O texto original, que estabeleceu regras para o acesso a instituições federais de ensino superior, prevê a realização de uma releitura neste ano
Tiago Cordeiro
Ao longo dos últimos vinte anos, surgiram no Brasil diversas iniciativas com o objetivo de ampliar o acesso ao ensino superior público de grupos menos favorecidos. Mas foi com a Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, que o país passou a contar com uma ferramenta legal obrigatória e de alcance nacional.
O texto reserva no mínimo 50% das vagas das instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas. Elas são preenchidas por candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas, além de pessoas com deficiência e alunos que cursaram integralmente o Ensino Médio em escolas públicas, em proporção no mínimo igual à presença de cada um desses grupos no estado onde fica a instituição de ensino.
O artigo 7º do texto determina que, após dez anos de vigência, a lei deve passar por uma revisão. Não estabelece como ela deve ser feita nem determina o que aconteceria caso não seja apresentada nenhuma alteração. Mas, diante da relevância do tema e da determinação estabelecida pela própria legislação, dezenas de projetos já tramitam no Congresso Nacional. Alguns propõem alterações e ajustes, outros simplesmente ampliam o prazo em que o texto deve permanecer em vigor, da forma como está agora.
Enquanto o Legislativo se movimenta, a proximidade do aniversário da Lei 12.711 propicia uma oportunidade para fazer um balanço do projeto. Uma série de análises e levantamentos sugere que a ação afirmativa se mostrou capaz de facilitar o acesso ao ensino público superior, com impacto positivo para a redução das desigualdades sociais.
Um levantamento realizado por quatro pesquisadores, dois deles do Insper, avaliou as notas dos cotistas que conseguiram entrar em instituições federais de ensino. “Os resultados mostram que a maior diversidade (de categoria administrativa do Ensino Médio, de renda e de raça) nas universidades federais, introduzida pelas cotas, não acarreta ingresso de alunos com notas significativamente menores quando comparado com o cenário sem cotas”, concluiu a pesquisa. “Isso ocorre devido à existência de potenciais cotistas cujas notas se encontravam acima do último decil (décimo) de notas em número suficiente para preencher as vagas reservadas.”
Em outras palavras, o estudo confirma que a entrada de cotistas não reduz de forma significativa o padrão acadêmico de quem entra nas universidades públicas. “As cotas foram muito positivas para a sociedade brasileira”, afirma um dos autores do trabalho, Naercio Menezes Filho, pesquisador do Centro de Gestão e Políticas Públicas (CGPP) do Insper.
“Com elas, estudantes com grande capacidade, mas que nasceram em famílias mais vulneráveis, passaram a ter acesso ao ensino superior público”, afirma ele, lembrando que os cotistas aprovados apresentam, nos processos seletivos, notas muito próximas dos demais estudantes selecionados. “São pessoas inteligentes, que se superaram com esforço e garra. Entram com uma nota um pouco menor do que a média, mas ao fim da graduação têm desempenho igual ou superior ao dos não cotistas”, diz o pesquisador.
Em 2011, de acordo com Censo do Ensino Superior, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 11% dos alunos matriculados em instituições públicas de ensino superior eram pretos e pardos. Em 2016, o percentual já havia subido para 30%. Em 2018, pela primeira vez, a proporção ultrapassou a metade do total: 50,3%. Assim, se aproximou da parcela da população brasileira preta e parda, que representa 55,8%, segundo o IBGE.
De acordo com o informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, produzido pelo IBGE em 2019, entre os jovens matriculados no ensino superior em 2018, 55,6% eram pretos ou pardos, de 18 a 24 anos, ante 50,5% em 2016. É um avanço, ainda que a proporção, entre os brancos, seja de 78,8%. “No início da década de 90, somente 1% dos jovens negros estava na faculdade e 2% de todos os adultos negros tinham ensino superior completo”, diz Menezes Filho. “Agora, 15% do total de negros e pardos têm acesso ao ensino superior. Estamos formando uma geração de jovens que são os primeiros de suas famílias a conquistar um diploma de ensino superior.”
Menezes Filho considera que a lei não precisa de ajustes ou revisões. Para Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, outras mudanças, de caráter estrutural, são necessárias. “A expansão do acesso foi significativa, mas se deu em cursos de Humanas, principalmente. Cursos de Exatas e Biológicas mais concorridos ainda são de difícil acesso para esse público”, diz França. E isso acontece, segundo ele, porque o ensino público fundamental ainda é muito defasado em relação ao particular.
“Os estudantes de escolas públicas, cientes da fragilidade de sua formação, podem acabar optando por cursos menos concorridos. A política de cotas é interessante no sentido de quebrar barreiras de acesso social no Brasil, mas precisaria ser acompanhada de uma ampla reformulação do ensino público nos níveis fundamental e médio”, afirma. “A cota é um meio de melhorar as oportunidades. Mas, se o aluno tivesse acesso a escolas públicas de qualidade, talvez no futuro ela não fosse necessária.”
Existem outras barreiras que dificultam que os estudantes de baixa renda concluam suas graduações. “Eu mesmo, para concluir minha formação na Universidade de São Paulo, precisei morar na favela São Remo, que era próxima e o aluguel mais barato. Os deslocamentos longos e a necessidade de trabalhar reduzem as chances dos alunos de baixa renda, que muitas vezes acabam por desistir.”
França desenvolveu, com os pesquisadores Sérgio Firpo e Alysson Portella, uma projeção que indica que, entre a população com mais de 30 anos, demorará 27 anos para que o desequilíbrio entre negros e brancos tenha fim em todas as regiões do país.
De outro lado, o professor diz que o convívio acadêmico foi enriquecido nestes anos de maior acesso de estudantes de baixa renda ao ensino superior público. “A sociedade brasileira ainda é muito segregada. As ciências sociais brasileiras refletem essa situação: durante muito tempo, o pensamento social foi dominado pela elite. Nesse cenário, a diversidade enriquece o debate de ideias e a percepção da realidade”, afirma.