Para o presidente do Insper, o país paga um preço alto pela ausência de uma política econômica estruturada e vive à base de “puxadinhos”
Sob o pretexto de viabilizar o pagamento do Auxílio Brasil, o programa que vai substituir o Bolsa Família, o governo anunciou seu plano de mexer na regra do teto de gastos, que limita o crescimento das despesas públicas à inflação do ano anterior. Os recursos para custear o novo programa viriam com a aprovação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) dos Precatórios, que prevê o parcelamento de dívidas judiciais da União que deveriam ser pagas no ano que vem — a medida também abriria uma folga no Orçamento federal para permitir que deputados e senadores distribuam mais verbas públicas em 2022, ano eleitoral, sem transparência e critérios técnicos. A PEC dos Precatórios já foi aprovada em dois turnos de votação na Câmara e seguiu para o Senado. Na entrevista a seguir, o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper, comenta os impactos do desmonte da principal âncora fiscal do país.
O que não falta no Brasil são problemas, e isso não é de hoje. Mas o humor do mercado piorou bastante nos últimos dias desde que o governo divulgou o plano de furar o teto de gastos públicos. Como o senhor vê o atual momento do Brasil?
De uns dois anos para cá, o que acontece é que o governo tinha alguns comentários gerais sobre os problemas da economia e o caminho que queria tomar. Mas, na prática, não tinha um projeto estruturado do que prometia entregar nem um diagnóstico minucioso dos problemas. Não havia um trabalho cuidadoso sobre o que estava acontecendo e como avançar na direção que desejava. O resultado disso foi uma sequência de anúncios sem embasamento que foram sendo frustrados seguidamente e uma sensação crescente de um governo que não sabe para onde vai. Essa insegurança sobre os rumos da política econômica, a ausência de um governo que lidera e é capaz de construir soluções factíveis, gerou este momento muito difícil que estamos vivendo no país.
A pandemia da covid-19 continua pesando muito para o país se encontrar nessa situação?
O mundo se recuperou da pandemia muito mais rapidamente do que se esperava e a adaptação ao trabalho remoto foi, surpreendentemente, muito mais fácil em todos os países, incluindo o Brasil. Tanto é que a segunda onda quase não teve impacto nas principais economias. O resultado é que os preços das commodities subiram bastante a partir do ano passado e isso beneficiou muito o Brasil. Nosso saldo de transações correntes cresceu. Em geral, quando isso acontece, o câmbio se valoriza e o dólar fica mais barato. Os preços dos produtos que vendemos lá fora sobem, mas, com o câmbio mais barato, não sobem muito internamente. Esse é um mecanismo compensatório que existe, mas, desta vez, isso não ocorreu. Pelo contrário, o câmbio piorou ainda mais, encareceu outros itens e agravou a inflação. O dólar era para estar em torno de 4 reais e já tinha chegado a mais de 5,60 reais. A profusão de anúncios, a maioria dos quais não se concretiza, e as surpresas frequentes com novos rumos acaba resultando nessa grande volatilidade e desvalorização cambial.
O que foi decisivo para essa disparada?
A cereja do bolo foi essa saída pensada pelo governo de furar o teto de gastos, uma medida que, para variar, não vai servir para viabilizar somente o pagamento de quase 50 bilhões de reais do novo Bolsa Família. Mas a proposta de furo é bem maior, cerca de 110 bilhões de reais, talvez um pouco mais, dependendo da inflação no fim do ano. É bom lembrar que, um ano atrás, muita gente dizia que inflação não era problema, que era possível baixar os juros e gastar à vontade. A equipe econômica dizia que ia seguir a regra fiscal, mas no fim apoiou a PEC dos Precatórios e o estouro do teto. E estamos pagando o preço dessa ausência de uma política econômica estruturada. É a política econômica do puxadinho, que vai inventando uma coisa aqui, acrescentando outra ali. A falta de rumo da política econômica é agravada pela sequência interminável de medidas criativas mal pensadas, como a reforma do imposto de renda. O resultado é a impressionante saída de recursos país. Os investidores andam a desistir do Brasil, o que resulta nesse câmbio desvalorizado que pressiona a inflação, que já chega a 10% em 12 meses. E está cada vez mais óbvio que não temos uma equipe econômica à frente das discussões. Ela hoje parece estar a reboque e quem lidera as discussões no país é a liderança da Câmara com a Casa Civil.
A mudança na regra fiscal para furar o teto de gastos vai ter um efeito nas contas públicas e na economia que pode transcender o próximo governo?
As contas públicas no Brasil já são muito frágeis porque a imensa maioria do Orçamento do governo está comprometida com despesas obrigatórias, previstas na Constituição, como aposentadorias, salários dos servidores públicos e transferências para estados e municípios. Não dá para mexer nisso nem com uma emenda à Constituição, porque muitas cláusulas são pétreas. O Orçamento é incrivelmente engessado e há uma série de regras de aumento automático. Por causa da pandemia, muitos reajustes anuais foram suspensos. Isso, em conjunto com a inflação elevada, contribuiu para a melhora dos indicadores fiscais momentaneamente, mas isso vai acabar. O Brasil já tem uma dívida muito alta para um país emergente. Um país rico pode ter dívida maior porque lá os juros são muito baixos, mas não é o nosso caso. O Brasil não consegue manter os juros baixos porque é um país de muita incerteza. As regras do jogo mudam a toda hora e isso acaba cobrando um preço alto nas taxas de juros de mercado, que voltaram a subir bastante.
Mesmo com o Orçamento engessado, o governo teria alguma opção para cortar despesas e levantar os recursos para custear o Auxílio Brasil?
O problema é que estamos numa armadilha fiscal em que não há muito como cortar despesas. Primeiro, teríamos que reordenar a estrutura da área social para focalizar nos programas voltados para quem realmente precisa de ajuda. Segundo, precisaríamos mexer na imensa lista de benefícios tributários que o país concede atualmente. E terceiro, seria necessário limitar os pagamentos de todos esses auxílios e penduricalhos que possibilitam remunerações acima do teto constitucional e consomem grande parte dos recursos de governos estaduais e municipais. O problema é que toda vez que você tenta acabar com esses privilégios, esbarra nos lobbies dos grupos de interesse que bloqueiam as medidas. A resistência de grupos organizados no Brasil é impressionante. E o que assusta na PEC dos Precatórios é que o Brasil velho está agindo de novo. Estão usando o Bolsa Família como abre-alas, mas atrás vem um desfile de escolas de samba com uma grande lista de interesses paroquiais. Há a demanda por maiores emendas parlamentares, para aumentar o Fundo Eleitoral, para prorrogar a desoneração que beneficia alguns setores, para alongar o pagamento da dívida dos municípios com a Previdência… A lista é imensa.
Em artigo recente na Folha de S. Paulo, o senhor comentou sobre o “novo coronelismo”, a distribuição farta de verbas públicas pelos congressistas que controlam o orçamento para manter seus redutos eleitorais. O que o Brasil perde com essa prática?
A campanha para as eleições de 2022 já começou e vai ser bem complicada. Por causa dos problemas de corrupção no passado, criou-se uma lei que restringiu o financiamento privado de campanhas e resultou na criação de um fundo eleitoral, que por enquanto está em 2 bilhões de reais para o próximo ano, mas que pode chegar a 5 bilhões de reais. E como funciona o fundo eleitoral? Ele vai para os partidos, e cabe à cúpula partidária escolher quem vai receber ou não o dinheiro. Na prática, a lei coloca nas mãos de poucas pessoas em cada partido a decisão de quem será candidato ou não. Além disso, cada parlamentar tem uma cota do Orçamento para gastar como quiser no seu curral eleitoral. Há também as emendas de bancada e, mais recentemente, se criou a emenda do relator, que permite a liberação de recursos sem transparência e critérios técnicos. A cúpula da Câmara decide livremente quem será beneficiado e quem não será. Parte do Orçamento do governo federal discricionário está capturada por essas emendas de parlamentares. Isso quer dizer que os congressistas eleitos e as cúpulas partidárias vão decidir quais obras serão feitas no ano que vem e quem serão os candidatos com recursos para gastar. Que democracia é essa? Se você se opõe à cúpula partidária ou não é um beneficiário da emenda do relator, como se candidatar? Há uma fragilização dos instrumentos da democracia e do contraditório que me preocupa bastante.
Dias atrás, o ministro Paulo Guedes disse que o principal problema do Brasil não é falta de dinheiro, mas de gestão. Concorda com ele nesse ponto?
Acho que todas essas teses muito genéricas pecam pela falta de profundidade na análise dos problemas. E isso é parte das dificuldades que o país enfrenta. Se a análise se dá somente nesse plano superficial — “Ah, falta gestão, tem que ter mais Estado, ou tem que ter mais mercado” —, não conseguimos sair dessa polarização que impede o diálogo. Isso inviabiliza entrar nos detalhes dos problemas. Veja a discussão de mercado versus Estado. Sem Estado, não existe mercado. Precisamos do estado de direito, de um sistema judiciário, de alguém que garanta o cumprimento dos contratos, de alguém que resolva os conflitos que inevitavelmente ocorrem. Em alguns setores, o problema é mais complexo e é necessária uma regulação tecnicamente muito sofisticada, como no setor elétrico ou de óleo e gás. A questão é como você desenha o papel do Estado e como cria os mecanismos de controle, incluindo as agências reguladoras. Aí que está o debate. Tudo isso é extremamente técnico e cheio de sutilezas, além de estar sujeito à pressão de grupos organizados. Como não entramos nesse debate mais técnico e ficamos só na superfície, os grupos de interesse tiram proveito, como ocorreu com a capitalização da Eletrobras ou a PEC dos Precatórios.
De modo geral, como avalia as medidas econômicas adotadas durante a pandemia?
Acho que a equipe econômica, desde o começo, tinha muitas frases que sugeriam um caminho, mas que não eram muito embasadas em evidências e careciam de uma estrutura técnica. Veja, por exemplo, a PEC Emergencial [aprovada em março deste ano, criou um novo auxílio emergencial, no total de 44 bilhões de reais]. Cadê essa PEC no meio do imbróglio que estamos vivendo? Não iria servir para lidar com os problemas fiscais? A PEC Emergencial foi tecnicamente muito mal construída, com medidas absolutamente inócuas neste e no próximo ano. O que ocorreu com as demais PECs anunciadas pelo governo no fim de 2019? De novo, a equipe econômica é um exemplo de um problema mais profundo no país: ficamos muito tempo discutindo frases de efeito sobre temas que parecem grandiosos, mas sem entrar nos detalhes técnicos e depois nos surpreendemos que as coisas saíram muito diferentes do que se pretendia.
Em meio a tantos problemas no Brasil, uma notícia positiva é o avanço da vacinação contra a covid-19. Até que ponto isso pode ajudar na retomada econômica do país em 2022?
A vacinação está realmente impressionante, especialmente em São Paulo. O padrão é comparável ao dos melhores países, ainda que tenhamos demorado mais do que devia. O começo do ano foi bem ruim, e pagamos um preço alto pelas disputas retóricas que acabaram adiando a compra das vacinas desnecessariamente. Uma vez que a vacina passou a estar disponível, porém, o processo andou rapidamente. Mas, como já comentei, a economia no mundo inteiro sofreu muito menos com a pandemia do que se esperava. Por isso, boa parte das atividades já voltou e não há muito mais que falte para retomar. Onde ainda existe espaço para a recuperação é uma parte do setor de serviços. Isso pode dar um efeito agregado em torno de 1% do PIB no ano que vem, um pouco mais, um pouco menos. O problema é a volta da inflação, que machuca a renda. O Banco Central é obrigado a aumentar os juros para reduzir a inflação e isso prejudica a retomada. O vaivém das medidas econômicas tem prejudicado e aumentado os juros e o câmbio, piorando a inflação. Tudo isso contribui para uma economia que anda de lado. Muita gente já fala em um país estagnado no ano que vem, talvez com alguma recessão. Vai ser mais um ano difícil.