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Dualidades e desafios em uma sociedade binária

Por muito tempo, as pessoas intersexo foram conhecidas como hermafroditas — o que é um erro, segundo o professor Sérgio Roberto Cardoso

Por muito tempo, as pessoas intersexo foram conhecidas como hermafroditas — o que é um erro, segundo o professor Sérgio Roberto Cardoso

Professor Sérgio Roberto Cardoso
Sérgio Roberto Cardoso, professor da Trilha de Humanidades no Insper

 

Bárbara Nór

 

No dia 26 de outubro de 1996, os americanos Morgan Holmes e Max Beck foram expulsos da conferência anual da Academia Americana de Pediatria. O motivo? Eles queriam fazer um discurso para os médicos presentes a respeito dos problemas e das consequências da prática de cirurgias cosméticas para “consertar” crianças intersexo. “Fomos recebidos com hostilidade e escoltados por seguranças para fora da conferência”, escreveu mais tarde Holmes sobre o dia que passaria a ser considerado a primeira manifestação pública de pessoas intersexo. Hoje, mais de 20 anos depois, a data marca o Dia da Visibilidade Intersexo — e mostra que a luta por reconhecimento continua.

Por muito tempo, as pessoas intersexo foram conhecidas como hermafroditas — um erro, segundo Sérgio Roberto Cardoso, professor da Trilha de Humanidades no Insper. “Esse nome foi entrando em desuso à medida que a ciência entendeu que hermafroditismo é bem mais prevalente em espécies animais”, diz Cardoso. “Em humanos, ela é uma das muitas possibilidades do que se convencionou como a expressão ‘estado intersexual’”.

Um engano comum, explica o professor, é achar que uma pessoa intersexo sempre irá ter órgãos genitais de ambos os sexos. Mas isso não necessariamente ocorre. Nascidas com variações nos genes responsáveis pelas características sexuais, as pessoas intersexo podem apresentar diversos elementos sexuais ao mesmo tempo — tanto os considerados femininos quanto os masculinos. O quanto cada um desses elementos vai se manifestar depende de cada caso. “Uma pessoa intersexo pode ter concentração de hormônios de um sexo e genitália de outro sexo”, diz Cardoso. “Pode ter traços faciais feminilizados e produção de gametas masculinos, por exemplo.”

 

Noções tradicionais de gênero e sexo

Por essa qualidade, as pessoas intersexo acabam colocando em xeque as noções sobre gênero e sexo mais comuns na sociedade. “Estes fatos [vistos nas pessoas intersexo] não atendem às expectativas das normas médicas, sociais e culturais, em que se espera o modelo cromossômico/sexual prevalente, com o XX atribuído a pessoas do sexo feminino e o XY atribuído a pessoas do sexo masculino”, diz Cardoso.

De fato, o que a ciência vem descobrindo é que, com a pluralidade de formações possíveis nessa parte do nosso DNA, a humanidade tem mais de 40 possibilidades conhecidas de de intersexualidade. Muitas, inclusive, não percebem ser intersexo até mais tarde, durante a puberdade, enquanto outras nunca descobrem a condição. Mas, nos casos em que se percebe que a criança é intersexo, o desconforto diante de alguém que não corresponde às ideias binárias de gênero faz com que, desde cedo, se tente “forçar” um dos gêneros.

“É recorrente ver a postura de seus responsáveis e familiares em propor intervenções cirúrgicas o quanto antes para que, assim, possam modelar órgãos genitais, direcionando sua anatomia para que fique mais próxima à do sexo e gênero que os pais desejam que a criança tenha ao longo da vida”, diz Cardoso. Com frequência, a medida também inclui o uso de medicamentos hormonais ao longo da vida adulta de acordo com o sexo escolhido na cirurgia.

 

Desafios e tabus

O problema é que optar por um gênero não é uma decisão simples — e era justamente para isso que os ativistas queriam alertar em 1996, ao serem expulsos da conferência médica. Além de invasiva e mutiladora, a cirurgia pode, mais tarde, implicar problemas psicológicos, diz Cardoso. “A pessoa pode vir a sentir-se em total desacordo entre a genitália escolhida por outros e sua própria identidade e/ou expressão de gênero.”

O ideal, assim, seria respeitar o direito de a pessoa intersexo decidir se quer ou não passar por essas intervenções e, portanto, alinhar-se a determinado sexo ou identidade de gênero. No lugar de uma decisão forçada, defendem ativistas, o que deveria ocorrer é o apoio do Estado para que pais e familiares possam lidar com essas diferenças em seus primeiros anos. “A ideia é que a dignidade humana possa ser promovida independentemente da combinação genética que as pessoas apresentem”, diz Cardoso. Afinal, ser intersexo não é ter uma doença, nem precisar de algum tipo de cura. Tampouco se trata de uma escolha, lembra o professor, além de não dizer respeito à orientação sexual.

Mas, ainda hoje, essas pessoas sofrem preconceito e dificuldades em ser aceitas como são. “Em sociedades que operam com sistemas binários de classificação de realidades, como dia-noite, bom-mau, limpo-sujo, feio-bonito, não estar alocado na ‘caixinha’ fêmea-macho e homem-mulher gera uma série de desigualdades, preconceitos e discriminações”, afirma Cardoso. Além de problemas na família, essas pessoas podem enfrentar, mais tarde, dificuldades de relacionamento amoroso e de inserção no convívio social — sem contar com os casos em que são operadas e não se identificam com ogênero escolhido por pais e médicos.

Assim, é preciso que se discuta, cada vez mais, o quanto as ideias fixas em relação a como cada gênero deve e pode ser, inclusive fisicamente, acaba limitando as pessoas. “Se essas expectativas não forem bem trabalhadas pela sociedade, elas podem acabar restringindo as diversas possibilidades de existência humana — que se faz humana justamente por ser plural e singular ao mesmo tempo”, diz Cardoso.

 

Fernando Almeida
Fernando Almeida, analista de relações internacionais 

 


Filme “XXY” mostra os desafios e dilemas de pessoas intersexo ao chegar à puberdade 

 

Cena do filme XXY
Cena do filme “XXY”, que conta a história de adolescente intersexo

 

O filme hispano-franco-argentino XXY, da diretora Lucía Puenzo, conta a história de Alex (Inés Efron), que nasceu intersexo. Para fugir da tentativa de intervenção cirúrgica dos médicos, seus pais a levam para um vilarejo no Uruguai, onde vivem isolados até a adolescência de Alex. É quando eles recebem um casal de amigos com um filho adolescente, por quem Alex acaba se interessando. Novas questões e dificuldades serão levantadas, e Alex terá que deparar com as possíveis escolhas de gênero. No elenco, está também Ricardo Darín, célebre ator argentino.

“O filme me marcou muito pela sensibilidade com que trata o tema”, diz Fernando Almeida, analista de relações internacionais no Insper, onde também faz parte do Comitê de Diversidade, Equidade e Inclusão. “A personagem de Alex é confrontada com essa dualidade, de ficar nessa crise sem saber se deve ser uma menina ou um menino, e o filme apresenta isso de uma forma muito bem pensada, sem parecer didático.”

Segundo Almeida, a obra fez com que ele mesmo buscasse estudar mais sobre a condição e seus desafios. “O filme conseguiu me passar uma ideia um pouco mais correta. Antes eu tinha uma noção mais clichê sobre o que era intersexo”, diz. “Ele mostrou também como é importante o apoio da família para que as pessoas intersexo possam lidar melhor com os desafios e as escolhas que enfrentam.”

O filme XXY foi lançado em 2007 e está disponível para assistir no Netflix.

 

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