Um estudo assinado por Tomás R. Martinez (Insper), Antonio Martins Neto (Banco Mundial) e Ursula Mello (Insper), baseado em dados do mercado de trabalho formal do Brasil entre 1985 e 2018, revela dez fatos marcantes sobre a desigualdade de gênero na distribuição de renda ao longo da vida. Focalizando trabalhadores nascidos entre 1960 e 1968, os autores analisam trajetórias profissionais completas e mostram como as mulheres enfrentam obstáculos persistentes para alcançar os percentis mais altos da distribuição de renda — e, mesmo quando conseguem, recebem menos que seus pares homens. A pesquisa, intitulada Gender and Top Lifetime Earnings Inequality: Ten New Facts from Brazil, joga luz sobre mecanismos como diferenças na mobilidade profissional, segregação ocupacional e maior presença feminina no setor público, elementos que ajudam a explicar essa desigualdade estrutural.
“O que buscamos nesse estudo é olhar a desigualdade de renda ao longo de toda a vida”, explica a economista Ursula Mello, professora do Insper e uma das autoras do estudo. A abordagem longitudinal permitiu aos pesquisadores identificar momentos críticos da carreira em que as desigualdades emergem e se ampliam. Um dos achados mais expressivos é a queda drástica da participação feminina no topo da distribuição: embora as mulheres representem 36% da amostra analisada, elas são apenas 25% entre o 1% mais rico e apenas 15% no 0,1% do topo. “Quanto mais se chega a essas posições de liderança, de gerente e diretora, menos mulheres vão conseguindo subir nessa carreira”, observa Ursula.
Além da sub-representação, a pesquisa chama atenção para os caminhos distintos que homens e mulheres percorrem em suas trajetórias profissionais. As mulheres tendem a buscar o setor público, onde há maior estabilidade e flexibilidade — fatores valorizados por quem precisa equilibrar trabalho e vida familiar. “No setor público, existem mais oportunidades para as mulheres, até certo ponto. Mas para chegar no topo, topo mesmo, elas precisam estar no setor privado, em cargos de liderança”, diz Ursula. Segundo ela, o setor público contribui para levar mulheres ao top 1%, mas não ao 0,1%, onde predominam homens com carreiras executivas no setor privado.
Outro dado significativo é que as mulheres trocam menos de emprego ao longo da vida, mas, quando o fazem, obtêm aumentos salariais mais significativos que os homens. Para Ursula, isso revela a existência de barreiras invisíveis associadas à aversão ao risco e à menor mobilidade geográfica das mulheres. “As mulheres são mais avessas ao risco. Muitas delas têm filhos, por isso preferem estabilidade e trabalhar mais perto de casa. Então, para trocar de emprego, elas precisam de um incentivo maior. Já os homens arriscam mais, mesmo por aumentos de salários menores.”
A professora do Insper diz que políticas organizacionais mais sensíveis à realidade das mulheres são essenciais para enfrentar a desigualdade. “Políticas como licença-maternidade estendida, trabalho flexível e ambientes que favoreçam a conciliação entre vida profissional e familiar são fundamentais. A penalidade por ter filhos ainda é muito alta para as mulheres”, afirma. Ela lembra que a literatura econômica mostra de forma robusta como a maternidade afeta negativamente as trajetórias profissionais femininas, tanto em termos de tempo de trabalho quanto de remuneração.
A pesquisa sobre desigualdade de renda por gêneros faz parte de uma linha de investigação mais ampla que Ursula Mello vem desenvolvendo e que se consolida institucionalmente com o recém-criado Observatório de Desigualdades no Ensino Superior e Mercado de Trabalho, coordenado por ela no Insper. Financiado pela Fapesp, o Observatório tem como missão reunir pesquisadores para investigar as várias dimensões da desigualdade — de gênero, raça e renda — nas transições entre a educação superior e o mercado de trabalho.
“A criação do Observatório é recente. Ele surgiu com o objetivo de formar uma comunidade de pesquisa dedicada a entender como as desigualdades se formam, se reproduzem e podem ser enfrentadas”, explica Ursula. A iniciativa já conta com uma equipe de oito profissionais, entre doutorandos e estudantes de mestrado e graduação, que desenvolvem estudos empíricos sobre temas como mobilidade social, políticas de ação afirmativa e inclusão produtiva.
Entre os projetos em andamento, estão pesquisas que analisam os efeitos da Lei de Cotas no ensino superior federal, em vigor desde 2012, e seus desdobramentos sobre o mercado de trabalho e o empreendedorismo. “Estamos investigando, por exemplo, como o acesso ao ensino superior impacta a trajetória de empreendedores negros e brancos. A presença maior de pessoas negras na universidade pode transformar o perfil do empreendedorismo no país”, diz Ursula.
Segundo ela, o objetivo do Observatório é produzir conhecimento científico rigoroso que também dialogue com o público mais amplo e com formuladores de políticas públicas. “As desigualdades não aparecem de repente. Elas vão se formando ao longo da vida, a partir de decisões e oportunidades desiguais. Por isso, precisamos entender esses caminhos para poder transformá-los.”