e nearshoring (trazer para perto). Para Duarte, uma oportunidade está no desenvolvimento de cadeias mais locais. “Há movimentos em vários países para resgatar a indústria local. Estamos falando em trazer os fornecedores para perto da produção, porque o custo de transporte está muito alto”, diz o professor. “Só que, por uma inércia de investimentos, essa mudança leva tempo. No curto prazo, os problemas continuam sérios.”
Um exemplo são as duas fábricas de 20 bilhões de dólares que a Intel planeja construir nos Estados Unidos, para montar uma nova geração de chips, na escala do angstrom, a décima parte do nanômetro que rege os processadores atuais. Anunciadas em janeiro de 2022, as fábricas deverão operar apenas a partir de 2025. Em contrapartida, a Intel espera que o governo americano invista em um plano de expansão da indústria de semicondutores, para diminuir a dependência do país às importações da Ásia.
As crises em sequência também fizeram as empresas mapearem as suas cadeias de suprimentos. Duarte explica: “Eram raras as empresas que tinham as suas cadeias mapeadas. Agora, passaram a ter um pouco mais de visibilidade do que está acontecendo nos vários elos das cadeias produtivas. Em um prazo muito curto, consegue-se fazer isso relativamente bem. Depois, começa-se a gerenciar os riscos e os estoques, principalmente nos gargalos da cadeia. Além de ir atrás de outros fornecedores locais. Se faltou ou ficou caro o insumo importado, deve-se desenvolver um fornecedor local. Nem sempre é rápido o desenvolvimento de fornecedores locais ou regionais, mas é um movimento que já estamos percebendo”.
Um terceiro passo seria investir em capacidade de produção local, aumentando as plantas fabris, investindo em plantas de matérias-primas ou em fornecedores e melhorando a resiliência e a colaboração das cadeias produtivas. Como o investimento para construir fábricas é maior, essa alternativa exige mais tempo. “Se há uma coisa que podemos tirar de bom, apesar de toda a crise, é a questão de estarmos aprendendo a lidar com riscos das cadeias de suprimentos. Todos esses movimentos estão acontecendo de forma simultânea”, observa Duarte.
Na contramão desse movimento, a economia passa por um período de aumento da taxa de juros e da inflação, que pode desestimular investidores. “Essa é a importância de todos os governos investirem em infraestrutura para eliminar os gargalos, ou trabalharem com alguns incentivos para trazer a capacidade produtiva para mais perto”, diz Duarte. É uma das formas de lidar com a incerteza das cadeias de suprimentos. “O fornecedor mais próximo, pode até custar um pouco mais caro, mas normalmente é mais rápido e confiável. Nesse sentido, o fornecedor local traz a agilidade necessária para cadeias com demandas cada vez mais incertas e voláteis.”
Diante da dúvida, qualquer especulação é temerosa. No início da pandemia, apostou-se na normalização das cadeias em um ano e meio, talvez dois anos. Essas leituras do momento já se revelaram erradas, ainda mais com o prolongamento de uma guerra imprevista e imprevisível. E se o conflito, hipoteticamente, terminasse hoje? “Se a guerra parar, a capacidade produtiva da Ucrânia não voltará da noite para o dia; provavelmente, as fábricas e muitos dos campos de plantação dos produtos de exportação do país devem ter sido destruídos. Certamente, a Ucrânia não voltará a ser o que era. As sanções à Rússia também não serão totalmente eliminadas”, analisa.
Para Duarte, é muito difícil prever quanto tempo o mundo voltará ao normal. A capacidade de reação dos países vai ditar o ritmo. “O Brasil tem oportunidade de trazer mais produção para cá. Temos um bom parque industrial, que poderia fornecer para toda a região. E existe ainda a possibilidade de a China, eventualmente, fechar um bloco com a Rússia. Então, os Estados Unidos precisarão desenvolver fontes locais ou regionais de produção e o Brasil poderá se beneficiar”, comenta Duarte. A era das incertezas parece longe do fim.