As cópias digitais de alta fidelidade de objetos físicos são usadas para melhorar processos de fabricação nas indústrias e têm vários usos em outras áreas
Leandro Steiw
Qual é a hora certa de colher um fruto? O produtor pode conferir pessoalmente, encarregar alguém de verificar ou consultar o computador. Nessa última hipótese, ele provavelmente estará usando um digital twin da sua plantação, ou seja, uma cópia digital da fazenda. A tecnologia é uma representação digital de alta fidelidade de um objeto físico, que se atualiza continuamente quando sua contraparte física muda. “Todos os gêmeos digitais existem no mundo cibernético (computadores e meios de comunicação), mas um gêmeo digital não pode existir sem sua cópia física”, diz o engenheiro Lie Pablo Grala Pinto, que ministra a disciplina eletiva Digital Twin, pertencente ao curso de Engenharia Mecatrônica e aberta a outros cursos do Insper.
Segundo o doutor em Automação e Sistemas, dependendo da aplicação ou do objetivo, o digital twin pode ter diferentes formatos. Se o objetivo for a visualização, ele pode ter mais efeitos gráficos ou realidade virtual. Entretanto, na maioria das vezes, o digital twin é formado por uma série de modelos matemáticos, algoritmos e equações que descrevem o ativo físico de interesse, e a visualização é apenas a representação do resultado desses modelos matemáticos, sendo utilizada por questões estéticas. “Assim como muitas tecnologias, a criação de digital twins acaba tendo desdobramentos que vão muito além do digital twin em si”, observa Lie Pinto. “A criação dos modelos matemáticos para os ativos físicos acaba promovendo melhorias e insights para projeto, processo de fabricação, soluções inusitadas para prevenção e correção de falhas ou ainda otimização da arquitetura e da estrutura do sistema.”
Os ativos digitais — representações digitais dos ativos físicos — podem ser os mais diversos. Além da indústria, já existem digital twins para tráfego em cidades, movimentos de veículos para prevenir acidentes em automóveis autônomos, prédios inteligentes para melhorar a eficiência energética ou identificar invasões, incêndio ou demais danos físicos. A tecnologia também é usada para gerenciamento de rede elétrica, sistemas de abastecimento de água, tratamento de resíduos ou controle de inundações, dispositivos médicos com ativos digitais de órgãos e funções do corpo ou ainda para a agricultura inteligente. É possível até prever que um pneu do carro vai furar com os dados gerados pelo sistema ABS de freios.
“No Brasil, já temos consolidada a agricultura de precisão, que está, na minha opinião, bem próxima de ser considerada um digital twin”, comenta o professor. Ele diz que cada elemento da grade que divide a região agriculturável é influenciado pelos elementos de sua vizinhança e de fatores como chuva, incidência solar ou temperatura e de vegetais no solo. Dessa forma, pode-se “conhecer” a condição do solo sem precisar medir constantemente cada elemento dessa grade. “O que se fazia antigamente: adquirem-se poucas amostras da terra e aplicam-se fertilizantes em tudo, em igual proporção. A agricultura de precisão visa medir cada ponto do solo, de uma área grande, criar uma grade e usar a quantidade necessária de fertilizante em cada ponto, sem excesso ou sem escassez”, afirma.
Na indústria, um dos primeiros usos do digital twin tem sido para manutenção preditiva, método de monitoramento de equipamentos que é utilizado desde a chamada indústria 2.0, anterior à automação dos processos de produção. A predição a partir do digital twin se tornou mais precisa na era da indústria 4.0, permitindo fazer a manutenção na máquina antes da quebra, evitando paradas inesperadas do dispositivo. Todas as condições que envolvem o dispositivo real afetam seu gêmeo digital: mudança de parâmetros, probabilidade de quebra, nível de degradação, defeitos mais comuns ou que demandam mais recursos para correção, possibilidades de mitigações etc.
Lie Pinto esclarece alguns equívocos em relação à tecnologia. Uma característica importante é que o funcionamento do digital twin tem que estar sincronizado ao do ente físico. Essa é a diferença de uma simulação num computador para um digital twin de fato. O digital twin está em tempo real junto com o ente físico, enquanto uma simulação pode rodar mais rapidamente ou mais lentamente que um ente físico. “Podemos simular no computador, em poucos minutos, a evolução de uma cidade ao longo de 50 ou 100 anos. Mas eventos físicos de luz e eletromagnetismo, que são extremamente rápidos, demoram horas para serem simulados”, compara o professor. O digital twin tem que acontecer junto com o ente ou o fenômeno físico.
A primeira edição da disciplina Digital Twin ocorreu no segundo semestre de 2021. Os resultados foram tão bons que a próxima turma será ministrada em inglês, para atender à demanda de alunos do exterior que se interessaram pelo curso e pela universidade. “Eu começo com os alunos com algo bem teórico, até um pouco maçante, para eles verem a dificuldade que existe em criar modelos, levantar ações diferenciais e calcular quais as realizações delas”, diz Lie Pinto. Entretanto, existem modelos já prontos que são compartilhados entre a comunidade atuante na área, ou seja, não é preciso modelar toda vez cada um dos elementos do sistema físico para fazer um software funcionar. O que mudam são as ferramentas para aplicar esses modelos.
Para cursar a disciplina, é necessária uma mescla de conhecimentos físicos que envolvem modelagem e controle — que os alunos estudam no Insper nos semestres iniciais —, programação e comunicação de dados (porque há comunicação entre o ente físico e o ente digital). “Existe uma série de conhecimentos básicos de Matemática e de Física, que lá no final terão um impacto muito grande nessas tecnologias. Então, essa tecnologia de ponta não elimina todos os conhecimentos anteriores de Física e Matemática”, diz Lie Pinto. “Sabendo o que são derivadas sucessivas ou melhorando uma constante na equação, o profissional vai conseguir identificar os erros no modelo quando der um problema depois.”
Graduado em Engenharia de Controle e Automação pela PUCRS, com mestrado em São Petersburgo na Rússia e doutorado na UFSC, Lie Pinto não vê, entre os estudantes do Insper, o preconceito com temas básicos de matemática ou física. “Faz parte do learn to learn que a gente incentiva nos nossos alunos: encontrar o problema e resolvê-lo com os seus próprios meios”, diz. “É uma característica de engenheiro, ficar quebrando a cabeça em cima de um problema e, quando terminam, ter aquela sensação boa de vitória, de conquista. E os alunos vão bem nisso.”