Cerca de metade dos escravos fugitivos reclamados em anúncios de jornal em São Paulo na segunda metade do século 19 eram trabalhadores qualificados, em ocupações artesanais. Esse segmento de maior habilidade no trabalho era sobretudo rural e masculino. A cor da pele (parda ou preta) e o local de nascimento (Brasil ou África) pouco influíam na qualificação.
Renato Perim Colistete, do departamento de Economia da FEA-USP, chegou a essas conclusões pela análise do perfil de 3.376 pessoas cuja fuga da escravidão foi anunciada na imprensa da então província de São Paulo de 1854 a 1887. Nessas publicações, era comum os reclamantes fornecerem informações pessoais sobre o evadido, bem como uma promessa de recompensa, na tentativa de recapturá-lo.


A fim de investigar a fatia e as características dos escravos que desempenhavam tarefas mais especializadas –como carpintaria, ferraria, mecânica, olaria, tanoaria e sapataria–, o pesquisador primeiro recorreu a um conjunto minoritário (994, ou 29%) de fugitivos para os quais havia descrição expressa das atividades de trabalho nos anúncios.
Em seguida, o autor submeteu essa amostra em que as habilidades eram conhecidas a vários testes para saber com que acurácia e precisão, a partir de dados pessoais –como idade, altura, residência, compleição física e cor da pele–, se prevê a qualificação ocupacional dos escravos. O método empregado, de aprendizado de máquina, utiliza uma parte da amostra conhecida como grupo de treinamento e verifica com o restante dela (o grupo de teste) o grau de acerto na predição dos resultados, experimentando com diferentes modelos.


O modelo que se saiu melhor nos testes acertou aproximadamente 7 em cada 10 previsões. Com ele, Colistete avaliou o conjunto majoritário dos fugitivos (2.382, ou 71%) para os quais os anúncios em jornais não explicitavam a qualificação do trabalho. O pesquisador conseguiu assim estimar não apenas a fatia dos que exerciam as atividades mais especializadas, mas também estabelecer conexões com outras características dos escravos.
O autor encontrou, nos dois grupos analisados –no minoritário, com habilidades conhecidas, e no majoritário, com habilidades previstas— uma participação elevada de escravos engajados em funções artesanais e qualificadas: 47% no primeiro conjunto e 52% no segundo. O censo de 1872 detectou apenas 4,3% de trabalhadores qualificados na população cativa com 10 anos ou mais em São Paulo, proporção parecida com a apurada na população livre (4,7%).


É possível que as fugas de escravos qualificados, por representarem maior perda, tenham estimulado, mais que as outras, a compra de anúncios em jornais para facilitar a recaptura, daí o maior peso desses trabalhadores nos registros coletados por Colistete.
Os achados da análise desfazem a impressão de que os trabalhos mais especializados se concentravam entre escravos urbanos. Na província de São Paulo, a grande maioria dos fugitivos (72%) vinha de regiões agrícolas e uma porção semelhante (de 69% a 77%) dos evadidos com maior habilidade também era oriunda das zonas rurais. Relatos de visitantes de grandes fazendas de café paulistas do período já mencionavam a presença de trabalhadores escravizados operando maquinário e outros processos mais complexos.


Diferentemente do que o extenso programa de pesquisa da escravidão nas Américas coordenado pelo historiador econômico Robert Fogel (1926-2013) detectou para outras regiões, em São Paulo nem a cor mais clara da pele (parda) nem o fato de o trabalhador ter nascido no Brasil (e não na África) parecem ter conferido vantagem significativa em termos de qualificação no trabalho ao escravizado. As proporções de trabalhadores especializados entre esses grupos encontradas nos dados pesquisados são em geral equivalentes.
Entre as características que parecem ter favorecido a especialização estão o sexo masculino –é próxima de zero a fatia de mulheres com habilidades artesanais no estudo—e a alfabetização. Perto de 2 a cada 3 escravizados que sabiam ler e escrever eram empregados em ocupações qualificadas, uma proporção substancialmente maior do que entre os escravos com funções menos qualificadas
Apenas 7 em cada 10.000 escravizados em São Paulo eram alfabetizados —contra 3.200 a cada 10.000 na população livre— de acordo com o censo de 1872, um fator central que contribuiu para a alta desigualdade enfrentada por ex-escravos e descendentes após a Abolição.
Leia o estudo
“Predicting Skills of Runaway Slaves in São Paulo, 1854-1887”