A intersecção entre gênero e política tem sido um campo fértil para pesquisadoras que buscam compreender e transformar as dinâmicas de poder na sociedade brasileira. É nessa área, onde identificou importantes lacunas de pesquisa, que a paulistana Beatriz Rodrigues Sanchez vem construindo sua carreira acadêmica. Professora de cursos de educação executiva oferecidos pelo Centro de Gestão e Políticas Públicas (CGPP) do Insper, ela desenvolve atualmente um pós-doutorado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), onde pesquisa a institucionalização dos movimentos feministas no Poder Legislativo, com foco nos debates sobre a legalização do aborto no Brasil e na Argentina.
Com formação em Relações Internacionais e mestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), Beatriz tem se dedicado a projetos que conectam a academia à prática, como exemplifica seu trabalho como consultora da Fundação Tide Setubal e, mais recentemente, no Insper, onde ministra cursos de formação política para mulheres em diferentes capitais do país. “Apesar da agenda cheia, tem sido gratificante conversar com mulheres de realidades tão diferentes da minha”, diz a professora. “Lembro de casos que me emocionaram, como no Acre, onde algumas mulheres viajaram mais de 10 horas de barco para participar do curso.”
A seguir, conheça mais sobre a trajetória de Beatriz Rodrigues Sanchez.
Quando chegou a hora de escolher meu curso no vestibular, eu estava em dúvida, mas sabia que queria trabalhar com algo que tivesse impacto na sociedade. Escolhi fazer Relações Internacionais na USP porque enxerguei nesse curso uma oportunidade de atuar em uma escala maior, além do nível local.
No início da faculdade, entrei com expectativa de prestar o concurso do Itamaraty, me tornar diplomata e seguir essa carreira. No entanto, aos poucos, esse sonho foi ficando para trás. Ao longo do curso, percebi que meu verdadeiro caminho estava no universo acadêmico.
Ainda durante a graduação, participei do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs), um grupo de pesquisa da USP voltado para estudos sobre a qualidade da democracia. Nesse período, desenvolvi um trabalho de iniciação científica que investigava a porcentagem de mulheres nos parlamentos ao redor do mundo. Esse primeiro contato com os estudos sobre representação feminina me marcou muito e acabou influenciado meus interesses acadêmicos posteriormente.
Meu interesse pela temática de gênero, na realidade, tem uma história antiga. Ainda no ensino médio, lembro de ter realizado um trabalho sobre mulheres e literatura do Oriente Médio, tema que continuou me instigando durante toda minha formação. Além das vivências pessoais como mulher e das experiências de discriminação que todas nós enfrentamos, percebi uma lacuna importante na academia: tanto nas Relações Internacionais quanto na Ciência Política, havia poucos estudos sobre questões de gênero, especialmente em comparação com outras áreas das ciências sociais, como Antropologia e Sociologia.
Minha trajetória acadêmica seguiu um caminho bem linear. Após a graduação, ingressei diretamente no mestrado em Ciência Política na USP, onde estudei a representação das mulheres no Congresso Nacional. Analisei o conteúdo da representação e a produção legislativa, investigando que tipos de projetos de lei as parlamentares propunham. Na sequência, já no doutorado, ampliei o escopo para examinar a relação entre os movimentos feministas e o Poder Legislativo, buscando entender como essa interação poderia se transformar em políticas públicas para a igualdade de gênero. Para isso, realizei três estudos de caso: sobre a PEC das Domésticas, a Lei Maria da Penha e a Lei de Cotas para Candidaturas Femininas.
Atualmente, faço pós-doutorado no Cebrap, onde retomo uma perspectiva internacional ao comparar o Brasil e a Argentina na discussão sobre a legalização do aborto. É interessante notar como minha trajetória acadêmica fez um movimento circular, voltando à dimensão internacional que primeiro me atraiu na graduação, mas agora com um olhar mais aprofundado sobre as questões de gênero.
Minha chegada ao Insper aconteceu por meio da professora Ana Diniz, com quem já havia colaborado em um artigo sobre conferências de políticas públicas para as mulheres. Em outubro de 2023, ela me convidou para participar de um projeto inovador: um curso de formação política para mulheres do PSD (Partido Social Democrático), que está percorrendo todas as capitais do país. O objetivo é capacitar mulheres e ampliar seu conhecimento sobre políticas públicas e igualdade de gênero, contribuindo para mudar o cenário atual de sub-representação feminina nas instituições políticas.
O curso foi estruturado de forma a equilibrar teoria e prática. Começamos com uma discussão sobre o conceito de gênero e interseccionalidade, explorando como as desigualdades de gênero estão interligadas a questões de raça, classe e outras dimensões sociais. Em seguida, apresentamos um panorama dessas desigualdades no Brasil, abordando temas como violência, mercado de trabalho e educação. Por fim, aprofundamos o estudo sobre políticas públicas, suas etapas e um histórico das conquistas das mulheres no Brasil, desde o direito ao voto até os avanços mais recentes.
Para além do conhecimento técnico, o propósito do curso é despertar nas participantes uma ambição política mais ampla. Queremos que elas percebam que podem, sim, se candidatar a cargos políticos e disputar eleições. Mas, mesmo que não optem por candidaturas, esperamos que saiam do curso mais preparadas para atuar como agentes de transformação em suas comunidades, comprometidas com a promoção da igualdade de gênero e com a construção de um país mais justo.
Nos últimos anos, tivemos alguns avanços na representação das mulheres na política brasileira. Saímos de cerca de 10% de representação feminina na Câmara dos Deputados no início da década de 1990 para os atuais 18% — número ainda tímido, considerando que as mulheres são 51% da população. A política de cotas para candidaturas femininas, implementada em 1995, aumentou o número de candidatas, mas não se mostrou tão eficiente para eleger mulheres, devido a fatores como desigualdade no financiamento eleitoral, falta de formação política, divisão sexual do trabalho e a sobrecarga que limita o tempo das mulheres para se dedicarem à política.
Para transformar esse cenário, uma medida fundamental seria ampliar a presença feminina nos cargos de direção dos partidos políticos. Hoje, embora as mulheres representem em torno de metade das filiadas, são minoria nesses espaços estratégicos, que determinam a distribuição de recursos e o apoio às candidaturas. Implementar cotas internas nos partidos, portanto, poderia ser um caminho efetivo para garantir uma participação mais justa e representativa das mulheres nas instituições políticas.
No Insper, além do curso de formação política para mulheres, leciono a disciplina de introdução às políticas públicas nos cursos do Centro de Gestão e Políticas Públicas. Minha experiência na escola tem sido extremamente positiva. A instituição se destaca não apenas pela excelência dos cursos, mas principalmente pela valorização do trabalho docente. Aqui, existe um reconhecimento genuíno da importância do professor e relações profissionais pautadas pelo respeito mútuo — características que, infelizmente, não são comuns em todas as instituições de ensino.
Paralelamente, atuo como professora substituta no Departamento de Ciência Política da USP, lecionando para a graduação em Ciências Sociais. Atuo também como consultora em projetos de pesquisa, especialmente na área de gênero e política. Trabalho como consultora da Fundação Tide Setubal, em um projeto chamado Rede Orçamento Mulher, que busca incorporar a perspectiva de gênero em todas as etapas do ciclo orçamentário e em todas as áreas das políticas públicas — desde meio ambiente até saúde —, indo além das políticas específicas para mulheres.
Tenho me dedicado bastante a pesquisas realizadas pelo terceiro setor, contribuindo para iniciativas que buscam promover a igualdade e fortalecer a presença feminina em espaços de poder. Recentemente, participei de um projeto com o Instituto Alziras, realizando um censo das secretárias brasileiras para compreender o perfil das mulheres que trabalham nos cargos de alto escalão da gestão pública e os desafios que enfrentam em suas trajetórias.
Tenho diversos projetos e sonhos para o futuro. Um deles foi motivado pelas experiências que venho tendo com a formação política de mulheres em todo o Brasil. A agenda tem sido intensa: viajo na sexta-feira, ministro o curso durante todo o sábado e retorno no domingo. Só em novembro, por exemplo, tenho três fins de semana consecutivos de viagens programadas.
Apesar da agenda cheia, tem sido extremamente gratificante conversar com mulheres de realidades tão diferentes da minha. Lembro de casos que me emocionaram, como no Acre, onde algumas mulheres viajaram mais de 10 horas de barco para participar do curso. Essa troca, esse contato direto com histórias tão ricas e diversas, teve um impacto muito grande em mim.
Um projeto que está no meu horizonte é registrar essa vivência de alguma forma, talvez por meio da publicação de um livro. Penso em criar algo que possa compartilhar essas histórias e os aprendizados que tive ao conhecer essas mulheres incríveis. Seria uma forma não só de valorizar essas experiências, mas também inspirar outras pessoas com tudo o que venho aprendendo nessa jornada.