A inteligência artificial (IA) tem se consolidado como uma das principais forças transformadoras do trabalho, e a área de gestão de recursos humanos (RH) deve ter um papel protagonista nesse processo. No livro "HRM, Artificial Intelligence and the Future of Work: Insights from the Global South", que acaba de ser lançado, Edvalter Holz, professor do Insper, contribuiu com um capítulo que examina os desafios que líderes de RH devem enfrentar para adequar suas organizações a esse cenário, com ênfase em particularidades do contexto brasileiro.
Na entrevista a seguir, o professor Holz — que leciona na trilha de Liderança e Gestão de Pessoas do Insper— aponta alguns dos tópicos abordados em seu capítulo no livro, o qual discute como a IA pode ser integrada estrategicamente ao RH.
Como surgiu o convite para sua participação nesse livro? Você já conhecia os coordenadores do livro?
O convite foi para submeter uma proposta de capítulo em uma chamada aberta realizada pelos editores, um Call for Book Chapter Contributors. Submeti uma proposta de capítulo, que passou por um processo peer review. Após aprovada, o próximo passo foi a submissão do capítulo na íntegra. Este também passou por um processo peer review. Após aprovado, houve uma terceira rodada de peer review para ajustes e, finalmente, uma quarta rodada de revisão editorial diretamente com a publicadora (Palgrave Macmillan – Springer), para ajustes mais específicos.
Eu não conhecia os editores. Acredito que o convite para a submissão tenha chegado até mim pela minha atuação como professor de Comportamento Organizacional e de Gestão de Recursos Humanos, em especial pela minha atuação em programas de pós-graduação e educação executiva nos últimos anos, e pelo meu envolvimento transversal com o tema das tecnologias digitais. Havia acabado de apresentar um estudo sobre força de trabalho digital no Academy of Management, em 2023.
Poderia explicar qual é o tema central do livro?
O projeto foi liderado por três editores: Dr. Olatunji Adekoya (College of Business and Technology, Sheffield Hallam University, UK), Dr. Chima Mordi (Business School, Brunel University London, UK) e Dr. Hakeem Ajonbadi (University of Doha for Science and Tech, Qatar). A proposta do livro é ser uma referência valiosa para profissionais, estudantes, pesquisadores e elaboradores de políticas interessados no futuro do trabalho nos chamados Global South Countries.
São 17 capítulos, escritos por autores de diversos países, em diferentes formatos (revisão, conceitual, teórico, empírico). Eles incorporam questões contextuais, como tecnologia, política, cultura e economia. O objetivo comum é gerar insights sobre o estado atual da gestão de recursos humanos no que diz respeito à inteligência artificial e futuro do trabalho nos países do Sul Global.
O livro apresenta três eixos temáticos: The Asian and Middle Eastern Context; The South and North American Context; The African Context. Os principais contextos enfatizados nos diferentes capítulos são África do Sul, África Subsaariana, Arábia Saudita, Bangladesh, Brasil, Camarões, China, Egito, Emirados Árabes Unidos, Índia, Malásia, México, Nigéria e Zimbábue. Tive a satisfação de contribuir com a única discussão sobre o contexto brasileiro no livro, com um capítulo intitulado Strategic Human Resources Management and Artificial Intelligence: A Practice-Oriented Forecast with an Emphasis on the Brazilian Context.
Quais os principais desafios relacionados à IA no mundo do trabalho?
No capítulo, abordo quatro grandes desafios que precisam ser endereçados para que Gestão Estratégica de Recursos Humanos (GERH) e Inteligência Artificial (IA) se aproximem e geram impactos planejados: i) alinhar objetivos significativos de GERH e características intrínsecas de IA em diferentes níveis; ii) desenvolver usos específicos de IA para GERH; iii) estruturar novos tipos de rotinas de GERH a partir de novas infraestruturas tecnológicas desenvolvidas por meio de IA; iv) institucionalizar IA como uma dimensão organizacional.
Isso traz diversos desafios para líderes de RH, tais como: i) possuir uma visão estratégica do negócio e convencer CEOs da necessidade de investimento em competências multidimensionais de data & analytics; ii) equipar o ambiente organizacional com os atores e recursos necessários para o desenvolvimento de IA; iii) desenvolver um ambiente organizacional condutivo de capacidades de IA; iv) desenvolver uma cultura de aprendizagem digital.
Quais as especificidades do contexto brasileiro?
Ao longo do capítulo, enfatizo como certos aspectos da GERH no contexto brasileiro podem ser dificultadores: i) o tradicional gap entre estratégia e processos (mesmo em organizações de grande porte); ii) a escassez de profissionais qualificados de tecnologia (a despeito de alguns afirmarem que este problema está superado); iii) a existência de práticas de gestão pouco efetivas (em especial devido a aspectos relacionais ou políticos, mesmo em organizações de grande porte); iv) a coexistência de múltiplos interesses ou lógicas em uma mesma organização, o que comumente é chamado de hibridismo organizacional.
De modo geral, ainda estamos em estágio inicial da jornada de aproximação entre IA e RH, e o principal desafio é a falta de investimento. CEOs têm classificado RH como a área menos priorizada para investimentos em IA.
Como o líder de RH pode desempenhar um papel estratégico na implementação da IA, considerando as especificidades do contexto brasileiro e as necessidades das organizações?
Investindo no próprio desenvolvimento para compreender o que IA e atuação estratégica efetivamente significam.
O senso comum tem tratado IA como uma ferramenta que a organização adquire, implementa e começa a observar mudanças incríveis. Não é bem assim. Não há sequer uma definição universalmente aceita para o que seja IA. Trata-se de um conjunto de técnicas de computação que podem atingir graus e finalidades muito diferentes, dependendo do objetivo para que foram desenvolvidas e do investimento colocado no seu desenvolvimento.
Se profissionais de RH não forem capazes de articular objetivos significativamente estratégicos para guiar os investimentos no desenvolvimento de IA, o que observaremos é uma desigualdade crescente nos impactos em diferentes organizações, áreas e contextos; ou então uma comoditização do RH, que ficará refém das chamadas RHTechs, isto é, startups desenvolvedoras de ferramentas muito comoditizadas de IA para RH.
Quais as principais diferenças entre as discussões sobre IA no Brasil e em outros países?
São muitas, mas vale enfatizar a grande falta de perspectiva sistêmica e estratégica nas discussões no Brasil. Em países onde o tema está avançado, líderes de RH estão discutindo questões como: “como desenhar ecossistemas de força de trabalho geograficamente dispersa, mediada por tecnologias digitais, culturalmente híbrida, com formas de governança compartilhada por diferentes organizações, gerando valor comum a múltiplos stakeholders?”; “como desenvolver arranjos de trabalho maleáveis, capazes de enfrentar cenários extremos, como uma nova pandemia ou uma catástrofe climática?”.
Enquanto isso, no Brasil, as discussões se resumem a questões de caráter operacional, como: “como reduzir custos com recrutamento e seleção?”; “como melhor controlar as pessoas nas suas posições de trabalho por meio de rastros digitais?”.
Precisamos começar a discutir IA a partir de uma perspectiva sistêmica e estratégica, ou seja, que considere os múltiplos stakeholders e forças envolvidos na gestão da força de trabalho, e que conceba força de trabalho como um modo de geração de valor.
Nesse cenário, como um líder de RH pode desempenhar um papel estratégico?
Neste momento inicial, a resposta é muito simples: começando o desenvolvimento pelo topo da hierarquia. Estima-se que apenas 4% dos CEOs estejam adequadamente preparados para pensar como utilizar essas novas ferramentas analíticas de forma estratégica em suas organizações. Eu diria que mudar este quadro é a tarefa número um dos líderes de RH atualmente no Brasil. Isso os coloca, obviamente, em uma posição bastante delicada e que não tem nada a ver com a IA propriamente dita, mas com conhecimento do negócio e capacidade de influência.
Link do livro:
HRM, Artificial Intelligence and the Future of Work
Insights from the Global South
https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-031-62369-1?page=1#toc
Link específico do capítulo escrito pelo professor Edvalter Holz:
Strategic Human Resources Management and Artificial Intelligence: A Practice-Oriented Forecast with an Emphasis on the Brazilian Context.
https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-031-62369-1_9