Estimulado pelo Novo Marco Legal, o setor entra numa nova fase, com a realização de uma série de leilões em busca da meta de universalizar o atendimento
Tiago Cordeiro
Universalizar os serviços de saneamento básico no país até o último dia de 2033, garantindo que 99% da população brasileira tenha acesso à água potável e 90%, ao tratamento e à coleta de esgoto. Essa é a meta do Novo Marco Legal do Saneamento, sancionado em julho do ano passado. O texto determina que os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico contenham metas de expansão e de qualidade. Devem também indicar as possíveis fontes de receitas alternativas e a repartição de riscos entre as partes, prestadores e municípios. Além disso, o marco estabelece um prazo para o fim dos lixões no país.
A legislação pressiona os gestores públicos a agir: os planos de saneamento básico municipais devem ser publicados até 31 de dezembro de 2022. E, a partir de 31 de março de 2023, não terão acesso a recursos públicos federais os municípios que não formalizarem uma estrutura de prestação regionalizada, não tiverem contratos de concessão ou PPP vigentes ou não estiverem com um projeto em estruturação.
Por isso mesmo, estados e municípios de todas as regiões do país estão prevendo a reforma de seus planos de saneamento básico, assim como acelerando a realização de leilões. O novo marco aumentou a segurança jurídica, de um lado, e estipulou metas ambiciosas e claras, de outro, o que obriga os agentes públicos a partir em busca de soluções para o problema do acesso ao saneamento básico.
Desde a sanção do novo marco, foram realizados, até novembro deste ano, cinco leilões no setor, que atraíram, somados, 38 bilhões de reais em investimentos, beneficiando mais de 15 milhões de pessoas, segundo a Abcon, a associação que reúne as concessionárias privadas de serviços de água e esgoto.
Considerando a necessidade de investimentos de quase 500 bilhões de reais apenas para a expansão do sistema, a entidade estima que o efeito multiplicador será de 1,4 trilhão de reais, com a geração de mais de 14 milhões de empregos ao longo do período dos investimentos e quase 90 bilhões de reais em arrecadação tributária.
Ao longo de dezembro, devem ser realizadas outras seis licitações, em Dois Irmãos do Tocantins (TO), Xique-Xique (BA), Goianésia (GO) e Teresópolis (RJ), além de municípios em Alagoas e no Rio de Janeiro. Somados, os novos contratos prometem gerar mais 8,1 bilhões de reais em investimentos. Em 2022, deverão ser realizadas mais oito leilões, que deverão arrecadar mais 31 bilhões de reais. Outros estados, como Paraíba, Sergipe, Rondônia e Minas Gerais, elaboram estudos para realizar seus leilões em 2023.
O Novo Marco Legal foi questionado judicialmente por alguns partidos políticos e pela associação que reúne as empresas estaduais de saneamento. Mas, no início de dezembro, o Supremo Tribunal Federal julgou a lei constitucional. Com a decisão, o modelo, que valoriza a participação da empresa privada e obriga as prefeituras a firmar contratos por meio de licitação, tende a se consolidar em definitivo.
O modelo implementado pelo novo marco muda o setor precisamente por facilitar a participação da iniciativa privada, diz Paulo Furquim de Azevedo, professor titular e coordenador do Centro de Regulação e Democracia (CRD) do Insper e que há anos estuda os modelos de gestão do setor. “Nossas pesquisas, a maioria delas feitas com a colaboração de meus colegas Carlos Saiani e Rudinei Toneto, revelam que as concessões de serviços de saneamento à iniciativa privada estão associadas a uma melhoria relevante na expansão da qualidade e do acesso, sobretudo ao serviço de coleta de esgoto”, diz Furquim.
Os municípios mais beneficiados pela concessão privada, segundo ele, foram aqueles mais pobres e que apresentavam maior déficit de acesso à rede de esgoto — contrariamente à intuição de que o capital privado privilegiaria o atendimento das áreas de maior renda. “O mecanismo que explica esse resultado é a ampliação do investimento, com o aporte de capital privado, e a adequada regulação dos serviços e dos contratos de concessão. Dada a magnitude do déficit de acesso à rede de esgoto, sua solução somente pode ser obtida com a reunião dos capitais público e privado, tal é o tamanho requerido de investimentos”, diz o professor.
O Insper, aliás, oferece um curso de curta duração sobre concessões e PPPs, que ajuda os alunos a compreender os diferentes tipos de arranjos entre o setor público e o setor privado, assim como distinguir as diferentes etapas do ciclo de vida para o desenvolvimento de projetos de concessões e PPPs. Além disso, os alunos recebem noções tanto de aspectos jurídicos como financeiros que impactam esses tipos de contratos. A partir de experiências internacionais em contratos de longo prazo, eles conhecem as melhores práticas que podem ajudar na elaboração de projetos.
Os benefícios esperados com a retomada dos investimentos em saneamento básico no país são muitos. Atualmente, 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e mais de 100 milhões não contam com serviços de coleta de esgoto. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cada real investido em saneamento pode gerar uma economia de 4 reais em gastos com saúde.
Além disso, com a redução do número de internações, as crianças passam a faltar menos na escola — o Instituto Trata Brasil estima que a escolaridade média de crianças que vivem sem acesso ao saneamento seja de cinco anos, enquanto aquelas que contam com serviços básicos de água e esgoto permanecem nove anos na escola.
“O acesso ao abastecimento de água e à rede de coleta de esgoto é talvez o serviço de utilidade pública mais fundamental a uma sociedade. As políticas de saúde, educação e trabalho são positivamente impactadas pela expansão e pela qualidade das redes de água e esgotamento sanitário”, afirma o Furquim. Para ele, o pleno acesso aos serviços de saneamento básico exigirá um grande esforço nacional, mas é uma meta que dá para atingir com o apoio da iniciativa privada e uma regulação adequada por parte do poder público.
Furquim ressalva, porém, que o investimento, sozinho, resolve apenas uma parte do problema. “Loteamentos clandestinos, sem qualquer infraestrutura urbana, muitas vezes criam um fato consumado, que exige investimentos do poder público no provimento de serviços de saneamento, o que pode criar rendas adicionais aos responsáveis pela ocupação clandestina, e, portanto, incentivar novos loteamentos”, afirma. “A solução para o problema passa pela ampliação de investimentos, mas também pelo regramento da ocupação do solo e uma política habitacional definitiva.”